“O Líder”; o anime sobre Karl Marx

Disponibilizamos em português artigo do professor de história da UBA (Universidad de Buenos Aires) Jonathan Muñoz, membro da Rede Ibero-americana de Mangá e Anime. Ano passado a plataforma chinesa BiliBili.com lançou uma série animada sobre a vida de Karl Marx. No artigo, além de apresentar a série, o professor traça uma crítica à atual orientação do PCCh (Partido Comunista Chinês) e sua fusão à doutrina confucionista.

Imagem: Reprodução

Por Jonathan Emanuel Muñoz.

O infinito, mas pouco estudado, campo do anime e mangá sempre relata avanços nas ideias militaristas dentro das obras. No entanto, a rede online chinesa BiliBili nos surpreendeu em janeiro com um anime sobre a vida de Karl Marx, “O Líder”. Este artigo funcionará de duas maneiras: primeiro, uma revisão dos cinco capítulos disponíveis até o momento, e também como uma crítica a esse anime e sua inserção no momento atual.

O anime, ou melhor, donghua, a palavra chinesa para animações, foi produzido pelo Partido Comunista Chinês (PCCh) em homenagem ao 200º aniversário do nascimento de Karl Marx. Não é à toa que Xi Jinping fez um discurso em homenagem a Marx, chamando-o de “o maior pensador de todos os tempos”. Além disso, foi produzido o programa “Marx estava certo” e uma série de documentários sobre a produção do Manifesto Comunista. Pode-se inferir, e com razão, que essa é uma medida política do PCCh que visa cimentar a autoridade do atual primeiro-ministro e também gerar lealdade política a sua liderança. Vale lembrar que a China abandonou o marxismo há muito tempo e hoje é uma potência capitalista com fortes leis defendendo a propriedade privada e alto nível de consumo e, em contradição, com uma classe trabalhadora cada vez mais empobrecida que continua a ter o título de ser a força de trabalho mais barata do mundo. Portanto, parece-me mais do que notável lembrar dessas contradições, pois elas afetarão a representação que farão no anime sobre “O Leão de Trier”.

A constituição teórica dos protagonistas na série

A história de “O Líder” nos conta a biografia de Marx, passando por diferentes pontos importantes de sua vida, sua infância com Jenny, seu começo como jovem hegeliano, a construção do socialismo científico, até sua morte. O maior mérito da série é, precisamente, tentar resgatar o humano por trás das ideias.

O retrato de Marx é interessante, um homem com a língua afiada e uma capacidade intelectual incomum, mas também é alegre, animado e atraente. Ela se encaixa perfeitamente no conceito otaku de “husbando”, um homem desejável e bonito que poderia ser um marido ideal. Essa idolatria (ou seja, transformá-lo em um ídolo) é típica do mundo dos animes e faz parte da cultura otaku. O mesmo se aplica a Jenny Von Westphalen, a esposa de Marx que é retratada como uma “waifu”, a situação oposta a um “husbando”, uma mulher desejável a ponto de querer casar com ela. O interessante é que o retrato de Jenny não cai no extremo dos adoçados e da submissão que se espera de uma personagem feminina em um anime, muito pelo contrário. O retrato de Jenny não é apenas justo, mas justo com sua figura. Jenny é o vento que sopra as velas das ideias de Marx e suas intervenções são importantes. A representação é de uma mulher apaixonada, com uma inteligência muito afiada, ansiosa por conhecimento.

A série comete um pequeno erro que é colocá-la na mesma idade que Marx, Jenny era quatro anos mais velha que ele, no entanto, eles são retratados como crianças da mesma idade.

A figura de Engels é particular, não muito diferente da de Marx, exceto por seu design e porque ele é muito mais diplomático. Engels é apresentado na série como caridoso com os pobres em uma favela de Londres. É interessante que sua apresentação seja assim, pois coincide com a maior de todas as virtudes confucionistas, “ren” (?), a benevolência que, analisada pelo próprio Confúcio, se traduz em “estabelecer-se para estabelecer outrem, tornar-se virtuoso para se tornar virtuoso para os outros”. Esse cruzamento entre a perspectiva confucionista e a construção e representação dos personagens não é acidental.

Isaac Deustcher, em 1964, já alertava que parte das influências do comunismo chinês era o maoísmo e o taoísmo, isto é, a tradição filosófica chinesa. O neoconfucionismo foi adotado no discurso do governo chinês, não é por acaso que na Praça da Paz Celestial, em frente à estátua de Mao, está a de Confúcio. Dessa maneira, Marx, Engels e Jenny estão cheios de virtudes confucionistas em sua representação no anime.

Harmonia e revolução

Na parte técnica, a animação vai melhorando pouco a pouco, o primeiro capítulo mostra uma animação muito ruim, os movimentos são poucos fluidos, mas melhoram. Para animar a série, eles usaram a técnica de Imagens Geradas por Computador, o famoso CGI (na sigla em inglês) usado em videogames e controverso no público de anime por seus resultados desastrosos em séries amadas como Berserk ou Devilman. A partir do segundo capítulo, a fluência se recupera e cada capítulo melhora consideravelmente para os próprios limites do CGI.

Descrita a forma vamos para o conteúdo. Os fatos e a história são apresentados a nós do ponto de vista de Marx com uma ou outra anacronia, por exemplo, Marx e Jenny se formando no ensino médio. Mas a representação biográfica é surpreendentemente impecável, em particular, os detalhes das discussões teóricas que Marx tem em sua vida, seus estudos sobre Kant, seu divórcio do idealismo e o abraço do hegelianismo, para então se divorciar dos “jovens hegelianos” e começar a construir sua própria teoria.

Jenny é fundamental nesse período, porque, seguindo a série, é ela quem incentiva Marx a se divorciar de seu professor Bruno Bauer e buscar seus próprios horizontes teóricos. É interessante o resgate da figura de Jenny que o anime faz e que me surpreende pessoalmente pela construção do personagem, sem cair muito no “moe”, ou seja, na busca de gerar sentimentos na audiência por meio do uso de estereótipos.

Engels aparece no capítulo quatro. A amizade de Marx e Engels está bastante representada, seu primeiro encontro termina após um dia inteiro de diálogos sobre filosofia e culmina com a necessidade de Marx de aprender economia. Mas, sem dúvida, a estrela do show são os debates.

Ao longo da vida de Marx, como é conhecido, ocorreram diversos debates, tanto sobre sua teoria quanto sobre a de outros, eles são refletidos no anime na elaboração de “A Sagrada Família”, o primeiro livro contra Bauer, a fascinação e a crítica que Marx tem com Feuerbach, um episódio em que Jenny também tem sua contribuição ao dar idrias sobre a dupla de filósofos.

O quinto capítulo é inteiramente dedicado à construção do “Manifesto Comunista” e, portanto, também às discussões de Marx com os socialistas utópicos, criticando o livro de Proudhon “A Filosofia da Pobreza”, criticando os movimentos socialistas cristãos alemães e construindo a teoria do socialismo científico, a verdadeira voz da classe trabalhadora, conforme referenciado na série animada.

A chegada do período revolucionário em 1848 traz a família Marx de volta à Alemanha. Uma rivalidade exagerada é gerada entre o irmão de Jenny e Marx, que opta por um novo exílio. O retrato de Marx nesta parte é o de um homem hesitante, mais uma vez Jenny é quem acaba animando o filósofo no que parece ser um momento sombrio em sua vida. O criador do materialismo dialético deve estar armado para sua segurança.

A série nos dá piscadelas hesitantes, tentando humanizar o herói. A representação da relação entre Marx e Jenny também é mais do que correta. Lembrando as palavras de Eleanor Marx, “não havia homem mais apaixonado por uma mulher do que Marx por sua esposa”. Esse amor é totalmente abordado na série como um casal harmonioso e feliz, mais uma vez, outra visão confucionista, a harmonia do casal. Essa harmonia também é transferida para o relacionamento com Engels, onde o emprego e o relacionamento intelectual entre os dois podem ser apreciados, sem tensões. Algo muito resgatável são as citações textuais das obras do grande filósofo, que as vocalizam no personagem e que, para fins práticos, é muito didático para se introduzir no pensamento marxista.

Palavras finais: Assistam à série

Atualmente, a serialização tem cinco capítulos desde 28 de janeiro [1]: , e pode ser vista no canal “Mundo Donghua”, especializado em animação chinesa em espanhol ou em “Comerade Anime” no YouTube, que é legendado em inglês e atualizado com traduções. Por outro lado, o canal do YouTube “Revista La Comuna” está fazendo o upload com legendas em espanhol.

Para além das intenções do governo chinês em relação à série, “O Líder” é uma representação muito boa da vida de Marx, tanto como pensador, como líder e como humano. Ela também resgata a figura de Jenny, não a deixando em planos secundários, mas deixando claro que ela era uma parte importante do pensamento marxista, além de fundadora da “Liga dos Comunistas” e como um elo entre Marx e diferentes socialistas como Liebknecht.

Um grande ponto a favor são os créditos, a música final de cada capítulo, onde, embora seja apresentada uma interpretação muito livre do pensamento de Marx, é muito interessante que se use a base de rap para os acordes da internacional, acompanhado por algo como uma resenha, como o negativo de um rolo de fotos sobre os grandes marcos da vida de Marx, para coroar o fim, onde você pode ver a Praça da Paz Celestial e a bandeira chinesa. Toda uma interpretação política. Além disso, a abertura é inspirada em uma carta de Marx a Jenny, na qual é possível entender a frase “Enfrento o vento com convicções firmes e sinto a luz do sol”, talvez uma frase que possa refletir o pensamento e a vida de Karl Marx.

Sem dúvidas uma série que vale a pena ser vista e que poucos esperavam que ocorressem, uma animação que refletisse a vida do grande líder revolucionário.

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