Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Outro dia, um moço de Istambul veio falar comigo. Logo comigo, a pessoa que inventou a língua dos solitários. Não falo mais com estranhos. Nem com poetas – aprendi que poetas, de perto, são secos – não. Nunca fale com poetas. Nem com moças. Nem com musos alheios. Com estivadores. Guerrilheiros. Salvadores. Nenhum tipo. Bêbado. Faquir. Quer. Lisérgico. Santo. Casto. Divorciado no Uruguai. Não falo em segredo nem publicamente. A linguagem sempre é fonte de desentendimentos, precisos são os olhares. Sabia que ele ia puxar assunto. Puxou, no seu inglês precário que o meu inglês 446 de pronto entendeu. Começa aí nosso pidgin sem contato, por contato doloroso (havia desistido de contar pela inutilidade do tema, mas agora preciso, porque comecei). Logo agora que inventei a sozinhez, como bem lhe disse, a sozinhez é o idioma dos sozinhos. Quanto menos se fala, mais se aprende. As pessoas falam línguas diferentes. Olho pra janela e sinto essa solidão que paira. Aqui se fala português. Acolá também se fala e o mundo se estende tão longe. Desentendem as línguas iguais, nos achamos pelos medos, pelas pontas. Perguntou quantos anos eu tinha. E eu supunha que ele, 18. Estudante dessas engenharias que inventam toda hora, mas não. Não podia negar meus 50. Meus braços denunciam. E como é sua cidade? And how is to live in Brazil? Não entrei nos méritos. Disse que o Brazil é lindo e as pessoas são, na maioria, muito boas. O clima ameno. Chuvas esparsas. Queria dormir. Não tenho lá grandes paciências de conversar, mas senti solidão ali, mais que o normal que a OMS considera normal. Está bem. Pego um mapa nas minhas geografias. Ele me pergunta o que eu faço pra espairecer, digo espairecer, mas não sei o equivalente em inglês. Disse que caminhava na beira de um rio cheio de meandros e que esse rio deságua no Atlântico. E o que você vê de sua janela? O moço de Istambul me envia uma cidade incendiada. Umas fatias meridianas nos separam. Tantas horas. Me lembro que as estrelas que vemos daqui já morreram. O que vemos são os fantasmas delas. Ele tem 24. Não é estudante. Trazia um fuzil. Um cigarro. Podia ser meu filho. Sabia que ia puxar assunto desde a primeira vez.
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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP