Por Sylvia Debossan Moretzsohn.
Jornalistas, ao menos os da velha guarda, costumam cultivar a autoironia e arrumam pretexto para rir das situações mais adversas. Foi numa ocasião dessas que, há 40 anos, surgiu a palavra pela qual as ondas de demissões passaram a ser chamadas: “passaralho”, inspirada invenção de Joaquim Campelo, copidesque no antigo Jornal do Brasil, para a avalanche de cortes que se seguiu à saída de Alberto Dines do comando da redação, em 1974.
Passaralhos ocorrem com razoável e lamentável frequência, mas o que atingiu O Globo na quinta-feira (8/1) foi particularmente chocante. Não só pela quantidade, mas pela qualidade dos atingidos. E, também, pelo momento de transição que o jornal vive, o que lança dúvidas sobre o futuro.
A empresa não divulgou números. Sites especializados citaram 160 demitidos, dos quais cerca de 30 seriam jornalistas, com 20 a 30 anos de casa.
Alguns saíram por acordo. Os demais iam sendo comunicados da dispensa ao chegarem para trabalhar. Instalou-se um clima de especulação que levou muita gente a se precipitar e divulgar informações às vezes falsas nas redes sociais, o que só aumentava a tensão. Mas foi assim que um colunista soube que estava entre os afastados: em férias no exterior, leu no Facebook que sua coluna não seria mais publicada. O e-mail de confirmação só viria depois.
A reviravolta
No início do ano passado, quando anunciou o “novo ritmo da redação”, com a prioridade para o digital, O Globo demitiu alguns jornalistas e fez acordo com outros que manifestaram desejo de sair. Mas contratou mais do que dispensou: foram 12 rescisões e 22 admissões. “Ao longo dos últimos anos, esta é uma redação que aumentou de tamanho”, disse, na época, o editor executivo Pedro Doria. “A gente aumentou em R$ 1 milhão a folha de pagamento da redação. Embora pessoas sêniores tenham saído, pessoas sêniores foram colocadas no lugar.”
Daí a surpresa com a reviravolta. Segundo nota do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro (ver aqui), a empresa justificou-se de maneira vaga, na base dos velhos jargões corporativos: afirmou tratar-se de uma “medida de otimização após a revisão de processos” em que constatou haver “diferentes unidades produzindo o mesmo tipo de trabalho” e a necessidade de “um modelo de convergência”.
A ser verdade, esse quadro apenas revelaria, para dizer o mínimo, uma lamentável falha de planejamento, cujas consequências deveriam recair sobre os responsáveis pelo “modelo de gestão”.
A falta de informações mais objetivas favoreceu as especulações. As demissões seriam medidas preventivas para uma eventual queda de receita publicitária. Ou seriam uma forma de evitar problemas futuros com a Justiça do Trabalho: a empresa vem respondendo a processo por sua prática tradicional de demitir profissionais prestes a completar 60 anos de idade (ver aqui) e assim anteciparia, informalmente, o período da “expulsória”.
Acabar com o jornal?
Uma terceira hipótese seria a perda de terreno do jornal impresso para a edição digital (ver aqui). Isso poderia justificar demissões fora do ambiente da redação, mas não dentro dela: como se sabe, a internet alterou as rotinas e favoreceu a extinção de algumas atividades e a fusão de tarefas, porém ao mesmo tempo abriu novas frentes de trabalho – a criação de editorias de mídias sociais, de vídeo etc.
Os critérios para os cortes foram tempo de casa e nível salarial. A saída de alguns dos mais experientes jornalistas é mais um passo no caminho suicida que vem sendo percorrido há décadas pelas empresas jornalísticas de modo geral. O abandono da tradição de aprendizado no cotidiano, a partir do convívio com os mais velhos, revela suas consequências na flagrante queda de qualidade do produto oferecido ao público.
“É para acabar com o jornal?”, indagavam alguns dos que ficaram, perplexos com o que estavam vendo.
Quem sabe? Cortar pessoal para cortar custos, a velha fórmula de sempre, pode resultar em economia. Mas ninguém faz jornal sem jornalistas.
Fonte: Observatório da Imprensa