Por Leonardo Sakamoto.
O iPhone 5 foi mostrado ao público nesta semana. Por entusiasmo ou frustração, foi assunto bastante falado. Afinal de contas, a linha de smartphones da Apple se tornou objeto de desejo e instrumento de trabalho de milhões ao redor do mundo – inclusive desde que vos escreve.
Nos últimos tempos, reportagens que mostraram as condições de trabalho das fábricas da taiwanesa Foxconn, que produz para a Apple na China, como as do jornal New Yor Times e da revista Wired, fizeram com que a maior empresa em valor de mercado do mundo recebesse pesadas críticas.
E, para não ser acusada de fazer (muito) dinheiro com a superexploração alheia, a Apple contratou a Fair Labour Association a fim de auditar essas condições nas fábricas e recomendar soluções. O relatório que resultou disso, publicizado em março deste ano, mostrou jornadas de trabalho extenuantes, horas-extras não pagas, situações que colocavam em risco a saúde e a segurança do trabalhador, entre outros problemas. A Fair Labour prescreveu ações que iriam das melhoria da alimentação e alojamento à redução da jornada de trabalho, de 60 para 49 horas semanais (!). Conversei com diretores da Fair Labour, em julho, em Washington, e eles afirmaram que mudanças estão acontecendo, mas há muito o que caminhar, principalmente no que diz respeito a essa jornada de trabalho maluca.
E há mesmo. Denúncias que vieram a público também nesta semana, através de uma agência de notícias estatal chinesa, afirmaram que escolas profissionalizantes teriam exigido que centenas de estudantes ajudassem na fabricação de componentes para o iPhone 5 devido à escassez de mão de obra. A Foxconn teria dito que eles são livres para sair a qualquer momento (por um acaso, a mesma resposta que tenho ouvido de fazendeiros escravagistas do interior do Brasil. Quer ir? Vai! Sei…)
Quando falo a empresas do setor têxtil sobre a conjuntura do trabalho no Brasil, passo um bom tempo tentando quebrar os mitos de que a China não possui legislação trabalhista e que o baixo custo dos produtos de lá se deve única e exclusivamente ao uso de trabalho escravo e infantil.
Isso está longe de ser verdade, há muitas outras variáveis incluídas, mas a necessidade de concorrência internacional é sempre um ótimo argumento para quem quer rebaixar o nível de direitos dos trabalhadores por aqui. Para estes, a bilionária australiana Gina Rinehart, considerada a mulher mais rica do planeta, com seus mais de US$ 30 bilhões, é uma musa inspiradora. Ela defendeu, recentemente, a redução do salário mínimo em seu país, dizendo que, na África, ela conseguiria contratar pessoas por menos de R$ 4/dia. Depois perguntam por que certas pessoas tornam-se ou permanecem ricas…
Já contei esta história antes, mas ela vale a pena ser lembrada neste momento de lançamento de iPhone 5.
Há mais de 50 anos, o “demônio” apareceu para um grupo de operárias que trabalhavam em uma linha de produção de uma fábrica de cerâmica em São Caetano do Sul. Ações modernizadoras aceleraram o ritmo industrial da produção de ladrilhos, sem que isso fosse devidamente informado às trabalhadoras. Com a atualização tecnológica, a seção que escolhia os ladrilhos, excluída das decisões que levaram às mudanças, continuou manual, mas subjugada à nova velocidade do maquinário. Muitos ladrilhos começaram a sair defeituosos, levando tensão às operárias dessa seção, que tiveram dificuldade para cumprir seu serviço. Oriundas de uma comunidade católica, as trabalhadoras creditaram tal fato à presença do diabo na fábrica: o Coisa Ruim teria o jeitão e o sorriso dos engenheiros, que controlavam tudo de cima. Foi demandada uma missa no local e que a máquina de ladrilhos fosse benzida. O diabo desapareceu. Não apenas por conta daquele ato simbólico, mas também pelo fato da máquina ser ajustada para não causar mais problemas.
Essa história foi contada e analisada pelo professor José de Souza Martins em um artigo que se tornou famoso por tratar das consequências da modernização industrial. Segundo ele, quando se separa radicalmente o pensar e o fazer no processo de trabalho, o imaginário pode preencher esse vazio para lhe dar sentido. O demônio apareceu como a figuração da ameaça à humanidade do ser humano pela racionalização extrema do trabalho.
Durante os últimos anos, a empresa Foxconn, que fabrica o iPhone na China para a Apple, enfrentou casos de suicídios de empregados. Em um deles, um jovem de 21 anos se jogou de um prédio da empresa em Shenzen, um dos pólos tecnológicos do país – essas histórias estavam entre as que povoaram as reportagens que citei acima. A Foxconn também produz o PlayStation, Wii e o XBox. E tem a Dell, a HP, entre outros grandes, como clientes.
Antes de ser encurralada e deixar a fase de negação, a Foxconn chamou monges budistas para realizar cerimônias a fim de mandar os maus espíritos para longe. Além, é claro, de fornecer um serviço de atendimento telefônico para receber os trabalhadores depressivos ou potencialmente suicidas. Ou seja, ao invés de melhorar as longas jornadas de trabalho, o pouco descanso, a cobrança exagerada e a baixa qualidade de vida resultante, é melhor emprestar um ouvido para as reclamações e e um abraço carinhoso no final.
A China, como o Brasil, vive a luta entre o antigo e o moderno dentro do mundo do trabalho. E para crescerem rápido e a qualquer preço, relativizam a qualidade de vida e a dignidade do trabalhador. Adaptando o professor Martins, chamar monges na China ou padres em São Caetano do Sul tem o mesmo objetivo de tentar restituir as fábricas ao “tempo cósmico e qualitativo que fora banido com a completa sujeição de todo o processo de trabalho ao tempo linear, quantitativo, repetitivo da produção automatizada”.
Mas podemos ir além: qual a diferença entre uma fábrica de ladrilhos de cinco décadas atrás e cortadores de cana que foram obrigados a seguir o ritmo de crescimento de produtividade de colheitadeiras ao longo das últimas três décadas, cortando 16 toneladas diárias onde cortavam 8 no passado? Vale considerar que o aumento da renda do trabalho no setor foi menor que o do capital…
É claro que isso não explica os suicídios (o ato de tirar a própria vida é muito complexo para ser tratado em um post). Mas ajuda a entender o processo de banalização do trabalhador.
Isso não está apenas na relação arcaico e antigo, mas presente em outras áreas. Em escritórios, por exemplo. Quem já se deparou com um colega cheirando um “cafezinho branco” à noite no banheiro para manter o pique e a produtividade sabe o que estou falando. Mais rápido, mais rápido, mais rápido. Para que? Talvez para espantar o vazio gerado pelo próprio trabalho.
Um vazio com duas pontas. Porque, do lado do consumidor, é a mesma coisa.
Quando o iPad 2 foi lançado, em março do ano passado, houve gente que varou a noite na fila para garantir que seria proprietário ou proprietária do novo tablet em vários cantos do mundo. E por que o desespero? Só para ser o primeiro? Em termos. A Apple não vende eletrônicos. A Coca-Cola não vende refrigerantes. A Ford não vende carros. Comercializam estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo. Empacotam capacidades, características, sentimentos que, por fim, compramos – uma vez que nos é negado o tempo necessário para desenvolvê-los ou cultivá-los. Serei legal se tiver algo legal.
O iPhone 5 trará agora as balizas para vivermos até o lançamento do Iphone 6. Para muita gente, através da aquisição de um produto, obtemos o pacote simbólico que ele traz consigo e que faz a roda da vida continuar girando.
Considerando esse processo simbólico, no qual todos estamos incluídos, é difícil imaginar longos boicotes contra mercadorias envolvidas com problemas sociais, ambientais e trabalhistas que tenham se tornado, digamos, “estruturantes”, parte do nosso “sistema operacional”.
Essa discussão sobre boicote faz parte do meu dia a dia como jornalista e pesquisador. Acredito que ela tenha alcance limitado – pelo menos hoje. Quando feito, na minha opinião, tem mais chance de sucesso se ocorrer para pressionar determinada empresa a mudar de comportamento, principalmente através da apreensão causada aos seus investidores e financiadores sobre o risco que a inação diante de um problema causará. O “momento em que se sente medo da possível perda de clientes” consegue ser mais eficaz do que o “momento em que se percebe que houve perda de clientes” – pois sempre se constata que ela foi menor do que poderia ter sido. Pesquisas aqui e mesmo na mais consciente Europa mostram que o consumidor é sim um tremendo de um garganta. Atua bem menos do que fala nesses casos. Normalmente, apenas enquanto o caso está na mídia, que é, portanto, a janela de oportunidade para ação.
Nossa vida se ajustou ao que as empresas de tecnologia nos ofereceram – e não o contrário. É muito difícil ser uma pessoa que trabalha com informação em tempo real sem um smartphone ligado à internet. Sou consumidor de produtos dessa marca e, quando fiquei sabendo das primeiras notícias, integrei-me a grupos que pressionam a empresa por uma solução. E, como jornalista, passei a escrever sobre o assunto, pois tenho ciência da posição privilegiada de mediação de informação que (por enquanto) tenho na sociedade. Sei que, neste caso, migrar para outro aparelho adiantaria pouco, pois boa parte das marcas de vanguarda em tecnologia de comunicação possui problemas trabalhistas em suas linhas de montagem ou em suas cadeias produtivas (querem chorar de tristeza? Vejam como são extraídos os minerais que fazem os componentes de nossa revolucão digital). O que estou dizendo é que, em certos casos, é possível fazer pressão sendo consumidor de determinada marca. É mais difícil do que aquele que simplesmente deixa de comprar, porque você tem que acompanhar, cobrar, mandar e-mail, aporrinhar, conversar com outros consumidores, forçar uma mudança no comportamento.
Dar as costas nem sempre funciona. Porque o poder de propaganda de determinada marca é e será por muito tempo maior que a nossa capacidade de se organizar contra ela. E é difícil manter o boicote puro, no dia a dia, com produtos “estruturantes”. Tem gente que acha que muda o mundo porque deixou de beber Coca-Cola. Simbolicamente, para ela, sim, é até reconfortante. Mas se isso não for organizado de forma coletiva, conscientemente, torna-se, na minha opinião, pouco útil.
Uma das propostas sempre colocadas à mesa e que acho válida é aumentar o preço de determinados produtos. Eu aceito pagar R$ 20 a mais no preço de um celular, se a Apple topar reduzir, por exemplo, o dobro dessa margem de lucro por aparelho, e esses R$ 60 foram destinados a melhorar os salários e condições dos trabalhadores. Isso já foi possível com trabalhadores do tomate que melhoraram suas condições de vida quando alguns centavos foram acrescentados ao preço do ketchup nos Estados Unidos.
Mas lembrando sempre que a responsabilidade principal não é do consumidor. Até porque nada do que discuti acima está nos manuais dos produtos que compramos. Não contam isso nas propagandas, pelo contrário. Escondem. Normalmente, essa informações vêm à tona quando o jornalismo as garimpa ou quando são descobertas e espalhadas por consumidores em redes sociais.
E já que estamos falando de tecnologia, seria ótimo se iPhone 5 viesse com um aplicativo para podemos acompanhar a evolução da qualidade de vida dos trabalhadores envolvidos na produção do lote do telefone em questão. Poderia ter um canal de comunicação entre os trabalhadores das fábricas da Foxconn, em que cópias das reclamações entregues à empresa por seus funcionários chegassem ao consumidor com a resposta e a ação tomada pela empresa. Também poderia trazer dados que mostrassem a evolução ou o retrocesso dos indicadores trabalhistas de cada unidade, incluindo jornada de trabalho, horas de descanso, saúde e segurança, trabalho infantil ou forçado, enfim. Tudo com visualização amigável, plugins para postagem em redes sociais e traduzido para outras línguas porque eu não falo mandarim.
Já que a Apple, como toda grande corporação mundial, procura controlar aspectos da nossa vida, nada mais justo que criar um pequeno mecanismo de contrapeso democrático para ficarmos de olho nela também.