Toda obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre, apesar de não estar mais na moda, foi incluída no rol de livros proibidos da igreja dos católicos, o extemporâneo index. É dele a frase “O inferno são os outros”, dita por um dos personagens de sua peça “Entre quatro paredes”. Seus ensaios sobre a liberdade (quando conclui que mesmo presos estamos “condenados” a ser livres) serviram de base para movimentos políticos importantes durante os anos 60 do século passado, do mesmo modo como influenciou artistas e mudou o panorama da cultura em vários países, inclusive no Brasil.
Outro importante filósofo, também francês, Roland Barthes, contemporâneo de Sartre, escreveu vários apontamentos para uma conferência a que ele denominou “Como viver junto”. Nestas notas curtas, quase aforismos, porque eram princípios de um pensamento a ser desenvolvido em público, Barthes revela o “dilema” do outro, aquele com quem teremos de – independentemente dos laços de relação – viver junto.
Vários dos conflitos contemporâneos, que fazem pessoas irem às ruas protestar, têm a ver com a dificuldade de “viver junto”, ainda mais quando o “outro” pensa e se comporta de modo diferente. O “outro” é amedrontador, porque avisa que nós também podemos ser diferentes, às vezes até para melhor, mas quando não conseguimos o jeito é aniquilar o “outro”, e junto dele sua cultura, sua língua, sua cor e seus ideais. E para isso, o chamamos de “bárbaro”, “vândalo”, “estranho”. Na língua inglesa, por exemplo, “estranho” e “estrangeiro” tem a mesma grafia, e remete ao bárbaro, ao destruidor dos costumes, das ideias prontas, dos dogmas e das tradições seculares.
Os recentes embates coletivos têm, quase todos, motivos de cunho moral e religioso. A obra de Sartre foi indexada pelo catolicismo por conta da sua permissividade em relação à liberdade (muito mal interpretada e, por conta disso, não aceita). No fim, passados tantos anos de debates importantes e esclarecedores sobre o conceito de liberdade, o comportamento e a cultura do “outro” continuam não sendo aceitos, mesmo que tais motivações não alterem em nada a vida daqueles que se incomodam.
Sendo assim, por conta da dificuldade ainda existente de “viver junto” (reparo que não foi apenas nesse sentido que Barthes tratou este assunto, mas apenas um dos sentidos), resta fazer algumas perguntas sobre temas coletivos que tanto têm causado problemas. 1) Cientes de que, a despeito de todos os problemas estruturais da saúde pública, há uma carência enorme de médicos, que problema real existiria com a vinda de médicos de “outro” país? 2) Que problema real pode existir na vida de um religioso se o “outro” quer ter relacionamentos afetivos e ou sexuais com pessoas do mesmo sexo? 3) Em que a vida de um religioso ou moralista vai mudar se em uma relação sexual “outros” usarem ou não métodos contraceptivos? 4) Do mesmo modo, que problema pode haver para um homem que se incomoda com o útero (que ele nem tem) de uma mulher (o “outro”) que decide interromper uma gestação indesejada por motivos que só ela (portanto, de foro íntimo) pode ter?
É triste concluir que a liberdade do “outro” ainda incomoda aqueles que se sentem presos, talvez porque ela avisa que existe “outra” possibilidade de vida, de comportamento, de cultura. A ideia de autonomia humana, de não depender sequer da opinião do outro, é cruel, porque, como diz o mesmo Sartre: “Tudo que recebemos vem dos outros. Ser é pertencer a alguém”.
Além do Mais…
Os editais da FCC
Os editais da Fundação Catarinense de Cultura têm redação confusa, possui anexos dispensáveis e exigências descabidas. E toda essa incompetência para gerar um documento alheio às práticas artísticas (que é para o que se destina) confirmou-se de duas formas. A primeira com o baixo número de inscritos. Não foram poucos os que desistiram por não compreender e ou por não aceitar um edital nestes termos. O comum seria que o número de inscritos fosse maior do que o da edição anterior, mas aconteceu o contrário. A segunda, com o número altíssimo de inscrições não habilitadas (praticamente a metade). Todo edital público deve ter como meta a inclusão das propostas, porque o Estado, que financiaria estas obras, pretende, pela lógica, premiar o melhor produto. Mas a antiga administração da FCC não gostava mesmo de arte.
O Conselho Estadual de Cultura, inclusive com a presença do secretário de cultura (esporte e turismo), Beto Martins, debateu exaustivamente, antes mesmo do encerramento das inscrições, sobre estes problemas, e que medidas poderiam ser adotadas para não penalizar possíveis bons projetos por conta de uma “burro-cracia” tola. O colegiado deliberou que deveria primeiro ser julgado o mérito, depois a documentação. Porém, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Sinal de que Michel Foucault continua tendo razão quando insinua que o porteiro do palácio manda mais do que o rei, basta dar um pequeno poderzinho a ele, principalmente quando este pequeno porteiro tem um ódio doentio do “outro”, o que só confirma Sartre: O inferno são, mesmo, os outros.
Fonte: Blog do Brüggemann.