O Índio da Mídia

Campanha de terror 3Por José Ribamar Bessa Freire.

A manchete do Estadão (23/11/68) usou o verbo trucidar e as palavras chacina e ferocidade quando noticiou que nove corpos de membros da Expedição Calleri foram localizados, em 1968, no território dos Waimiri-Atroari. Embora ninguém soubesse ainda o que havia efetivamente ocorrido, o repórter, antes mesmo de se deslocar até a área, se apressou em afirmar que os índios eram os autores da carnificina. Para isso, exibiu antecedentes históricos sem mencionar qualquer referência documental:

“Calcula-se que mais de 1500 brancos foram massacrados pelos Waimiri-Atroari de umas décadas para cá”.

Quem calculou? O sujeito é indeterminado. Quantas décadas? O período é impreciso. De onde tirou os dados? Sabe Deus. O certo é que, sem citar fontes, traça o perfil dos Waimiri de forma sádica e preconceituosa: “Os silvícolas costumam picar suas vítimas em pedacinhos e queimá-las até virarem cinzas”. Olhando agora, a gente duvida que alguém tenha tido a coragem de publicar tal bobagem, digerida por milhares de leitores, muitos dos quais acabaram acreditando na potoca. O relato virou “verdade”, se fez carne e habitou entre nós.

Afinal, quem matou os nove membros da Expedição, entre eles o padre Calleri? Quando suspeita que a ação é cometida por índios, a grande imprensa, em voz uníssona, apresenta-os como os sujeitos da ação e qualifica-os como feras, reforçando preconceitos. A Expedição visava atrair os “silvícolas” para afastá-los de seu território, que seria rasgado pela estrada Br-174. Apesar disso, para a mídia, os índios agiram não em legítima defesa da terra invadida, mas por causa de sua “natureza bestial”.

No entanto, quando ocorre o contrário, o sujeito da oração não é quem disparou o tiro assassino, continua sendo o índio, como registrou O Globo em manchete na última sexta-feira: “Índio morre em confronto com policiais”. Ou seja, ninguém matou, ele é que morreu. Não há responsáveis.

Quem matou?

Na regra do jornalismo é preciso responder, entre outras perguntas, o “quem”, já no primeiro parágrafo, no lide. Quem matou o terena Oziel Gabriel, em Sidrolândia (MS), na fazenda que desde 2010 foi declarada Terra Indígena? Quem disparou os tiros que feriram muitos índios, entre eles, mulheres, idosos e crianças? Por que? Nenhuma análise foi feita pela mídia sobre as razões do conflito, nem sobre quantos índios foram assassinados, sequer quantos índios “morreram” nas “últimas décadas”.

Um juiz federal deu a reintegração de posse ao ex-deputado Ricardo Bacha que jura, fazendo figa, que a terra é dele. Dez equipes da Policia Federal e cem homens da Tropa de Elite da PM, armados, cercaram os índios, jogaram bombas e dispararam tiros. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo diz que “se a investigação comprovar irregularidade ou abuso, os responsáveis serão devidamente punidos?”. Deixa ver se entendi bem: quer dizer que existe, então, “assassinato regular” e “assassinato irregular”? “Morte com abuso” e “morte sem abuso”?

– “Até o momento não se pode dizer de onde partiu o tiro. Não prejulgaremos” – disse Cardozo, que não faz prejulgamento quando se trata de saber quem matou índios, mas não hesita em prejulgar inofensivos facebookeiros quando denuncia “ativistas que estariam incentivando a violência nas redes sociais”.

O ministro não sabe, mas eu sei de onde partiu o tiro. Se ele quiser, posso testemunhar e dar os nomes aos bois e às vacas. O primeiro tiro foi disparado por um canhão em abril de 1.500 e de lá para cá, “nos últimos séculos”, metralhadoras de repetição não cessaram de cuspir fogo, disparadas por bandeirantes ao longo de todo o período colonial, por bugreiros no Império e na República e agora pelo agronegócio ávido em abocanhar as terras indígenas.

O que ocorreu aqui foi “a maior catástrofe demográfica da história da humanidade”, segundo demógrafos da Escola de Berkeley, que refinaram seus métodos de análise. Nunca uma região foi esvaziada tão violenta, drástica e rapidamente como o continente americano. Mas o processo não terminou no período colonial. Persiste ainda hoje. O colonialismo, como estrutura de dominação é historicamente datado, mas a colonialidade – para citar termo consagrado por Anibal Quijano – é mais profunda e duradoura. Continua entranhada na cabeça das pessoas, orientando comportamentos.

O que tem na cabeça de um ministro, de um juiz, de um jornalista, de um governador, de um policial, de um bispo e até de um fazendeiro, enfim, qual imagem têm do índio esses agentes que algumas vezes são obrigados a lidar com culturas dotadas de lógicas e de línguas tão diferentes? Que conhecimentos possuem eles sobre esses povos?

Bomba na maloca

Essas e outras perguntas foram respondidas pela jornalista e pesquisadora amazonense Verenilde Santos Pereira, que defendeu na última sexta-feira, 31 de maio, sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) sobre a cobertura jornalística no “massacre” da Expedição Calleri. Ela conhece os jornais por dentro, trabalhou como repórter em vários deles, inclusive no “Porantim”, o jornal mensal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Em sua pesquisa, a agora doutora Verenilde fuçou arquivos, recuperou as matérias jornalísticas publicadas por jornais de Manaus e outros de circulação nacional para analisá-las e refletir sobre a singularidade jornalística na cobertura feita sobre a Expedição Calleri. Seu objetivo era descobrir o que foi silenciado para a afirmação de tal singularidade.

Aprendemos, nas escolas de jornalismo, que na construção de uma narrativa é preciso sempre ouvir o “outro lado”. Acontece que as matérias analisadas pela doutoranda foram compostas, paradoxalmente, com o silêncio dos índios, os principais protagonistas do episódio. A voz foi dada sempre só a um lado, especialmente às autoridades, que viam nos índios um obstáculo para a abertura da estrada Br-174.

Verenilde mostra como o então governador do Amazonas Danilo Areosa e o governador de Roraima Fernando Ramos Pereira concordaram, em repetidas declarações, que “uma minoria de índios não pode atravancar o progresso”. Até o bispo Dom João de Souza Lima, na celebração dos rituais fúnebres dos mortos na Expedição Calleri, fez um sermão condenando os índios que”por serem ignorantes não compreenderam o gesto de amor do padre Calleri e trucidaram os membros da expedição”.

A fala contra os índios foi articulada até mesmo pelo presidente da Funai, na época o jornalista Queiroz Campos, que devia combater os preconceitos e contribuir para que a população brasileira conhecesse um pouco mais as culturas indígenas. Ele declarou à Folha de São Paulo que “os índios são altamente ferozes, perigosos e costumam estraçalhar e queimar vivos os inimigos vencidos”.

Diante desse coro afinado de vozes, quem aloprou foi o coronel Jorge Teixeira, que emprestou seu nome a logradouros públicos em Manaus, de onde foi prefeito nomeado, e em Rondônia, de onde foi governador. Na época, ele era comandante do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) e falando daquele lugar o nosso Eichmann caboco apresentou a solução final:

– “Nós poderíamos resolver tudo com algumas bombas jogadas sobre as malocas à noite”.

A fala dos índios

A truculência e ignorância das autoridades, a subtração da informação, o emudecimento dos índios pela mídia levaram Verenilde a recuperar depoimentos e desenhos dos Waimiri-Atroari recolhidos por Egydio Schwade e Dorothy Muller, professores da Escola Waimiri, e pelo antropólogo Stephen Baines. Um artigo de Egydio publicado recentemente no Porantim relata o massacre dos índios na ditadura militar e registra o que foi subtraído do noticiário da mídia. A proposta do coronel Teixeirão foi acatada.

Os Kiña – autodenominação dos Waimiri-Atroari – realizaram em setembro de 1974 uma festa na aldeia Kramna Mudi, no baixo rio Alalaú. Por volta de meio dia, um avião se aproxima. O pessoal sai da maloca pra ver: as crianças se concentram no pátio central. O avião derramou um pó mortal e matou 33 índios, deixando apenas um único sobrevivente, que relatou o fato dando o nome de cada um dos 33 parentes mortos, que não tinham qualquer sinal de violência no corpo.

Depoimentos de vários índios, entre os quais Damxiri, Panaxi e Yaba narram os massacres sofridos pelos Waimiri-Atroari. Verenilde, que os valoriza, usa o quadro teórico de Hannah Arendt, para quem “todas as dores podem ser suportadas se forem postas em uma história ou quando se conta uma história sobre elas”. Não se trata de mera descrição dos fatos, mas de um modo de pensá-los. Uma forma de estabelecer vínculo com o mundo é contar uma história dele, ai os fatos adquirem significado. É dessa forma que o pensamento narracional se afirma.

A tese analisa o comportamento da mídia na cobertura sobre a Expedição Calleri, usando a noção de “banalidade do mal” formulada por Hannah Arendt a partir do julgamento de Adolf Eichmann, oficial da Gestapo que exterminou judeus. A banalidade do mal se apoia na incapacidade de se colocar na pele do outro e a partir daí tentar compreender o “ponto de vista” do outro. Tal incapacidade leva a uma excessiva superficialidade e à derrota do pensamento ao tentar narrar o outro. É o que acontece com a mídia. A imagem do índio criada pela mídia é fruto da banalidade do mal.

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P.S. – Verenilde Santos Pereira: Singularidade Jornalistica e violência: o “massacre” da Expedição Calleri. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasilia (UnB). 31 de maio de 2013. Banca: Dra.Rita Laura Segato (orientadora), Wenderson Flor, Sérgio Dayrell Porto, Luiz Martins e José R.Bessa.

Fonte: Contexto Livre.

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