Os EUA foram escorraçados do Afeganistão em agosto, por um exército minoritário, que não tem aviões de combate, destroieres, não tem mísseis, não dispõe de helicópteros. Um exército equipado com metralhadoras manuais e algumas caminhonetes, a grande maioria arrancadas do inimigo. Os EUA costumam enganar os incautos, tentando disfarçar sua condição de invasor, por duas longas décadas no Afeganistão. Implantar a “democracia”, proteger as mulheres, e outros segmentos oprimidos pelo Talibã, preservar o meio ambiente, etc. Essas são algumas das miragens utilizadas para justificar uma guerra, cujo saldo trágico, dentre outros, se aproxima dos 180.000 mortos.
Se calcula que nos 20 anos de guerra dos EUA com o Afeganistão, a mais longa travada pelo Império, foram gastos mais de US$ 2 trilhões. O valor equivale a US$ 300 milhões por dia, todos os dias, durante vinte anos. O dinheiro seria suficiente para distribuir US$ 50 mil para cada um dos 40 milhões de habitantes do Afeganistão. Num cálculo mais preciso, se estima que o gasto total no conflito tenha alcançado a impressionante cifra de US$ 2,26 trilhões, várias vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do Afeganistão de US$ 19,26 bilhões em 2019. Acreditem: os gastos da guerra em 20 anos, somente dos EUA, equivalem a 117 vezes o PIB do Afeganistão, país no qual um professor ganha de 4 a 5 cinco dólares por mês.
Além dos US$ 800 bilhões para bancar custos diretos de combate, foram gastos US$ 85 bilhões para treinamento do Exército afegão, que simplesmente virou fumaça a partir do fechamento repentino da Base Aérea de Bagram pelos norte-americanos, em julho último. Sem os ataques aéreos aos soldados talibãs, o exército regular do Afeganistão, sustentado por grosso dinheiro dos americanos, simplesmente entrou em parafuso.
Os números oficiais de vidas perdidas na guerra (que devem ser olhados com reservas, pois podem estar subestimados), mostram as abissais diferenças de recursos entre os dois lados: sucumbiram na guerra 2.500 militares norte-americanos. Do lado Afegão, foram 69 mil policiais militares, 47 mil civis e 51 mil combatentes mortos.
As cifras envolvidas na empreitada revelam as razões pelas quais a economia dos EUA não vive sem a permanente fomentação de guerras, mundo afora. O dinheiro para a matança desses quase 170.000 afegãos, fora os feridos, veio dos bancos. Pesquisadores da Brown University calculam que apenas o custo dos juros de dívida da guerra afegã possa alcançar US$ 6,5 trilhões, até a quitação da dívida. O valor representa um custo de US$ 20 mil para cada cidadão norte-americano e mostra a verdadeira simbiose entre as guerras provocadas pelos EUA e os interesses do sistema financeiro. Se morreram quase 170.000 afegãos, isso é apenas um detalhe. O importante é que a guerra irá proporcionar trilhões de retorno para o capital financeiro e fornecer uma sobrevida para um capitalismo em crise brutal.
Além do interesse do sistema financeiro nos lucros, sustentado pelo contribuinte norte-americano e por outros povos do mundo, a guerra se explica por outros números. O PIB do Afeganistão, de US$ 19,29 bilhões, como vimos (110ª posição no mundo), não chega a 1% do que os EUA gastaram na guerra. No entanto, se calcula que a riqueza mineral do Afeganistão esteja em algo entre US$ 1 trilhão e US$ 3 trilhões. O país possui imensas reservas de cobre, lítio, cobalto, ferro, ouro, que permaneceram relativamente intocadas nas últimas décadas. Ou seja, um dos interesses dos norte-americanos no Afeganistão não é só por um verdadeiro tesouro de pedras preciosas, mas também por minérios fundamentais para a produção industrial mundial, como o ferro.
Há relatórios desenvolvidos pelos próprios norte-americanos, entre 2000 e 2010, através do Centro de Pesquisa Geológica dos Estados Unidos, que mostram a existência das citadas reservas minerais. Como as pesquisas foram desenvolvidas em pleno processo de guerra, há possibilidades de que as reservas sejam ainda maiores do que as projetadas. Vale lembrar que um dos grandes problemas atuais dos EUA é o esgotamento de fontes de minérios e de outras matérias-primas, sem as quais nenhum império se sustenta. Não por acaso, a primeira razão econômica da articulação do golpe no Brasil em 2016, pelos EUA, foi petróleo. Assim como, boa parte dos golpes coordenados pelos EUA no restante da América Latina foram também em busca de fontes de matérias-primas.
Os dados concretos da economia e da guerra no Afeganistão não podem deixar dúvidas sobre quem é o país opressor e quem é o oprimido nesse embate. O cineasta estadunidense Michael Moore, matou a charada em seu perfil no Facebook: “Cabul, Saigon. A queda, mais uma vez. A América perde outra guerra. Nossa guerra mais longa. Somos o nº 1!! Gastamos mais de US$ 2 trilhões. Sacrificamos mais de 2.300 vidas de americanos para invadir um país onde Bin Laden nunca foi, em lugar nenhum, encontrado. Nós somos os invasores. O Taleban não é invasor – eles são afegãos – é o país deles!”.
A questão da invasão dos EUA ao Afeganistão, que agora teve um desfecho, é simples. O país é independente e não pode ser ocupado por um país estrangeiro, sob qualquer pretexto. Os EUA invadiram o Afeganistão, como fizeram com centenas de países para roubar e manter sua condição de império. Se um determinado país tem problemas de qualquer natureza, seja no campo da democracia, dos direitos humanos, na relação com as mulheres, é o seu próprio povo que tem que resolver. E não a águia mais imperialista do mundo que, sabidamente, faz qualquer coisa (qualquer coisa, mesmo) por seus objetivos geopolíticos e econômicos.
É isso que representa a velha política de autodeterminação dos povos. Nenhum país tem o direito de usar como justificativa, desculpas tipo opressão das mulheres ou fanatismo religioso para invadir e destruir outro país. Quem tem que resolver esses problemas é o próprio povo afegão. Por que ninguém fala em invadir os EUA para resolver o problema da pobreza em que vivem 40 milhões de norte-americanos (uma população inteira do Afeganistão), mesmo sendo o país mais rico da Terra? Negar ao povo afegão o direito de autodeterminação, utilizando pretextos como: “não tem democracia”, “maltrata as mulheres”, “tem corrupção”, etc. é posição absolutamente cínica e colonialista.
Com uma desculpa esfarrapada os EUA invadiram o Afeganistão, há 20 anos, para roubar minérios fundamentais e por posições geoestratégicas importantes. Como fizeram com inúmeros países. Além de abundância mineral, o Afeganistão tem localização estratégica. Liga o Médio Oriente à Ásia Central e ao sudeste asiático e faz fronteira com o Paquistão, Irã, China e outros países menores. Para atingir seus objetivos no país o Império norte-americano implantou um governo capacho, que foi derrotado pelo Talibã, apesar de todos os gastos realizados pelo invasor.
O Afeganistão é considerado, de forma impressionante, o “Cemitério dos Impérios”. O poderoso Império Britânico o invadiu pela primeira vez no século 19. Pressionado pelas circunstâncias teve, em 1919, que abandonar o Afeganistão e ceder a independência ao país. Em 1979 foi a União Soviética, que invadiu o Afeganistão também com objetivos geopolíticos e econômicos. Dez anos depois, percebendo que não venceria a guerra, e já numa grande crise econômica e política, saiu do país. Agora, o mais bem equipado exército do mundo foi colocado para correr por combatentes subnutridos, mas com determinação e tenacidade, brotadas diretamente das suas almas guerreiras.
Como se consegue derrotar 300 mil soldados, que usavam tecnologia de guerra muito superior, financiados por uma fábula de recursos do imperialismo mundial? E que ainda conta com mais alguns milhares de soldados norte-americanos, e mais dezenas de milhares de soldados italianos, também portando armamento de último tipo? O aparente enigma tem uma explicação muito simples: o Talibã conta com o apoio da maioria do povo Afegão. Dada a diferença extraordinária de recursos entre os dois lados, só uma mobilização popular gigantesca explica a derrota do Império.
Não há como negar a importância da queda dos EUA no Afeganistão, que foi comparada, inclusive, à acachapante derrota no Vietnã do Sul. Tal importância foi plenamente reconhecida por todas as forças políticas dos EUA. Uma congressista republicana, Elise Stefanik, por exemplo, tuitou: “Este é o Saigon de Joe Biden”. E acrescentou: “Um fracasso desastroso no cenário internacional que nunca será esquecido.”
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José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
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