Por Lioman Lima, BBC Mundo.
Paul Pierrilus acordou na quarta-feira (3/2) pela primeira vez em um lugar onde nunca esteve, onde não fala a língua, onde não conhece ninguém – e para o qual foi deportado: o Haiti.
O homem de 40 anos, nascido em um território que pertence à França e que trabalhava como consultor financeiro em Nova York, foi enviado na terça-feira junto com centenas de outros haitianos para um país do qual não é cidadão, segundo seus advogados e parentes.
Pierrilus imigrou para os Estados Unidos com sua família quando tinha cinco anos e nunca mais deixou o país por um motivo incomum: ele é, em sua defesa, um apátrida.
“Ele é filho de pais haitianos, mas nasceu na ilha de Saint Martin, território ultramarino francês. Portanto, como nem a França nem o Haiti conferem automaticamente a cidadania nesses casos, então ao longo de sua vida ele não foi capaz de usar qualquer nacionalidade”, diz Nicole Phillips, a advogada de Pierrilus, à BBC Mundo.
Uma certidão de nascimento em nome de Paul Pierrilus, a que a BBC News Mundo teve acesso, confirma que ele nasceu na parte francesa da ilha de Saint Martin (que a França compartilha com a Holanda).
Diferentemente do Brasil, o Haiti não confere nacionalidade a quem nascer em seu território – é preciso que um dos pais seja haitiano.
Esse é o caso de Pierrilus. Porém, segundo sua advogada, os pais dele nunca o registraram no consulado haitiano, então ele tecnicamente não tem a cidadania do país.
Deportação
A longa noite que culminou em sua deportação foi a terceira e última tentativa de um processo tortuoso que já dura quase duas décadas.
O que aconteceu desta vez ainda é um mistério: na noite de segunda-feira, agentes da imigração apareceram na casa de Pierrilus e pediram que ele pegasse suas coisas, pois ele seria “removido”.
“Então ele nos ligou e tentamos perguntar para onde o estavam levando, mas eles se recusaram a oferecer essa informação”, diz à BBC News Mundo Guerline M. Jozef, diretora da Haitian Bridge Alliance, ONG que representa Pierrilus.
“A única maneira de sabermos que ele estava sendo deportado foi porque estávamos falando com ele por telefone. É assim que tratam as pessoas. Se não tivéssemos falado ao telefone, Paul teria desaparecido”, acrescenta.
Uma porta-voz do Serviço de Controle de Imigração e Alfândega dos EUA confirmou à BBC News Mundo que a agência “transferiu Paul Pierrilus, um cidadão haitiano, para seu país de origem”.
Advogados e família disputam a atribuição da cidadania e do país de origem das autoridades americanas.
“Temos sua certidão de nascimento e comunicações da embaixada haitiana que provam que Paul não é cidadão haitiano e que o Haiti nunca o reconheceu como tal”, diz Phillips.
Os últimos voos
Os últimos eventos que levaram à deportação de Pierrilus tiveram sua origem na corrida desenfreada do governo Donald Trump para deportar o maior número possível de imigrantes indocumentados antes de deixarem a Casa Branca, de acordo com advogados.
Grupos de defesa das pessoas que não possuem documentos de cidadania ou de permanência regular, os indocumentados, garantem que, em face da mudança de governo e uma possível mudança nas políticas de imigração, o ICE apressou os procedimentos e medidas para aumentar as deportações nos últimos dias de Trump.
De acordo com dados da ONG Witness at the Border, só em 2020 a agência realizou mais de 1 mil voos de deportação e mais de 100 deles ocorreram em dezembro (últimos dados disponíveis).
De acordo com a agência, Pierrilus entrou no país em 1985 “como um visitante não imigrante”, mas permaneceu depois que seu visto expirou. Uma patrulha de fronteira “o encontrou pela primeira vez em outubro de 2002 e o submeteu a um processo de deportação perante um juiz de imigração”.
Segundo os seus advogados, naqueles anos, os menores podiam entrar no país com o passaporte dos pais e com a certidão de nascimento e o visto (não era necessário passaporte para o menor, o que facilitava a sua entrada).
“Entendemos que ele entrou nos Estados Unidos quando era criança com o passaporte dos pais; ele não tinha passaporte”, diz Phillips.
Quando jovem, Pierrilus foi preso por vender drogas e depois de cumprir seis meses de prisão, um juiz decidiu que ele poderia ser deportado por infringir a lei dos Estados Unidos, sentença da qual tentou apelar sem sucesso.
“Pierrilus tem uma condenação criminal em 2003 por venda de entorpecentes e um juiz de imigração ordenou sua remoção dos Estados Unidos em 1º de junho de 2004”, informa o comunicado do ICE.
Phillips explica que naquela época não podia ser deportado, pois sua condição de apátrida foi comprovada depois que Saint Martin e o Haiti não aceitaram que ele fosse enviado para seus territórios.
No início deste ano, o destino de Pierrulis estava prestes a mudar no que parecia ser outra visita de rotina a um centro de imigração, como ele tem feito periodicamente nos últimos 20 anos.
“No dia 11 de janeiro, Paul foi a uma audiência com as autoridades de imigração, a que tinha que comparecer regularmente após sua prisão para confirmar autorização de trabalho e residência, quando foi preso sem motivo aparente”, diz sua advogada.
Josef, por sua vez, lembra que, após sua prisão, as autoridades planejaram deportá-lo em 19 de janeiro, em um dos últimos voos do governo Trump.
“Mas, devido a nossos esforços, do congressista Mondaire Jones e da embaixada do Haiti, conseguimos tirá-lo do avião quase no último minuto”, diz ele.
Para Pierrilus e seus advogados, foi um momento de alívio: um dia depois tomaria posse o presidente Joe Biden, que havia prometido, durante sua campanha, colocar uma moratória de 100 dias nos voos de deportação.
Ele cumpriu.
No entanto, um juiz do Texas bloqueou a ordem executiva na semana passada, dando luz verde ao ICE novamente para retomar os voos.
“Com a ordem do juiz, fica a critério do ICE quem ou quando deportar. Por isso é particularmente chocante que a agência tenha optado por deportar um homem negro, apátrida e sem documentos de viagem para um país em que ele não é um cidadão, que não fala a língua, onde não conhece ninguém ou onde nunca esteve. Acreditamos que isso é ilegal e contrário aos princípios internacionais”, diz Phillips.
Perguntas
Para os advogados e familiares de Pierrilus, a grande questão no caso é como Estados Unidos e Haiti podem justificar a deportação, visto que autoridades haitianas confirmaram anteriormente que o homem não era cidadão daquele país e que, portanto, poderiam não recebê-lo.
No comunicado enviado à BBC News Mundo, o ICE indica que solicitou ao Haiti a autorização para a deportação de Pierrilus no início de janeiro, cinco dias antes de emitir a ordem para sua prisão aos agentes de imigração.
“O ICE solicitou e recebeu a aprovação do Governo do Haiti para a repatriação do cidadão haitiano Paul Pierrilus em 5 de janeiro. O Governo do Haiti aprovou a entrada de Pierrilus no Haiti em 7 de janeiro”, diz o comunicado.
Não se sabe sob que argumento ou condição o governo do Haiti concordou em receber Pierrilus.
A BBC News Mundo, que produz a página em espanhol da BBC, entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores haitiano e sua embaixada em Washington, mas não recebeu resposta até a conclusão desta reportagem.
No entanto, em 19 de janeiro, 12 dias após o ICE supostamente ter recebido autorização de Porto Príncipe, o embaixador do Haiti nos Estados Unidos, Bocchit Edmond, confirmou publicamente que Pierrilus não tinha nacionalidade haitiana e, portanto, não poderia ser deportado.
Edmond também informou no Twitter que a embaixada havia realizado “diversas intervenções” para retirá-lo do avião em que pretendiam levá-lo ao Haiti naquele dia.
“Continuaremos a cooperar com as autoridades norte-americanas relevantes, mas dentro dos limites dos princípios estabelecidos. Pierrilus não é cidadão haitiano e, portanto, não pode ser enviado ao Haiti”, escreveu ele.
A BBC News Mundo contatou o ICE para descobrir sob que motivos de nacionalidade procedeu com a deportação de Pierrilus para o Haiti e que provas a agência tem para assegurar que ele é um cidadão haitiano, mas também não recebeu resposta até a conclusão desta reportagem.
“Acho que a grande questão que todos nós temos é como isso aconteceu, como o Haiti concordou em receber uma pessoa deportada que não é seu cidadão. É um erro ou uma cumplicidade indesculpável com o ICE? Qualquer que seja a resposta, há uma vida humana em perigo agora “, diz Phillips.
Segundo a advogada, após sua chegada ao Haiti, Pierrilus encontrou uma cidade vazia e sitiada por veículos militares.
O Haiti vive atualmente uma situação política tensa que gerou inúmeros protestos nas últimas semanas, pedindo a renúncia do atual presidente, Jovenel Moïse.
A nação, a mais pobre do Hemisfério Ocidental, também está sofrendo o impacto da pandemia do coronavírus, para a qual não tem recursos ou hospitais suficientes.
“Eles enviaram ilegalmente um apátrida para um país com uma situação política, social e epidemiológica preocupante, para o qual o próprio governo dos Estados Unidos recomenda que seus cidadãos não viajem. É realmente uma pena”, conclui Phillips.