Por Viegas Fernandes da Costa.
Nunca soube seu nome, idade ou origens, mas é curioso que tenha sido dele quem primeiro senti falta quando a peste chegou à Ilha e as pessoas foram sumindo das ruas. Isto, claro, lá no começo, porque logo tornaram os viventes à estrada, exceto ele, a quem todos julgavam por doido.
Sua presença na Servidão Corinthians era diária, com exceção dos domingos, dia de descanso. Subia e descia a ladeira revolvendo as lixeiras e recolhendo latas de alumínio durante a manhã, e ao final da tarde se postava na curva diante do mercadinho local vestindo calção, meias de futebol, a camisa jogada sobre os ombros, uma sacola de plástico na mão direita e uma latinha de cerveja na esquerda. Embriagado ou lúcido, fronteiras que nunca estavam claras, invariavelmente discursava como quem estava sempre ensinando algo para alguma plateia. Daí, talvez, a razão das pessoas afirmarem que fora professor da universidade. A universidade distante apenas um quarteirão desta curva de servidão. “Podes perguntar a capital de qualquer país, e ele te responde”, diziam sempre. Nunca tirei a prova, e me arrependo de não ter parado para perguntar Bangladesh? ou Palau?, e assim entabular conversa e saber se no seu repertório já estavam incorporados o Sudão do Sul ou o Saara Ocidental.
Uma vez por mês surgia barbeado, rejuvenescido, o cabelo penteado. Inaugurava o mês de cara limpa. Passava por ele sempre apressado, geralmente de automóvel, vez ou outra nos encontrávamos quando eu caminhava até o mercado para comprar o pão do café da manhã ou o sorvete nos dias de verão. Havia o cumprimento rápido e respeitoso, mas era só. Ainda que me coçasse a vontade de saber mais, a curiosidade que sua presença me instigava era mais saborosa que as respostas.
Com a chegada da peste, ele sumiu. Teria sido o primeiro a adoecer? Entrado para as terríveis estatísticas? Estaria na lista dos inumeráveis? Foram se passando semanas, o mês, a curva da servidão vazia e silenciosa. Angustiado, consultei o Google Maps, e ao aproximar a imagem do satélite, encontrei sua presença. Só alguém muito importante se incorpora à paisagem de um lugar, e ele estava lá, como o monumento que é, na fotografia capturada desde o espaço. Por um momento cheguei a pensar que a vida voltara ao normal, sem peste e máscaras. Que ouviria alguém mexendo na lixeira à procura de latinhas de alumínio. Esperançoso, fui até a curva da servidão para encontrá-lo, mas a calçada estava vazia.
Ele, cujo nome desconheço, faz muita falta! Sua loucura cotidiana temperava de sanidade este pedacinho da Ilha. Perguntei para a balconista do mercadinho se sabia de algo, e ela me respondeu que sim, estava bem, mas em casa, cuidando-se. Preservava-se para retornar vivo, pensei; afinal, não era doido. Feliz, prometi para mim mesmo que tão logo a peste termine e ele volte, conversaremos, farei minhas perguntas e ouvirei Daca, Ngerulmud, Juba e El Aiune.
E sentaremos no meio fio para bebermos uma cerveja no final da tarde.