Por Mauro Donato
Com sua política de factóides, permeada por atos de gentrificação e de cunho higienista, João Doria declarou guerra aos ambulantes da avenida Paulista. Visando a repercussão típica de papagaio da classe média, Doria quer ‘limpar’ a avenida com sua operação Cidade Linda contando com o apoio daquele cidadão que não para pra pensar qual prejuízo de fato aquelas pessoas dão para a cidade? Aliás, dão prejuízo?
Por que elas não podem vender seus trabalhos enquanto alguns mini-shoppings inteiros localizados na mesma avenida sabidamente vendem apenas produtos pirateados ou contrabandeados? O público que aplaude Doria é o mesmo que acha lindo comprar seus eletrônicos nesses locais enquanto censura o rastafari que vende uma escultura de arame, sem refletir qual dos dois realmente sonega impostos.
Ontem, o DCM flagrou mais uma tentativa da gestão Doria em tirar os artesãos e recolher seus pertences. O coordenador Benedito Cardoso chegou com mais duas viaturas da GCM (Guarda Civil Metropolitana) e disse que tinha ordens para não deixa-los ali. “Não pode ficar no chão, tem que estar em banca e com carteirinha”. Talvez inibida pela presença da reportagem, e também pelo protesto de populares, a operação de remoção bateu em retirada algum tempo depois.
O DCM conversou com Antonio José da Silva, mais conhecido como ‘Piauí’, que trabalha na região desde 1991. Com 52 anos de idade, politicamente muito ativo, o mais popular dos ambulantes da Paulista já passou várias descomposturas em golpistas de verde e amarelo adoradores do Tio Sam. Piauí criou suas duas filhas com seu trabalho e orgulha-se de nunca ter entrado em nenhum programa social tipo Bolsa Família – que acha excelente mas mal distribuído.
Por que querem tirar vocês da rua?
Se você não faz parte do sistema, ele te devora. Olha para isso: o cara coloca um paninho no chão, um punhado de arame e um alicate e faz a arte dele. Vai expulsar esse cara por quê?
O que acha do Cidade Linda?
O artista de rua em nenhum momento quer deixar a cidade feia. Feia é uma cidade sem harmonia. E arte de rua é harmonia. E não é só artesanato. É malabares, é músico, é o mágico. Quem tiver uma visão maior sobre o que é cultura e o que é a cidade, sabe que existem problemas maiores para se destinar toda essa energia. Poderia estar-se fazendo um trabalho educativo e não proibir a arte.
Tipo?
Por exemplo, você conheceu meu Monumento das Bitucas. Sabe o que aconteceu? O caminhão do lixo veio na madrugada, passou por cima e jogou na caçamba. Eu estava sendo convidado para ir para Milão, na Italia, com aquela obra. Ouvi dizer que a Soninha é assessora do cara lá (na verdade Soninha Francine é secretária de Desenvolvimento Social de João Doria). Ela conheceu aquele meu trabalho, gostaria de ver ela se manifestar sobre o que aconteceu com minha obra. Eu já estava trabalhando nela há 125 dias e ainda não estava na metade. Já tinha 2,5 metros de altura, mais de 65 mil bitucas de cigarro catadas aqui mesmo na Paulista.
Ou seja, o Cidade Linda deveria se preocupar em educar quem joga cigarro no chão?
Tinha que se fazer um trabalhao de antropologia antes de mais nada. Porque quanto mais pobre o país ficar culturalmente, ferrou. Brasileiro tinha que parar de ‘pagar pau’ para americano, para europeu e valorizar o artista daqui. Quando ele viaja, ele adora ver o artista de rua lá. Mas aqui fica contra a gente, diz que somos sujos, que ta errado.
O prefeito Doria esteve aqui ontem (domingo) e vocês não puderam trabalhar?
As pessoas que tem carteirinha e uma banca puderam, sim. Mas elas não são artistas. É gente que vai na rua 25 de Março, compra mercadorias e revende aqui. Então se você não se adequa ao ‘sistema’ eles não deixam você trabalhar. A GCM tinha ordem de que ele não poderia nem ver a gente, mas eu peguei e fiz uma pulserinha e coloquei numa menina na frente dele.
O que você chama de carteirinha é o TPU (Termo de Permissão de Uso) para comercializar mercadorias na cidade. Porém desde 2011 a Prefeitura não emite mais TPUs para ambulantes. As licenças só estão sendo concedidas para quem vende comida de rua.
A lei pra comida está certa, mas é injusta. Porque hoje, a tiazinha que há anos estava num ponto e que vendia seus bolos, aquele camarada que vendia a tapioca na esquina, hoje eles não estão trabalhando, hoje não pode mais. A onda hoje é food truck, uns caminhões de 200 mil reais. Vou repetir: ou você está no sistema ou ‘ta ferrado’. Agora me responde: Por que é tao complicado vender agua de coco aqui? É pra vender refrigerante?
O senso comum é o de que vocês não pagam os impostos que os comerciantes pagam.
Essa história de que a gente não paga imposto é mentira. O artesão paga imposto sim, porque com o dinheiro que ganho aqui vou no mercado fazer compras para minhas filhas, e todo produto tem imposto. Tem outra coisa, a gente alivia o peso para a sociedade. A gente não usa nenhuma dessas bolsas de governo. A gente se mantém com o próprio trabalho.
Além de estarmos com alto nível de desemprego.
Não é so isso. Existe a nossa cultura, a cultura do nômade, a do cara de estrada. Como ele vai se cadastrar? Quem conhece o Brasil é o artista que viaja. Só em 2015 eu fui até o Piauí de bicicleta e depois até Boa Vista em Roraima. Dormindo e comendo em troca do meu trabalho. Como eu poderia estar cadastrado em todas as cidades do país? A gente não tem culpa dos problemas que estão aí. Antes de nos escurraçarem, tinham que nos ouvir. Tinham que estar preocupados em cadastrar outras coisas, a arte tem que ser livre. Arte é pensamento. A gente não tem problema nem dá problema a ninguém. A única coisa que nos atrapalha são as perseguições. Então espero que eles sejam inteligentes para conversar primeiro, nos ouvir. Domingo vamos fazer um piquenique aqui para debater esse assunto, ta todo mundo convidado.
E aí prefeito, vai?
Fonte: Diario do Centro do Mundo