O Herdeiro do Culture

Por Raul Longo.

A afirmação do Reggae por todo o Caribe, inclusive do que dele temos no norte do Brasil, sempre foi mais do que ao sul do país entendemos como mero hit ou sucesso de época. Foi e é uma reação à hegemonização cultural da indústria de comunicação pelos moldes europeus assimilados nos Estados Unidos, onde da miscigenação do Country de francas origens irlandesas, também em resistência ao imperialismo britânico, com o Blues das sequestradas e escravizadas savanas africanas, se forjou o Rock and roll mais tarde neurotizado pelo urbanismo da civilização branca que confina os próprios filhos ao out, fora da sala, do interior da casa, da circunspecção necessária ao convívio familiar cristão.

E chegamos a barulheira dos sotãos e garagens adotada pela indústria de comunicação que enxergou no berreiro e bate lata uma fonte rentável, padronizando mundo afora o que Theodor Adorno previu como o “tempo em que não se distinguirá música de ruído”.

Em que pese o mau humor dos tradicionalistas, há de se convir que em todo o mundo se compôs muito rock saudável às mentes e ouvidos, inclusive europeus. A esses fez bastante bem a miscigenação com o apurado senso rítmico de África e na própria Inglaterra surgiram expressões admiráveis.

Ainda assim os vampiros da indústria fonográfica a sugar o sangue das neuras familiares, transformando tudo em fácil lucratividade e promovendo o esvaziamento cultural do continente e do mundo, não desistem de impor a linguagem do nada, da consciência acomodada aos interesses do império político e econômico. Mas mesmo lá na sede do império há resistência e sempre retornam às raízes do blue enquanto nas ruas e guetos se resgatavam linguagens ainda mais antigas das tradições da literatura oral africana, como o Rap.

O Wikipédia acredita que o rap nasceu na Jamaica, mas em verdade ali foi retomado nos anos 60 advindo da ancestralidade dos escravos que por todo o Caribe relatavam histórias pessoais e de suas tribos através do contar rimado, muitas vezes marcando um ritmo percutido no bater das mãos no próprio corpo. Daí não ser coincidência o surgimento quase simultâneo do Reggae naquela mesma Kingston, capital da Jamaica.

São muitas, variadas e ricas as expressões musicais geradas por toda a América Negra e, sem dúvida, não seria correto dizer que o Reggae seja filho do Rap, pois entre si os diversos estilos se influenciaram a ponto de ser impossível definir quem o filho ou pai de quem, mas na temática comum a todos, onde invariavelmente se insere a denúncia social, o protesto à repressão policial e à opressão aos negros (inclusive nos primeiros rock), se evidencia a continuidade da mesma história de quando os avós dos criadores desses ritmos eram laçados do outro lado do Atlântico para o trabalho escravo nesta América do Norte, Centro ou Sul.

Assim como o Jazz ou o Samba, o Reggae também tem seus diversos ícones. Como no Jazz ou no Samba, esses expoentes não se destacaram apenas pela qualidade do que produziram e produzem, mas também pelo comportamento, pela irreverência que muita vezes caracteriza uma atitude de resistência cultural. E tanto naqueles quanto nesse, uma resistência entrincheirada na cultura original: a africana.

A desumana e violenta cultura cristã e europeia praticamente dizimou com as ricas culturas das Américas, fosse a de civilizações como as dos Maias, Incas e Astecas; fossem as espiritualizadas tribos iroqueses das montanhas e comanches das pradarias, fosse a dos especialistas em conhecimentos naturais da Amazônia, dos Andes ou da Mata Atlântica, descendo pelo cerrado até os pampas e a patagônia.

Na maioria das ilhas caribenhas, como em Jamaica, por exemplo, o extermínio foi completo. Mas apesar da violência e preconceito os colonizadores não deram conta de criar e manter uma nova cultura, não. Nem mesmo com o advento da tecnologia da indústria de comunicação. E o vazio promovido por essa falta de capacidade de substituir o que destruíram, em cada país americano se preenche com a notável sonoridade da cultura africana.

Lá na Jamaica, um dos ícones dessa resistência foi Joseph Hill, fundador do Culture, o grupo que o acompanhou pela Europa, África e Estados Unidos realizando uma média de 100 apresentações por ano. Hill se destacava pelo bom humor, o gingado de sua dança e pela temática das letras de suas músicas, abordando os legados e reminiscências da escravidão entre seu povo.

Joseph Hill faleceu em 2006, depois do Culture receber 5 estrelas da Rolling Stone Record Guides. Mas o grupo ainda continua, hoje liderado pelo herdeiro da arte e da simpatia de Joseph que se apresentará no próximo sábado, dia 8 de dezembro, na Praia da Joaquina em Florianópolis, dando continuidade a essa história de resistência afro-americana. Agora pelo carisma e a voz de Kenyatta Hill.

 

 

 

 

 

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