Eu frequento a mesma padaria, diariamente, há mais de dois anos. A senhora do caixa, com lenço preto no cabelo e camiseta impecavelmente branca e bem passada, repete dia sim e outro também a mesma frase:
– Bom dia. Como vai? Algo mais?
O crachá informa que seu nome é Ana.
Nestes mais de 24 meses, em nenhum momento, ela me viu. Olha os pães e o queijo, a geléia e o leite, embrulha cada qual com destreza, marca o preço num caderno, registra no computador e devolve tudo atenta às mãos do próximo cliente.
Ontem, depois de informado o valor da compra, entreguei-lhe uma nota de cinquenta reais. E ela perguntou, mexendo nos pacotes:
– É débito ou crédito?
Pegou o dinheiro e repetiu a pergunta, colocando a água em outra sacola:
– É débito ou crédito?
– É à vista, respondi.
Ao perceber que tinha feito uma pergunta sem sentido, olhou nos meus olhos e riu:
– Desculpe, é o hábito.
Percebi que aquela mulher de lenço preto no cabelo e camisa branca, tinha olhos verdes claros, muito bonitos. Como se quisesse mudar de assunto, sem jeito e sem segundas intenções, me perguntou:
– É a primeira vez que o senhor vem aqui?
– Mais ou menos, respondi.
Fui embora lembrando-me da cena final do Grande Ditador, primeiro filme falado de Chaplin, lançado durante a Segunda Guerra. A história é uma sátira ao nazismo e ao fascismo. O personagem principal dirige-se à multidão e diz, entre outras coisas: “Não sois máquina, homens é que sois”.
Quantas vezes por dia nos esquecemos disso? Quantas coisas fazemos mecanicamente, sem sentir, sem ver e sem ouvir? Quantas pessoas com as quais convivemos, no trabalho ou em casa, passam por nós sem serem vistas de verdade?
O personagem de Chaplin, em frente à plateia que o ovaciona, consciente de que o discurso está sendo transmitido pelo rádio, dirige-se a Hannah, seu grande amor, de paradeiro desconhecido:
“Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”.
O Brasil, dizem as estáticas sociais e econômicas, está saindo das trevas. Mas as pessoas – e principalmente os mais novos, com seus iPods, iPads e iPhones – vivem olhando para baixo, sem reparar ao redor, e fazem isso automaticamente, como Ana, a funcionária da padaria, a mulher de olhos verdes claros, olhos que não vêem.
Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.