O governo invisível

Por Thiago Burckhart, para Desacato.info

No ano de 2013 o ex-técnico da CIA (Central IntelligentAgency) Edward Snowden foi responsável por um dos maiores vazamentos de informações da história política dos Estados Unidos da América. Por meio de reportagens publicadas nos jornais The Guardian e The Wasington Post no mês de junho,Snowden denunciou o sistema de vigilância global arquitetado e utilizado pela CIA como instrumento de controle político e econômico por parte do governo estadunidense. A revelação chocou a comunidade internacional e confirmou as teorias, consideradas até então conspiratórias, de controle virtual por parte dos órgãos de Estado dos EUA.

Na reportagem publicada no jornal The Guardian, Snowden afirmou que a National Security Agency (NSA) coletou dados de ligações telefônicas de milhões de cidadãos e cidadãs estadunidenses a partir do programa de monitoramento chamado de PRISM. Na mesma reportagem foi revelado que o governo estadunidense tinha acesso a fotos, e-mails e videoconferências de pessoas que usavam os serviços de empresas da internet. Meses depois, um dos jornalistas que teve acesso aos documentos sigilosos, Glenn Greenwald, revelou que o Brasil é o grande alvo dos Estados Unidos, afirmando que o governo deste país espionou os e-mails da ex-presidenta Dilma Rousseff e seus assessores, o que é uma grande violação à soberania nacional brasileira.

Após as revelações, Snowden passou a ser investigado pelo FBI, tendo sido apresentadas acusações criminais contra ele pelos crimes de espionagem, furto e conversão de propriedade do governo. Snowden teve seu passaporte anulado pelas autoridades estadunidenses, mas conseguiu se asilar em Moscou, tendo seu asilo concedido no mês de agosto de 2013, encontrando-se até a presente data neste mesmo local. Logo após esse evento, o Chefe da Direção de Inteligência Nacional, James Clapper, pediu que Snowden restituísse os documentos para a NSA, em razão de serem ameaças à segurança nacional.

O filme intitulado Snowden (2016), dirigido por Oliver Stone, conta a história de Snowden em seu trabalho na CIA. Desde um sua juventude em que fazia parte do exército e acreditava piamente nas instituições e governantes de seu país, até o momento em que se torna consciente da dimensão e profundidade da problemática da espionagem, o que considera serum atentado contra os direitos e liberdades constitucionais. O filme foi recentemente lançado no Brasil, ganhando um subtítulo “Herói ou Traidor”, que foi criticado pelo próprio diretor.

Invisibilidade do poder

Partindo de uma perspectiva histórica não é novidade que forças invisíveis atuaram de diversas formas com o objetivo precípuo de preservarem seus interesses, tendo diversos autores teorizado sobre essa questão. Pode-se dizer que o poder político institucional sempre esteve à mercê dessas forças que podem influenciar diretamente a tomada de decisões. O governo invisível pode ser entendido como o poder não revelado, não anunciado, invisível a olho nu, que tem em suas mãos a capacidade de interferir no processo de decisão interna de um Estado. Hodiernamente, as estruturas econômicas internacionais podem ser, em certa medida, definidos como espécies de governos invisíveis. Contudo, as revelações de Snowden demonstram que a invisibilidade do poder estava sendo articulada e arquitetada no interior do próprio Estado. As estruturas do Estado foram utilizadas para o controle não apenas de seus cidadãos (interesses internos do país), mas de governantes de outros países (interesses externos), confluindo numa escala poderosa de controle político.

O governo invisível ganha ainda mais poder com o aprimoramento dos recursos tecnológicos e informativos. A era digital potencializa de modo absurdo a invisibilidade do poder, de modo quea torna ainda mais invisível, incrementando o controle político através do manto da falsa noção de privacidade. O informacionismo se estrutura, nas palavras do sociólogo espanhol Manuel Castells, como o novo modelo de desenvolvimento, em que visa o aprimoramento da dimensão da tecnologia. Nesse contexto o Estado passa a ser o catalizador da violação a direitos – sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais – em nome de uma suposta segurança nacional, chamando para si o papel de novo Leviatã que não mais atua de modo explícito, como forma de demonstração de poderio bélico ou do suplício na corporalidade alheia, mas de modo sutil, por meio das margens, por trás das cortinas.

A evidência de uma contradição

O vazamento das informações e documentos por Snowden causou um mal-estar político em nível internacional. Apesar de passageira, a crise diplomática atingiu de modo mais contundente a relaçãodos Estados Unidos com o Brasil e Alemanha, em razão dos documentos terem revelado que os Estados Unidos controlaram as informações internas de ambos os países. A crise diplomática foi reverberada nas instâncias das Nações Unidas, tendo o Brasil e Alemanha apresentadouma proposta de Resolução na Assembleia Geral da ONU sobre espionagem internacional, aprovada por unanimidade.

A resolução n. 68/167 sobre o direito à privacidade na era digital – aprovada em 18 de dezembro de 2013 – foi a primeira contundente resposta internacional às revelações feitas por Snowden. O texto reafirma os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em específico o direito humano de não ser submetido às ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, bem como a necessidade de respeito aos direitos humanos também na esfera digital. A resolução reafirma que os Estados devem assegurar o total cumprimento de suas obrigações no que tange à lei internacional dos direitos humanos, sobretudo no que diz respeito à privacidade.

A resolução põe em evidência que a vigilância e a interceptação ilícita ou arbitrária das comunicações, assim como o acesso ilícito ou arbitrário a dados pessoais, ao constituírem atos de instrução grave, violam os direito à privacidade e à liberdade de expressão e podem ser contrários aos preceitos de uma sociedade democrática. É aí que está a evidência de uma contradição. Pois, o país que exalta o lema da democracia e se apresenta como o país mais democrático do mundo é também aquele que age gravemente contra a privacidade e a publicidade de seus atos, tanto para com sua própria população, como para com outras sociedades.

Nesse sentido, as revelações feitas por Snowden podem contribuir para a reflexão teórica e política no sentido de dar subsídios para conceber a invisibilidade como um conceito que deve ser analisado como categoria política. E, a partir disso, há a premente necessidade de se discutir socialmente – mesmo no âmbito de sociedades que já são formalmente democráticas – a publicidade dos atos governamentais. O distanciamento entre discurso e prática, a confusão entre público, privado, secreto e publicável ganha relevância nesse contexto demonstrando que essas categorias merecem maior atenção do ponto de vista teórico. A partir disso, pensar em limites da ação do Estado e do governo numa dimensão sigilosa é um dos pontos centrais das democracias na era digital.

Foto de capa: Cena do filme: “Snowden”, de Oliver Stone.

Thiago Burckhart é estudante de Direito.

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