“O governo federal está financiando setores anti-indígenas”

1-Ssi7nVQpEwiGfVOVytx1bA

Por Daniel Giovanaz, do Maruim.

Entrevista com Cleber Buzatto, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Duas crianças foram estupradas no interior das aldeias onde viviam; uma em Araquari, outra em Balneário Barra do Sul. Roberto da Silva, do povo Guarani-Kaiowá, foi espancado com pedras e pauladas pelos vigilantes da Fazenda São Miguel, em Lebon Régis, enquanto trabalhava na colheita da maçã em fevereiro de 2014. Na aldeia Kondá, tradicionalmente ocupada pelo povo Kaingang, em Chapecó, as obras do novo prédio da escola Sape-Tykó estão paralisadas há um ano, e o prazo de conclusão já foi prorrogado três vezes. Episódios como esses, que evidenciam a morosidade do poder público ou a violação de direitos humanos, estão reunidos no relatórioViolência contra os povos indígenas no Brasil, divulgado em junho deste ano pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). O documento contém dados referentes a 2014 e descreve 40 casos ocorridos em Santa Catarina, dos quais onze estão relacionados à demora nos processos demarcatórios.

O MARUIM visitou a sede do Secretariado Nacional do Cimi em Brasília e conversou com o Secretário Executivo Cleber Buzatto sobre as tendências do relatório e as perspectivas de enfrentamento aos setores anti-indígenas no país.

Clique aqui para acessar o relatório, e confira abaixo a entrevista completa:

MARUIM—O relatório descreve episódios de violência contra povos indígenas em diferentes regiões de Santa Catarina em 2014. Existe alguma peculiaridade na natureza desses casos, em comparação com o que se verificou em outros estados brasileiros?

Cleber Buzatto—Houve um aumento significativo na violência contra os povos, de modo geral, nas suas diferentes matizes. No caso específico de Santa Catarina, o que fica mais evidente no relatório é a violência por omissão do poder público, especialmente no que diz respeito à morosidade do governo federal na condução dos procedimentos de identificação e demarcação das terras indígenas. E é claro que os casos relatados também contemplam outros tipos de violências, como o racismo e a discriminação étnico-cultural: só em Santa Catarina, foram notificadas pelo menos cinco ocorrências desta natureza. Então, em termos de peculiaridades, são basicamente esses elementos, além da desassistência escolar indígena, que também chama a atenção nos dados relativos ao território catarinense. Mas a questão central tem a ver com a questão da disputa fundiária mesmo, e é isso que tem suscitado mais debates no estado e em todo o Brasil.

M—A fotografia que ilustra a capa do relatório do Cimi retrata justamente um episódio de violência ocorrida em Santa Catarina. O que representa exatamente aquela imagem, e por que ela foi escolhida para abrir o relatório?

CB—A terra indígena se chama Araçaí, e é uma área que já foi declarada pelo Ministério da Justiça como tradicional do povo Guarani. Ela está localizada no Oeste do estado, entre Saudades e Cunha Porã, e lá tem uma oposição muito grande por parte dos não índios da região em função da demarcação da terra. Quem bateu a foto foi o missionário Jacson Santana, coordenador da Regional Sul do Cimi, na beira da rodovia que leva à terra indígena. Como se pode ver, os não-índios plantaram 23 cruzes ali, sinalizando aos Guarani que o que os espera naquela região é a morte?—?são exatamente 23 as famílias que estão à encabeçando essa luta. Então, é um retrato de uma violência simbólica, uma ameaça de morte coletiva contra um grupo social. Entendemos que essa história tem um peso político muito impactante, e por isso a imagem foi selecionada para representar esse conjunto de violências contra os povos do país.

M?—?Além de questões relacionadas à disputa fundiária, o relatório expõe um aumento do número de casos de indígenas que trabalham como assalariados durante a colheita da maçã, no Meio Oeste. Quais as estratégias do Cimi para enfrentar a lógica agroexportadora e evitar que indígenas sejam cada vez mais utilizados como mão-de-obra barata na agroindústria?

CB—A não demarcação das terras indígenas produz outras formas de violência, e uma delas é a falta de opções de subsistência, justamente porque muitas famílias não dispõem de terras, ou possuem uma área muito insuficiente, restrita. Assim, a necessidade faz com que eles sirvam de mão-de-obra e sejam usados em situações análogas à escravidão, como no caso da plantação de maçã, em que eles ficam longe do convívio dos filhos e da família durante períodos longos, de até três, quatro meses. Nós sabemos também que nos grandes frigoríficos da região Oeste, especialmente em Chapecó, grande parte da mão-de-obra que trabalha nos piores horários, na madrugada, é indígena. É uma forma de garantir a sobrevivência, mas é uma forma extremamente degradante.

O momento atual é difícil e o enfrentamento será bastante complicado, porque o próprio governo federal está financiando os setores anti-indígenas. Um exemplo disso são os planos Safra para o agronegócio, que vão contar neste ano com 187 bilhões de reais, com juros subsidiados pelo Tesouro da União. Com esses privilégios econômicos, é natural que se verifique um aumento no número de parlamentares representantes dos latifundiários no Congresso e um avanço dos setores ruralistas nos ministérios. Eles estão ganhando terreno, e a maior prova disso é a ministra da Agricultura, Kátia Abreu, que preside a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), justamente a instituição que comanda e coordena os ataques violentos contra os povos e seus direitos.

M—No ano passado, o Diário Catarinense veiculou uma série de reportagens sobre o conflito fundiário na região do Morro dos Cavalos, na Grande Florianópolis, material que foi qualificado no documento do Cimi como “anti-indígena”. Como a cobertura realizada pelos grandes grupos de comunicação, especialmente pela RBS, interfere na luta pela demarcação de terras na região Sul? A comunicação produzida pelos movimentos sociais e indigenistas na internet, através de blogs e redes sociais, não tem sido eficiente na disputa da opinião pública?

CB—Nós acompanhamos com bastante preocupação a repercussão dessa reportagem. Essa estratégia, aliás, tem sido utilizada com muito frequência pelos setores anti-indígenas no Brasil: eles usam os aparatos da comunicação concentrada para impor sua visão de mundo. Na região Sul, há uma concentração desastrosa dos grandes veículos de comunicação. A família Sirotsky, da RBS, controla um grande latifúndio, que engloba a repetidora da Globo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, as rádios, e também os jornais de maior circulação. Basicamente, eles generalizam uma perspectiva de entendimento sobre o uso da terra e sobre as formas de produção, como se essa fosse a única maneira legítima de relação com a terra. E a gente insiste que, embora essa perspectiva seja hegemônica, há outras cosmovisões que também são legítimas, como a dos povos originários.

Enfim, existe uma falsa dicotomia que é alimentada ideologicamente com o uso dos grandes veículos de comunicação pelos setores políticos e econômicos que se beneficiam de um modelo de produção que tem como única perspectiva o uso da terra como mercadoria, como meio de produção para obtenção de grandes lucros?—?que costumam ser concentrados por poucas pessoas, como acontece em Santa Catarina. É muito difícil fazer frente a eles em termos de alcance da informação, mas a gente confia que esses poderes econômicos podem ser superados pela luta, resistência e mobilização dos povos.

M—A ditadura militar (1964–1985) perseguiu e assassinou lideranças indigenistas que reivindicavam a demarcação de terras no Brasil. Quais foram as conquistas do processo de abertura política no que se refere a garantias de segurança dos povos na luta por seus direitos? Por que o número de casos de violência voltou a crescer, 30 anos após o início da redemocratização?

CB—A atual conjuntura é muito semelhante àquela do período ditatorial, com um avanço significativo dos setores anti-indígenas interessados na exploração das terras e fortalecidos com o aumento dos valores dascommodities, e com grandes financiamentos do governo federal, como eu disse. Com recursos públicos, eles transformam sua força econômica em representação política, no Congresso, nos Ministérios, e dificultam cada vez mais qualquer mobilização.

Os povos enfrentaram períodos extremamente adversos durante a ditadura. O governo militar trabalhou, apoiou e financiou uma perspectiva de ocupação do território nacional que se contrapunha frontalmente aos direitos dos povos indígenas. Muitos deles inclusive foram dizimados em função dos processos de colonização, de avanço das fronteiras agrícolas, de grandes obras, especialmente de infraestrutura, como rodovias, patrocinadas pelo regime. O projeto deles era muito claro: “integrar” os povos à chamada comunhão nacional, para então rasgar todo e qualquer direito desses povos a seus territórios. Embora tenha havido milhares de vítimas nesse processo, pode-se dizer que os povos saíram vitoriosos contra esse projeto, e conquistaram na Assembleia Constituinte dois artigos que são muito explícitos no reconhecimento por parte do direito a seus usos, costumes, crenças, tradições, línguas, e às terras tradicionalmente. O artigo 232, por exemplo, reconhece os povos como sujeitos legítimos de direitos, inclusive para ações judiciais. Pode-se dizer, portanto, que a Constituição Federal de 1988 contempla essa ideia de legitimidade do “ser indígena”.

Porém, as forças políticas e econômicas interessadas na exploração dessas terras para gerar mercadorias para apropriação e comércio continuam atuando na democracia da mesma forma como atuavam na ditadura. Os representantes dessa classe têm feito uma pressão sistemática e um ataque violento contra os direitos que os povos conquistaram por ocasião da Carta Magna. Esse ataque tem ficado cada vez mais evidente e objetivo nos últimos três ou quatro anos, e o Estado brasileiro tem respondido afirmativamente às pressões dos setores anti-indígenas. Por exemplo, no âmbito do Poder Legislativo, eles têm se utilizado de instrumentos de ataque aos povos e a seus direitos de forma permanente e sistemática.

Uma das armas mais conhecidas é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, por meio da qual a bancada ruralista tenta impedir toda e qualquer demarcação de terras no país, trazendo para si o poder de decidir se uma terra é ou não é indígena. E é evidente que deputados como o Valdir Colatto [PMDB-SC] ou o Luis Carlos Heinze [PP-RS], que são representantes do agronegócio, financiados por grandes conglomerados econômicos que se alimentam da exploração da terra, defenderão a perspectiva anti-indígena, e sempre vão ser contra as demarcações. Mas, além da PEC 215, tem o Projeto de Lei 1610, que propõe a regulamentação da exploração mineral em terras indígenas, com a intenção de invadir, explorar e mercantilizar esses minérios. Enfim, a ideia é transformar os bens que a natureza fornece em mercadoria para exploração, como já acontece com ascommodities agrícolas no país.

Além disso, no Poder Executivo também existem medidas anti-indígenas, como a Portaria 303 da Advocacia Geral da União e o Decreto Interministerial 7957 assinado pela Presidência da República, que criam uma espécie de braço do Estado brasileiro para fazer frente às ações das populações locais contra empreendimentos projetados, financiados e implementados pelo governo; sem falar da própria decisão política de paralisar os procedimentos de demarcação pelo país. E todas essas ações tem provocado reflexos ainda mais preocupantes no âmbito do Poder Judicário: decisões recentes tomadas por uma das turmas do Supremo Tribunal Federal (STF) anularam atos administrativos do Executivo em relação à demarcação de terras indígenas, dando abertura para uma reinterpretação reducionista do texto constitucional?—?artigo 231 –, especialmente no que se refere ao conceito de “terra tradicionalmente ocupada”. Estou me referindo a decisões relativas à Terra Indígena Guirarocá, do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul; à Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, também no Mato Grosso do Sul; e à Terra Indígena Porquinhos, do povo Canela/Apãniekra, no Maranhão. Essa turma do Supremo, capitaneada pelo ministro Gilmar Mendes, que reconhecidamente pauta e reproduz as teses do agronegócio no STF, se opondo a processos de demarcação de terras indígenas e à titulação de terras quilombolas, utilizou-se do argumento de que aquelas não seriam “terras tradicionais”. Eles têm defendido isso sob a justificativa de que os povos em questão não estavam na posse física das terras em 5 de outubro de 1988, o que caracteriza a chamada tese do marco temporal. Enfim, esses setores se apoiam em teses reducionistas, fundamentalistas, que são, por si só, uma violência.

É contra tudo isso que os povos têm se mobilizado nos últimos anos, e é contra isso que nós temos que continuar lutando.

Foto: Reprodução/Maruim

Fonte: Maruim

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.