Por Marcelo Pellegrini. Em junho de 2014, o número de presos no Brasil superou 570 mil pessoas, tornando o País o terceiro maior em população carcerária do mundo, apenas atrás de Estados Unidos e China, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em doze anos, o crescimento carcerário foi de mais de 620%, enquanto o populacional foi em torno de 30%.
A crise é grave e não tem perspectivas de ser resolvida. Este é o diagnóstico de Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, a principal organização de fiscalização dos Direitos Humanos nos presídios brasileiros. Segundo ele, o governo de Dilma Rousseff (PT) assegurou ganhos sociais importantes, mas ao mesmo tempo reprime duramente os setores mais pobres da sociedade, seja por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ou da violência policial direcionada contra populações de jovens pobres e negros. “O Brasil, sob a administração do PT, vem adotando a lógica de mais vagas para mais presos”, afirma. “As principais políticas federais na área de segurança pública são direcionadas à repressão e à construção de novos presídios.”
Confira os principais trechos da entrevista:
CartaCapital: O Brasil é um País que prende muito, prende quem não deveria estar preso e recupera pouco. Esta estratégia agrava ainda mais o problema pois aumenta a população carcerária. O que precisa ser revisto em relação à política prisional do governo Dilma no primeiro mandato?
Paulo Malvezzi: A Dilma deu seguimento às políticas que o Lula já havia implantando em seus oito anos de governo. Então, o governo federal do PT, na verdade, se caracterizou como o governo do encarceramento em massa. Neste período tivemos o maior aumento da população prisional do País, sendo que 43% é provisória, ou seja, ainda aguarda julgamento. Apesar deste cenário, nenhuma política foi adotada para que se pudesse modificar estruturalmente esse quadro. Tanto o governo Lula quanto o governo Dilma são responsáveis pelo atual quadro de encarceramento massivo. Houve algumas políticas progressistas e alterações processuais interessantes, mas que não foram articuladas dentro de um programa efetivo de encarceramento e, por isso, foram ineficazes. O maior investimento do governo federal na área de segurança tem sido na construção de presídios, seja construindo presídios federais ou financiando a construção de presídios nos estados. E temos repetido que quanto mais presídios, mais presos teremos. Esse dinheiro deveria ser revertido para programas que evitem o encarceramento.
CC: O Brasil vive uma situação crítica de superlotação e de violações contra os Direitos Humanos nos presídios. Com isso, como é possível equalizar as superlotações com o fim da política de encarceramento em massa?
PM: O governo brasileiro é incapaz de dar conta da população prisional atual. Isso é reconhecido pela ONU e admitido por diversos representantes do governo e do Judiciário. Para gerenciar o tanto de pessoas que o Brasil pretende prender, teremos que fechar hospitais e escolas para financiar esse posicionamento. A discussão não é mais vagas, mas menos presos. Precisamos avançar isso dentro de uma política integrada. A gestão prisional passa também pelo Legislativo e o Judiciário, não só pelo Executivo. Se não tivermos uma diretriz política de que o encarceramento envolve os três poderes, com o Executivo atuando nesse sentido, sempre teremos reformas ineficazes.
CC: Falta outro posicionamento na jurisprudência brasileira para usar mais penas alternativas e prender menos?
PM: Não é uma questão somente de penas alternativas. As penas alternativas sempre foram utilizadas para crimes não cobertos pelo Código Penal e nunca como um substitutivo para a pena. Hoje, a formação dos juízes o leva a colocar em prática aquilo o que a sociedade sempre pede: mais encarceramento. Algo que poderia influenciar na redução do encarceramento é a criação de mecanismos de democratização da gestão do Judiciário. Algo que permitisse à população pressionar o Judiciário.
CC: O estado de São Paulo, que possui a maior população carcerária do Brasil, inaugurou no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital, a prática de Audiências de Custódia, uma das recomendações da Comissão da Verdade. Colocar uma pessoa que cometeu um crime em flagrante diante de um juiz nas primeiras 24 horas pode evitar abusos e torturas policiais, mas será capaz de reverter a política de encarceramento?
PM: Não. A audiência de custódia tem sido vendida como uma panaceia para o encarceramento e isso não é verdade. Os mesmos juízes que, hoje, prendem provisoriamente e condenam pessoas por motivos absurdos são os mesmos que estarão na audiência de custódia. Ou seja, a postura dos juízes não será alterada com mais um momento processual, que é a audiência de custódia. Há uma importância simbólica para o avanço na garantia de direitos de quem é julgado, mas não é solução para o encarceramento. No próprio provimento do Tribunal de Justiça paulista há diversas obscuridades. Uma delas, por exemplo, diz que pelas circunstâncias pessoais do preso, o delegado não precisa encaminhá-lo para um juiz no prazo de 24 horas, sem esclarecer que circunstâncias são essas. Ou seja, há margens para o descumprimento da audiência de custódia.
E os juízes são insensíveis a diversos casos de tortura, conforme mostram as denúncias da Pastoral Carcerária. Tenho dúvidas se mesmo vendo uma pessoa quebrada eles darão os encaminhamentos necessários. Lembrando que os juízes, por obrigação, vistoriam os presídios e fazem pouco ou nada em relação aos abusos contra os Direitos Humanos. Com isso, a audiência de custódia é uma dentre muitas medidas necessárias, mas não é suficiente para resolver os problemas.
CC: A falta de confiança na polícia também vêm crescendo. Segundo uma pesquisa da FGV, em 2012, 70% da população disse não confiar na instituição, sendo que uma em cada três pessoas temem sofrer violência policial. Ao mesmo tempo, o pedido para a reforma das polícias tem ganhado força. Na sua opinião, o governo Dilma tem interesse em fazer essas reformas e apoiar os projetos do gênero que já tramitam no Congresso?
PM: O que o governo tem indicado é uma maior participação da União na gestão da política de segurança pública, o que vai à contramão dos pedidos de desmilitarização da polícia. Sem a desmilitarização, a relação de inimigo da polícia em relação a comunidades pobres não será alterada. Sem essa alteração, tenho grandes dúvidas, para não dizer absoluta certeza, de que continuaremos tendo uma polícia altamente letal e que tem a desconfiança de uma parcela da população, principalmente aquela que sofre com mais brutalidade a violência policial.
CC: Mas há vontade política para encampar essa reforma?
PM: Não, nenhuma.
CC: Segundo dados do Ipea, os custos da violência são estimados em 5,4% do PIB em 2013. Tendo em vista isso, qual é a receita que podemos esperar do governo Dilma neste segundo mandato: o combate ou a recuperação de infratores?
PM: Como foi exposto na campanha, o governo continuará se pautando por medidas repressivas, sem mexer na estrutura do sistema penal, do Judiciário ou da Polícia. Hoje, há um esgotamento das possibilidades de gestão da Segurança Pública e do sistema penitenciário. Ou o governo rompe com algumas políticas do passado ou ficará preso a elas. A Pastoral Carcerária não vê qualquer perspectiva de mudança do governo Dilma nesse sentido. O que está sendo adotado é o mesmo que outros governos fizeram: política pura e simples de repressão.
CC: Não é uma contradição um governo que investe tanto em programas sociais agir de maneira tão repressiva contra a violência?PM: Um governo repressivo é de esquerda? Ele pode ser de esquerda em questões de assistência social, mas por outro lado é um governo altamente repressor. Isso foi evidenciado durante as manifestações de junho e na Copa do Mundo, por exemplo. Sempre que o governo opinava era no sentido de dispor da Força Nacional para controlar manifestações ou declarações do ministro da Justiça praticamente criminalizando os manifestantes. Dificilmente tivemos uma posição do governo, em todos esses anos do governo Lula e Dilma, que pudesse frear a violência policial. Eu não vejo contradição. Para mim, esse não é um governo de esquerda ou com políticas progressistas. Há avanços sociais, mas no aspecto geral é um governo extremamente repressivo.
CC: Nos últimos 15 anos, o número de pessoas presas por tráfico de drogas triplicou. Isso indica que para resolver o problema prisional é preciso ter outro olhar sobre o pequeno traficante?
PM: A questão é quem é o pequeno traficante. Geralmente, ele é branco, jovem e preso com alguma quantidade de droga. Já o negro e pobre será julgado como grande traficante. Nos últimos dez anos, houve aumento de cerca de 260% de mulheres presas, a maioria por crimes ligado ao tráfico de drogas. Essa definição de pequeno ou grande depende do entendimento do juiz e, na prática, é uma questão das circunstâncias sociais do acusado. O que precisamos ter é outra perspectiva sobre a nossa política de drogas. O que a Pastoral tem defendido de forma consistente é a não criminalização das drogas. A política de guerra às drogas faliu. Com o conservadorismo do nosso Judiciário vale a máxima: as melhores leis aplicadas pelos piores juízes são iguais às piores leis.
CC: A corrupção não é também um elemento chave para a crise do sistema prisional?
PM: A corrupção sustenta o sistema penal e vice-versa. O sistema prisional e de segurança pública precisa da corrupção para funcionar. O sistema penitenciário encontra “paz” quando o crime organizado consegue acertar seus objetivos junto ao governo do estado. Uma pesquisa recente mostra que o crime organizado e o sistema penitenciário têm uma relação simbiótica, o que é verdade. Da mesma forma que o crime organizado precisa de tranquilidade nas prisões para gerenciar o tráfico de drogas, o governo do estado se beneficia quando o sistema penitenciário está em paz, pois assim ele garante a ordem no sistema.
CC: O recorde de assassinatos vivido pelo Brasil é considerado pela Organização Mundial da Saúde como uma situação epidêmica. Existe alguma posição do Ministério da Justiça para reverter esse quadro, que é agravado nas periferias e na população jovem?
PM: Não há qualquer iniciativa para reverter esse quadro porque isso é um problema estrutural. Se não mudarmos estruturas básicas da nossa polícia, do nosso sistema penal e penitenciário não teremos qualquer diminuição do número de mortos. O governo de forma insistente tem trabalhado apenas algumas pequenas políticas públicas e reparos legais que são insuficientes para reverter esse quadro de morte massiva. O próprio movimento negro acusa o estado de genocídio da população jovem, negra e de periferia.
CC: Na sua opinião, o apoio do Ministério da Justiça às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a tentativa de nacionalizar essa iniciativa para outras capitais, como aconteceu com Curitiba, vai à contramão do que deveria ser a política de segurança pública no Brasil?
PM: Com certeza. A política de UPP é uma política de ocupação e militarização da periferia. Não há nenhuma tentativa inovadora. É uma resposta de força e repressão. Em tese, o eixo da política de repressão é o mesmo da política de pacificação. Para nós, a única saída para essa crise prisional é uma reforma ampla, cujos itens envolvem desde a desmilitarização da polícia até a descriminalização das drogas, passando por uma ampliação dos direitos dos presos, o combate à tortura e à proibição da privatização dos presídios. Todas essas recomendações constam em nossa agenda pelo desencarceramento, entregue ao governo em 2013 e até agora sem resposta.
Foto: Reprodução/Carta Capital
Fonte: Carta Capital