Por Maurício dos Santos, para Desacato.info.
O primeiro dia de 2011 parecia inaugurar um novo período na história da vida das mulheres brasileiras. Pela primeira vez uma delas assumia a Presidência da República e compunha o ministério com maior representatividade de gênero de todos os tempos. O que em termos simbólico já seria um grande avanço refletiu-se ainda em políticas que contribuíram para a emancipação de mulheres por meio do enfrentamento à violência doméstica e da promoção da autonomia financeira.
“Hoje, pouco tempo depois deste período em que avanços eram construídos, mas tanto ainda estava por fazer, nos deparamos com o retorno à idade das trevas no Legislativo, e um profundo descaso do Executivo”, reflete a advogada trabalhista Ana Bárbara.
Para Ana e muitas outras, o Congresso Nacional faz os mais atrozes ataques aos direitos humanos, tramitando pautas misóginas e sexistas, e o inimaginável sempre tem lugar quando o objetivo é calar suas vozes e guiar seus corpos.
“Um dos melhores exemplos disso é a conversão de uma Proposta de Emenda Constitucional que visava assegurar maior tempo de licença maternidade para mães de bebês prematuros em um texto que pode impedir o aborto em caso de estupro, risco da vida da mãe ou anencefalia, e até mesmo a pílula do dia seguinte”, lembra ela, assustada.
No Executivo não é diferente. O legado de Temer para as mulheres é um corte de verbas de políticas voltadas à promoção da igualdade de gênero que, de acordo com a previsão orçamentária de 2018, chegará a 80% em relação ao último ano de Dilma à frente da Presidência. “Medida que transforma as políticas de atendimento às mulheres em situação de violência, e de incentivo a autonomia em meros resquícios do que outrora foram”, analisa Ruana Pereira, assistente social da secretaria municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Florianópolis, e militante sindical.
Ruana ressalta que, considerando a transversalidade das políticas voltadas para as mulheres, estas sofrem ainda quando os recursos à saúde são reduzidos. “Não há merenda na escola, e as políticas de assistência social são completamente desmontadas. A redução drástica e injustificável dos recursos destinados ao programa Bolsa Família demonstram tudo isso”, afirma a funcionária pública.
Há anos a priorização do recebimento deste benefício por parte das mulheres vinha permitindo que aquelas que se encontravam em maior situação de vulnerabilidade social, muitas em contexto de violência, tivessem o mínimo necessário para assegurar que seus filhos e filhas pudessem ter como se alimentar. “Era assim que abriam uma fresta para construir sua própria liberdade, razão pela qual ao deixarem de receber o benefício tem também a construção de qualquer autonomia solapada. O Bolsa Família foi uma revolução social, cultural e antropológica, pois inverteu as relações de poder, imposta pelo patriarcado”, diz Andrea Gonçalves Farias, estudante de Sociologia.
Andrea sublinha um importante fato sobre o programa social. “Avançamos socialmente e culturalmente. Onde eu moro, região periférica, as mulheres se organizaram com economia solidária, artesanato e diversas fontes de renda, através do Bolsa Família. Não temos vergonha de sermos beneficiadas. Na associação de moradores do nosso bairro, nos identificávamos e nos unimos, fortalecendo laços e criando novos instrumento de sobrevivência financeira: para não dependermos apenas do benefício ou de homens”, conta a estudante, que protagoniza debates em seu grupo acadêmico. “No início do ano tivemos uma discussão sobre esse assunto. Um colega criticou de maneira feroz as políticas sociais. Eu simplesmente lembrei a ele que metade da nossa turma também recebe uma versão de Bolsa Família. Quase 40% dos acadêmicos da minha sala recebem Bolsa de Pesquisas, com desconto na mensalidade ou salário para estudar. Ele fala mal, e ainda recebe por isso?”, ironiza a jovem.
Assim, o Brasil trilha o caminho de volta ao Mapa da Fome, rouba o futuro de milhões de crianças ao arremessá-las na pobreza extrema, bem como o dessas mulheres, a quem não resta alternativa frente ao trabalho exaustivo e mal remunerado, e inúmeras vezes, à violência, da qual agora não terão mais possibilidades materiais de se desvencilhar. O Brasil do golpe definitivamente não é o Brasil das mulheres.
Maurício dos Santos é jornalista, psicanalista e autor do livro “Acima da cabeça só existe o coração”.