Por M. K. Bhadrakumar.
O golpe na Turquia não é tão simples quanto parece. Na verdade, são duas forças conservadoras fazendo uma queda de braço. Erdogan, que debelou o golpe é um político autoritário e com essa vitória – conseguida com a convocação de seus seguidores às ruas – ele deverá recrudescer ainda mais a violência contra seus adversários. Nesse final de semana, inclusive, apontou para a possibilidade da volta da pena de morte, abolida em 2002. Não é uma vitória do “povo turco” o que aconteceu nas ruas. Mas sim de uma proposta de governo cada vez mais dura, que conta com importante apoio popular de cunho conservador. Erdogan é presidente da Turquia desde agosto de 2014, mas foi primeiro-ministro por 11 anos antes disso. Seu partido (Partido da Justiça e Desenvolvimento) governa desde 2002 e vem garantindo de 40% a 50% nas intenções de voto.Nesse texto abaixo, o ex-embaixador indiano na Turquia, M K Bhadrajumar aponta alguns elementos internos e externos sobre a disputa que acontece no no país.
As nove vidas de Erdogan e o golpe de Gulen
Autoridades turcas estão à beira de alegar que o golpe militar abortado tem significado geopolítico. As sugestões nesse sentido estão a vir a conta-gotas. O presidente Recep Erdogan disse que o golpe foi planeado pelos seguidores de Fetullah Gulen, o pregador islamista que opera a partir dos EUA. A seguir, o ministro da Justiça repetiu esta alegação. A agência de notícias estatal Anadolu depois disso classificou o coronel Moharrem Kose como líder do golpe. Kose era um oficial das forças armadas turcas que em Março de 2006 foi desonrosamente despedido por ligações com a sombria organização de Gulen.
Entretanto, Ibrahim Melih Gokcek, presidente da municipalidade de Ancara e colaborador próximo de Erdogan, saiu-se com uma revelação espantosa: que os participantes do golpe incluíam um oficial pertencente à organização de Gulen que também estava envolvido na morte do piloto russo na Síria, em Novembro último. Gokcek disse: “Foi um “estado paralelo” que deteriorou nossas relações com a Rússia. Foi um incidente, no qual um dos pilotos destas estruturas participou, garanto. Ele foi um dos participantes do golpe. Não divulgámos isto até agora. Mas eu, Melih Gokcek, digo que nossas relações foram deterioradas por estes vilões.”
Naturalmente, é preciso ligar os pontos. Gulen fugiu para os EUA em 1998 quando a inteligência turca começou a investigar seus seguidores que se haviam infiltrado em agências de segurança do estado turco, nas forças armadas e no judiciário. Em 2008, Gulen obteve a permissão de residência (“green card”), aparentemente por recomendação de altos responsáveis da CIA. Ele desde então tem vivido solitário na Pennsylvania e nunca saiu dos EUA em visita ao exterior.
Um antigo chefe da inteligência turca, Osman Nuri Gundes, em 2011 escreveu nas suas memórias que a rede de Gulen proporcionou uma cobertura para as operações clandestinas da CIA nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, como parte da estratégia estado-unidense para utilizar o Islão político como um instrumento de políticas regionais.
Na verdade, a partir da sua vasta e luxuosa propriedade em Saylosberg, numa parte remota do leste da Pennsylvania, fortemente guardada e afastada de visitantes, Gulen lançou uma rede de mesquitas e madraças nos países da Ásia Central. (Curiosamente, a Rússia e o Uzbequistão proibiram “escolas” de Gulen.)
Agora, a tentativa de golpe na Turquia ocorre na sequência da reaproximação turco-russa e de sinais nascentes de uma mudança nas políticas intervencionistas de Erdogan na Síria. Naturalmente, a Turquia é um “estado chave” nas estratégias regionais dos EUA e a reaproximação turco-russa chega no momento mais inoportuno para Washington, pois:
É um “multiplicador de força” para os esforços de Moscou no sentido de fortalecer o regime sírio. Promete ressuscitar o projecto encalhado do gasoduto Turkish Stream (o projecto de US$15 mil milhões para transportar gás russo através da Turquia para o sul da Europa), bem como a construção na Turquia das centrais nucleares de US$20 mil milhões com reactores russos; Bloqueia os planos dos EUA para estabelecer presença permanente da NATO no Mar Negro (a qual exige a cooperação da Turquia nos termos da Convenção de Montreux de 1936 pela qual países não ribeirinhos do Mar Negro não podem manter permanentemente navios de guerra naquelas águas); Pode por em perigo operações dos EUA no Iraque e na Síria, as quais dependem fortemente da base Incirlik na Turquia; Actua contra a balcanização da Síria; Muda como um todo a orientação da política externa da Turquia; e Actua contra os interesses israelenses, sauditas e qataris na Síria.
Erdogan é também um político astuto e manterá os americanos na dúvida. Mas o sultão sabe que deus lhe deu um novo período de vida – e sem dúvida permanecerá desconfiado das intenções estado-unidenses.
Um golpe é sempre uma artimanha (gambit). Os que tramaram o golpe julgaram erradamente que o grosso dos militares turcos apoiaria o derrube do presidente autoritário que impôs supremacia civil sobre os pashas. Mas a ideia brilhante de Erdogan de fazer entrar o “poder do povo” nas ruas apanhou-os de surpresa – recordando o acto de Boris Yeltsin ao sufocar a tentativa de golpe de 1990.
Erdogan é um político carismático e tem sobrevivido graças à sua grande popularidade. Na eleição de 2014 ele assegurou um mandato inequívoco com 51% de apoio do eleitorado. Agora, os laicos, “kemalistas” e nacionalistas de extrema-direita também se alinham contra o golpe. Isto dá-lhe um apoio de base maciço.
Gulen tornou-se agora uma questão grave entre Washington e Ancara. Não há probabilidade de Washington concordar com a extradição de Gulen, o qual é um “activo estratégico”.
O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/…
Foto: Reprodução/IELA
Fonte: IELA