Por André Uzeda, The Intercept.
O jornalismo assistencialista é uma praga da profissão. Não falo daquele que, num momento de catástrofe ou num episódio de extremo desespero, se predispõe a mobilizar pessoas e levantar fundos para abraçar um drama pontual.
Miro justamente os que adotam uma prática sistemática de expor misérias humanas – obesidade mórbida, fome extrema, pessoas com dores crônicas, famílias que vivem com um parente com transtornos psiquiátricos – e pedir dinheiro como se essa suposta filantropia desse salvo-conduto para recrutar pessoas, quase sempre pobres ou pouco instruídas, para integrar um circo televisivo de horrores.
Não bastasse o grande equívoco conceitual desses programas, um novo ingrediente foi acrescentado por uma prática criminosa descoberta na Record TV Itapoan, de Salvador. Em meados deste mês, sites noticiaram que a emissora começou a investigar uma fraude supostamente envolvendo um repórter e um editor-chefe do Programa Balanço Geral.
Os dois teriam usado uma chave falsa do Pix da emissora, que aparecia na tela durante reportagens sensacionalistas, para desviar para suas respectivas contas as doações feitas por telespectadores. Chegou-se a ventilar que um montante de R$ 800 mil teria sido surrupiado. A Polícia Civil abriu uma investigação e acompanha o caso.
Esse é o programa de maior audiência da emissora na Bahia. Entra na grade próximo ao meio-dia e briga frente a frente (tem até vencido) com a atração de mesmo horário da TV Bahia, afiliada da Globo no estado. O Balanço Geral é comandado pelo histriônico apresentador José Eduardo, conhecido como Bocão, e aposta todas as fichas no duplo movimento entre a empatia do telespectador e a curiosidade por aquilo que é embalado como grotesco para fisgar a audiência.
No cardápio diário servido na hora do almoço, não faltam reportagens sobre crimes, coberturas ao vivo de operações policiais em comunidades (os agentes de segurança são chamados de “guerreiros”) e uma dose desmedida de apelos – quanto mais choro, revolta, emoção e desespero mais os números do real time, ferramenta que mede minuto a minuto a preferência do público, sobem acelerados.
Quando o caso do Pix veio a público, o editor-chefe do programa foi demitido. O repórter supostamente envolvido estava de férias em viagem internacional e, como não retornou do recesso, ainda não houve uma decisão sobre seu destino. No dia seguinte, Bocão abriu o programa com um editorial que tentava repactuar as bases que sustentam esse jornalismo assistencialista estapafúrdio — modelo repetido em tantas outras praças Brasil afora.
“Nada vai nos impedir de chegar ao povo carente […]. Não vou desistir jamais de ajudar o próximo. Bata na porta da Record TV Itapoan”, disse. “Nenhum bandido vai me fazer parar de ajudar o povo pobre. Quem ajuda o povo é o povo do Balanço Geral”, completou, em outro momento.
E, por fim, afirmou que “a justiça vai ser feita. Se não for a justiça dos homens, será a justiça divina”.
Para salvar seu modelo de negócio diante do escândalo do Pix, Bocão precisou mostrar como as salsichas são feitas. A referência aqui é à frase atribuída ao chanceler alemão Otto von Bismarck, que teria dito que “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”.
Esse tipo de programa precisa desesperadamente do engajamento do público. Em um momento de crise extrema, trazer como missão uma fajuta noção de solidariedade, em vez de princípios basilares do jornalismo – como a busca pela verdade, a responsabilidade social, o respeito à dignidade humana ou o interesse do público – mostra que o compromisso desse tipo de atração é muito mais com seu próprio êxito do que com a ética profissional do campo a que finge pertencer.
Há ainda um último componente: uma fala religiosa, que se conecta à própria emissora em que o Balanço Geral é exibido. A Igreja Universal, fundada pelo dono da Record TV, vive sobretudo de doações de fiéis por meio dos dízimos. O escândalo do Pix na Bahia gruda uma péssima imagem tanto à emissora quanto ao templo religioso.
Para qualquer caso criminal, a justiça que tem que ser feita é a regida pelo estado democrático de direito. E é essa – e mais nenhuma – que o jornalismo deve apurar, cobrar e acompanhar.