O golpe a falência múltipla das instituições

Por Marcelo Neves.

Uma pergunta: por que o mesmo tribunal não julgou até agora o presidente da Câmara dos Deputados? Está lá como réu desde janeiro do ano em curso Daí que, ressalvadas as respeitáveis exceções, seria até o caso de se afirmar que o STF, que inclui alguns ministros apequenados, propiciou por “omissão” o golpe de domingo/17.04.2016, levado a cabo na Câmara, em grande parte, por uma quadrilha de cleptomaníacos. (Raduan Nassar, 20/04/2016)

Nessa época de investigação de escândalos de corrupção e condenação de corruptos, não cabe insistir que o combate à corrupção é simplesmente a expressão de um “moralismo lacerdista”. Ao contrário, cabe considerar que há uma relação tendencial muito forte entre corrupção e exclusão social ou entre corrupção e desigualdade[2]: quanto maior a exclusão social – nos setores subintegrados, formados por subcidadãos, aquém da lei e da constituição –, tanto maiores são as possibilidades de ampliação da corrupção, especialmente nos setores sobreintegrados, no qual se estão presentes verdadeiros sobrecidadãos, que vivem acima da lei e da constituição[3]. Nesse sentido, a luta contra a “corrupção sistêmica” faz parte de movimento dirigido à inclusão social e à fortificação da cidadania. Portanto, em princípio, não cabem críticas às ações judiciais, às atividades do ministério público e às investigações da polícia federal destinadas ao combate à corrupção em uma perspectiva de um Estado constitucional e democrático, orientado pelo princípio da igualdade. De certa maneira, é constrangedor para muitos que lhe deram apoio político e eleitoral constatar que membros do governo estiveram envolvidos em corrupção durante os três últimos mandatos.

Entretanto, o combate à corrupção no Estado democrático de direito não deve ser realizado mediante violação à constituição e à lei, de maneira arbitrária, como nos regimes autoritários e totalitários, cuja aparente pretensão de banir a corrupção a todo custo, em vez de extingui-la e “purificar” o país, redunda usualmente em novas formas de corrupção. Exige-se de juízes e demais agentes públicos, no Estado constitucional, que combatam a corrupção nos termos da lei e da constituição. Nem juízes em geral nem ministros de corte suprema estão acima da lei e da constituição.

No início da chamada “Operação Lava Jato”, dirigida judicialmente pelo juiz Sérgio Moro, houve algum sinal de esperança de que as atividades policiais, ministeriais e judiciais fossem conduzidas imparcialmente, dentro da lei e da constituição. Fatos posteriores fizeram esvanecer tal esperança. A atitude arbitrária e de cunho partidário começou a se delinear claramente com a “condução coercitiva” do ex-presidente Lula, por aparato policial próprio para operações contra criminosos internacionais de alta periculosidade. Já naquele momento, os indícios de parcialidade e partidarização começavam a tomar corpo. No entretempo, o pedido de prisão preventiva do ex-presidente, em trapalhada de três promotores estaduais paulistas, não competentes no âmbito da “Lava Jato”, fortificavam a suspeita de conspiração das elites paulistas de desmoralizar um político com grande influência no cenário nacional.

O ponto mais elevado de manifestação da parcialidade e partidarização do judiciário ocorreu com os vazamentos de “interceptações de comunicação telefônica” do ex-presidente da república, sem qualquer decisão ou ato judicial motivador, pelo próprio juiz da causa, Sérgio Moro. Ele simplesmente enviou todas as interceptações para os órgãos de imprensa, especialmente para a TV Globo.

O caso aponta claramente para a típica situação de “dois pesos, duas medidas”. Por muito menos, por ser-lhe imputada a comunicação antecipada de uma operação policial contra o empresário Daniel Dantas, o então delegado Protógenes Queiroz foi demitido da polícia federal e condenado criminalmente, nos termos do art. 325 do código penal[4].  Tentou-se condenar também o juiz do caso, Fausto de Sanctis, mas esse se livrou ao ser promovido a Desembargador Federal, pois a pena de censura que se pretendeu esdruxulamente aplicar-lhe não caberia para magistrados de segunda instância. Por fim, em um quiproquó de filigranas jurídicas, a chamada “Operação Satiagraha” foi anulada[5], permanecendo o controvertido empresário livre até hoje.

Naquela ocasião, os hoje arautos da moralidade sustentavam que se tratava de um “estado policial”. Nesse contexto, até mesmo a respeito da atuação policial contra crime de sonegação perpetrada por proprietária da loja de artigos de alto luxo “Daslu”, indagava o advogado Miguel Reale Júnior: “Qual a razão de tantos policiais cercando a Daslu?”[6]. Atualmente, os mesmos arautos da moralidade, enfatizam o valor da atividade arbitrária da polícia, do ministério público e do judiciário contra as garantias do ex-presidente Lula e as prerrogativas da Presidenta Dilma Rousseff.

Entretanto, seria principalmente agora que caberia, em nome do Estado de direito (e não de falso moralismo e de elites corruptas), exigir-se e promover-se o processo de incriminação do juiz Sérgio Moro. Essa não é uma questão pessoal ou moral (que atinge a pessoa em sua inteireza), mas sim uma questão jurídica referente a condutas penalmente ilícitas. Ao divulgar, sem nenhuma decisão motivada nos termos da lei, atos sigilosos de “interceptação de comunicação telefônica” do processo criminal contra o ex-presidente Lula, inclusive levando ao vazamento de conversas telefônicas da Presidenta (em desrespeito ao fórum privilegiado), o juiz Sérgio Moro incorreu nos artigos 8º, 9º e 10º da Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que se fundamenta no art. 5º inciso XII e LX, da Constituição Federal, que estabelecem:

“XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

[…]

LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

Por sua vez, os referidos dispositivos legais prescrevem:

“Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal.

Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.

Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.

Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”

Além do crime e da pena tipificados no art. 10, relativo à interceptação de comunicação telefônica da Presidenta Dilma Rousseff, pois a autoridade judicial competente para autorização é o Supremo Tribunal Federal, aplica-se ao juiz Moro, por desrespeitar o art. 8º (e também o 9º) da Lei nº 9.296/1996, o art. 325 do Código Penal, o mesmo aplicado a Protógenes Queiroz:

“Art. 325 – Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

        Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.

        § 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

        I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

        II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

        § 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

        Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)”

Parece-me esdrúxula a alegação de que essas vedações e penas não se aplicam aos magistrados. É claro que o magistrado pode e deve divulgar a parte relevante para a caracterização do crime quando isso for necessário para a motivação e fundamentação de decisão definitiva ou mesmo interlocutória, após inutilização do que não interessa. Entretanto, isso não significa o poder de divulgar, sem nenhum crivo seletivo ou decisão motivada, às pressas e arbitrariamente, interceptações de comunicação telefônica, muitas delas irrelevantes para o caso e respeitante apenas à intimidade do investigado. Cumpre considerar que os referidos vazamentos prejudicaram a própria investigação que se encontrava em andamento. O fim, porém, não era judicial, era simplesmente o de criar um estado de comoção política, patrocinado por meios de comunicação exuberantemente parciais e partidários no contexto brasileiro. Entre maquiavelismo vulgar em que os fins justificam os meios e “juizite” histérica, o que ocorreu foi prática de crime pelo juiz Sérgio Moro.

Um elemento a mais a afastar a inusitada alegação de que a proibição de vazamento de interceptação de comunicação telefônica e as respectivas penas não se aplicam aos magistrados encontra-se no art. 17 da Resolução nº 59 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 9 de setembro de 2008, in verbis:

Art. 17. Não será permitido ao Magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos sigilosos contidos em processos ou inquéritos regulamentados por esta Resolução, ou que tramitem em segredo de Justiça, sob pena de responsabilização nos termos da legislação pertinente. (Redação dada pela Resolução 217, de 16.02.16).

Essa Resolução, na sua forma originária[7], foi aprovada pelo CNJ sob a presidência do Ministro Gilmar Mendes, que agora, informalmente, perante a grande imprensa, parece defender posição contrária à sua aplicação aos magistrados: “Dois pesos, duas medidas”.

Também não se diga que cabe no caso uma ponderação entre proteção da intimidade e interesse social. Essa ponderação judicial só teria sentido se já não houvesse regra legal penal tipificando o crime e cominando a pena. A ponderação, nesse caso, já foi feita politicamente pelo legislador. Diante de princípios e regras constitucionais contrários, não cabe ponderação de regra legal penal, mas tão só a declaração de sua inconstitucionalidade parcial ou total. Regras, especialmente regras penais completas, que não preveem exceções à luz de princípio, não comportam ponderação à luz de princípio. Mesmo o teórico chamado estridentemente por discípulos empolgados de “profeta da ponderação estruturada”[8], Robert Alexy, reconhece essa impossibilidade. A propósito, são suas as seguintes palavras:

“Isso traz à tona a questão da hierarquia entre os dois níveis. A resposta a essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de vista da vinculação à Constituição, há uma primazia do nível das regras. […]. É por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras têm primazia em relação a determinações alter­nativas com base em princípios.”[9]

Em relação a regras penais, o recurso a sua ponderação ad hoc com princípios constitucionais levaria à extrema insegurança jurídica, contra o Estado, a sociedade e os cidadãos, servindo apenas à arbitrariedade judicial.

A essas práticas ilegais do magistrado, os ministros do Supremo Tribunal Federal reagiram de maneiras as mais estapafúrdias. Em decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes suspendeu-se a nomeação do ex-presidente Lula pela Presidenta Dilma Rousseff para Ministro Chefe da Casa Civil. Como se sabe, o cargo de Ministro de Estado é de livre nomeação e exoneração da Presidenta da República. A alegação de desvio de finalidade baseou-se em um vazamento ilegal de interceptação de comunicação telefônica entre o ex-presidente Lula e a atual presidenta. O caso já se encontrava sub judice, a ser decidido pelo ministro Teori Zavascki. A esse juiz caberia qualificar, liminarmente, a natureza jurídica da interceptação e da respectiva comunicação. Às pressas e de forma inusitada, o ministro Gilmar Mendes, após encontros públicos com membros da oposição, adiantou-se e impediu que a Presidenta praticasse um ato que lhe parecia fundamental para a melhoria política do seu governo. A intromissão judicial na política apresenta-se chocante nesse caso. Atos ilegais passaram a ser fundamento de decisão judicial claramente partidária.

Nesse contexto, cabe considerar que estão plenamente caracterizados os requisitos necessários para que se declare a suspeição do ministro Gilmar Mendes para julgamento de qualquer caso concernente a fatos atribuídos à Presidenta e ao ex-presidente nas atuais circunstâncias, seja no que concerne a eventual caracterização de crime comum ou improbidade, ou a recursos referentes ao processo de impeachment. É marcante a manifestação do ministro, em seminário no exterior, de que “o Brasil vive um regime de cleptodemocracia” (sem nenhum comentário crítico por parte do ministro Celso de Mello)[10], em clara referência a casos que se encontram sub judice no STF ou poderão chegar a sua alçada por via de recurso e, então, deverão ser julgados por esse tribunal. Acrescentem-se a declaração do ministro Gilmar Mendes durante sessão do STF, na qual, totalmente em descompasso com o caso em julgamento, manifestou, em pré-julgamento esdrúxulo, juízos moral e juridicamente negativos sobre o ex-presidente e a sua nomeação para Ministro de Estado: “A presidente arranja um tutor para seu lugar e arranja outra coisa para fazer. E um tutor que vem aí com sérios problemas criminais”.[11] Essa linguagem de desprezo pela Presidenta e de suposição de prática de crime de um ex-presidente, antes de julgamento de casos relacionados a ambos, marca a caracterização de clara suspeição, nos termos do art. 145, inciso IV, do Código de Processo Civil, que prescreve haver suspeição do magistrado “interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. Não se descarte também, em face da linguagem desprezo do ministro à Presidenta e ao ex-presidente e em vista das suas notórias manifestações de amizade com membros da oposição, a aplicação do inciso I do citado artigo, que estabelece haver suspeição do juiz “amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados”. A esse respeito, parecem serem cabíveis ao caso o sábio preceito previsto no art. 11 do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, referente à imparcialidade do juiz.

“Art. 11 O juiz tem a obrigação de abster-se de intervir nas causas em que veja comprometida a sua imparcialidade ou naquelas que um observador razoável possa entender que há motivo para pensar assim.”

Nos termos desse dispositivo, qualquer observador razoável poderia afirmar que o ministro Gilmar Mendes não deveria participar de nenhuma causa referente ao processo de impeachment em andamento ou que envolva a pretensão de responsabilização civil, administrativa ou penal do ex-presidente Lula e da Presidenta Dilma Rousseff.

Além da questão referente à suspeição, cabe observar que caberia o enquadramento das mencionadas condutas do ministro Gilmar Mendes, entre outras, no art. 35, inciso IV, da LOMAN (Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979), que impõe ao juiz o dever de “tratar com urbanidade as partes”, e no seu art. 36, inciso III, que veda ao magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”. No caso tratava-se de casos pendentes de julgamento, seja de magistrados de instância inferior, seja do próprio STF, monocrática ou colegiadamente.

Nessa mesma linha de argumento, incumbe observar também determinações do Código de Ética da Magistratura Nacional. Embora possa se insinuar que ele não inclui em seu âmbito pessoal de validade os membros do STF, pois foi aprovado por órgão subordinado ao seu controle, o Conselho Nacional de Justiça, o Código de Ética da Magistratura funda-se na Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, incisos I), dirigindo-se, inclusive por uma questão de isonomia, a todo e qualquer magistrado, restando ao STF declarar-lhe a inconstitucionalidade parcial ou total. Na presente situação, é relevante o art. 22 do referido Código de Ética:

“Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes, as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da Justiça.

Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.”

Somando-se às atitudes do ministro Gilmar Mendes que indiciam elementos de suspeição no julgamento que envolvam o ex-presidente Lula e a Presidenta Dilma Rousseff no âmbito dos recentes escândalos de corrupção e no julgamento de remédios judiciais referentes ao impeachment em andamento, assim como características de infringência de normas disciplinares da LOMAN e de dispositivos do Código de Ética da Magistratura Nacional, surgiram as bravatas do ministro Celso de Mello, em forma de “supremites” histéricas, que denigrem a imagem do STF. Em um primeiro episódio, veio a patética resposta ao conteúdo de uma interceptação de comunicação telefônica, divulgada ilegalmente pelo juiz Sérgio Moro, na qual o ex-presidente Lula, em conversa particular, afirmava que o Supremo Tribunal Federal estava “acovardado” diante da atuação desviante de órgãos políticos e judiciais. Que sentido prático teria a resposta do ministro a essa opinião, em foro privado, de um político, senão a de antecipar uma posição justificadora dos malfeitos do juiz Moro, no âmbito de um caso sub judice no próprio STF. Embora esse episódio seja grave, uma expressão mais gritante de uma postura politicamente parcial encontra-se na declaração posterior do ministro Celso de Mello de que a Presidenta não poderia utilizar o termo “golpe” em suas manifestações políticas no exterior a respeito do processo de impeachment em andamento. Dessa maneira, um membro do STF imiscuiu-se no jogo político, não só tomando a posição de uma das partes envolvidas na contenda, mas também pretendendo controlar, em termos de censura, as palavras da Presidenta, em uma antecipação chocante de sua posição sobre futuros julgamentos relativos à constitucionalidade e legalidade do processo de impeachment em andamento. Às manifestações do Ministro Celso de Mello juntaram-se as declarações dos ministros Dias Tofolli e Cármen Lúcia, ambos a afirmarem publicamente, em meios de comunicação de massa, que o impeachment em andamento não constitui um “golpe”, imiscuindo-se no debate político-partidário e antecipando implicitamente suas posições sobre futuro julgamento a respeito da regularidade jurídica do impeachment em andamento. Também nessas hipóteses, infringem-se normas da LOMAN e do Código de Ética da Magistratura Nacional e do Código Ibero-Americano de Ética Judicial, acima citadas.

A esse respeito, especialmente no que tange as referidas condutas do juiz Sérgio Moro e do ministro Gilmar Mendes, em uma conversa privada recente com um magistrado de uma pequena comarca do interior da Paraíba, ele desabafava em tom fortemente crítico, nos seguintes termos: “Se, muito menos do que esses magistrados graúdos estão fazendo, eu ou um colega por aqui falássemos publicamente sobre um prefeito ou ex-prefeito no âmbito de nossas respectivas comarcas, ou manifestássemos publicamente sobre um processo de impeachment em andamento na correspondente Câmara Municipal, já estaríamos sendo processados disciplinarmente pelo Tribunal de Justiça ou pelo CNJ e, em certas hipóteses, respondendo criminalmente perante o TJ.” É insofismável que, por condutas muito menos graves de parcialidade, o CNJ e os Tribunais de Justiças já condenaram disciplinarmente, inclusive aposentando compulsoriamente, juízes de comarcas menos influentes no cenário nacional.

Nesse quiproquó de um judiciário e um STF altamente politizados, o presidente do Supremos Tribunal Federal, ministro Lewandowski, passou a negociar com a Câmara dos Deputados aumento elevado e diferenciado dos já privilegiados vencimentos do pessoal do Judiciário e de ministros do STF, em um momento de crise que tende a exigir sacrifícios de amplas parcelas da população, especialmente da classe trabalhadora. Tudo isso aponta para um reino de fantasias, mas que, paradoxalmente, é realidade bruta e chocante, abaixo de qualquer mínimo exigido em uma Estado digno de funcionamento.

Todas essas observações sobre os desvios do judiciário em geral e do STF em particular associam-se diretamente com as condições de surgimento e o andamento do atual processo de impeachment. Os denunciantes pretenderam envolver a presidenta nos escândalos recentes de corrupção, apontando-os como uma das causas justificadoras do impeachment, o que obviamente era uma ilação sem qualquer base jurídica. Nesse particular, salientei em parecer de dezembro de 2015 que, ao contrário das ilações dos denunciantes, que pretendem imputar à Presidente da República crime de omissão por corrupção estrutural que tem chocado a esfera pública, especialmente no âmbito da Petrobrás[12], há elementos claros de que a Presidenta tem apoiado todo o trabalho da PF e do MPF na investigação e persecução dos responsáveis, assim como qualquer apuração necessária para o esclarecimento dos casos. A esse respeito, acrescentei que, ao contrário de governos anteriores, o governo da Presidenta Dilma Rousseff tem apoiado tanto a polícia federal como o ministério público federal na atividade de investigação e persecução penal relativa aos recentes casos escandalosos de corrupção, mesmo contrariando os seus correligionários. Essa atitude é bem diferente do governo de que participou um dos denunciantes, a saber, em que o ministério público federal e a polícia federal ficaram nas mãos e sob controle de pessoas ligadas politicamente ao presidente e de sua inteira confiança, tendo sido típico os arquivamentos de inquéritos, de tal maneira que o procurador-geral da república passou a ser chamado popularmente de “engavetador geral da república”. Em certa medida, a atual Presidenta da República é uma vítima da corrupção sistêmica que caracteriza o Estado brasileiro historicamente. A propósito, um renomado membro do Partido da Social Democracia Brasileira, o empresário Ricardo Semler, em um artigo sugestivamente intitulado “Nunca se roubou tão pouco”, apontou até mesmo para a redução da corrupção no âmbito das investigações que vinham sendo protagonizadas no período do mandato anterior da Presidenta e que permanecem até o presente:

“Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito.

Não há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula.

Os porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos ‘cochons des dix pour cent’, os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.

[…]

É ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente. Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio governo.” [13]

Uma tal declaração põe-nos diante do perigo que o país venha ou viria a incorrer após um provável impeachment da presidenta Dilma Rousseff, passando o Executivo para as mãos de pessoas intimamente relacionadas à corrupção sistêmica: passagem da presidência para Michel Temer, já “ficha suja” e suspeito de corrupção (e soa estranho que o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, tenha pedido ao STF autorização para investigar a Presidenta em virtude da delação do senador Delcídio Amaral, mas não tenha feito o mesmo com relação ao vice-presidente Michel Temer, amplamente acusado na referida delação); e, até pouco, a passagem da vice-presidência, na prática, para Eduardo Cunha, réu em processo criminal em andamento no STF (e também soa estranho que só anteontem, 05/05/2016, em decisão tomada por unanimidade, às pressas, o STF tenha afastado esse deputado do exercício do seu mandato, após ele ter cumprido a sua principal função na conspiração, a de viabilizar a abertura do processo de impeachment): as expectativas confiáveis são que ele(s) atue(m), com seus parceiros, para obstruir investigações, “apaziguando” a polícia federal, o ministério público e o judiciário, fazendo tudo voltar ao status quo ante: a “corrupção sistêmica” garantida pela falta de investigações e punições adequadas.

Entretanto, as ilações sobre o envolvimento da presidenta não foram admitidas no ato de recepção da denúncia pelo então presidente da Câmara dos Deputados, que sequer recebeu a denúncia com a imputação à Presidenta da República de supostos desvios que decorreriam da reprovação das contas do Poder Executivo referentes ao ano de 2014 pelo Tribunal de Contas da União. Inúmeros juristas já haviam manifestado que fatos de mandatos anteriores não poderiam ser objeto de processo de impeachment. Não obstante, por força de uma apressada ampliação da denúncia, em uma segunda versão, restaram recebidas pelo presidente da Câmara a parte da denúncia concernentes a falhas atribuídas à Presidenta da República no exercício de 2015: seis decretos de abertura de crédito suplementares sem autorização do Congresso e um caso da chamada “pedada fiscal”.

Antes de tudo, cabe observar que as contas do Poder Executivo em 2015 ainda não foram sequer objeto de parecer do TCU nem de decisão do Congresso Nacional, sendo possível ainda a sua aprovação pelas instâncias competentes. Além disso, decretos da mesma natureza jurídica foram expedidos por presidentes anteriores, chegando a mais de uma centena durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, mas as contas sempre foram aprovadas pelo TCU, que apenas apontava para a necessidade de saneamento e dava recomendações. Por exemplo, no Relatório e Parecer Prévio referente ao exercício de 2002, o TCU enfatizava:

“Há que se destacar, no que se refere ao Poder Executivo, a inviabilidade de se fazer uma análise mais efetiva no que tange à eficácia de todas as ações relacionadas, devido à verificação de inúmeras inconsistências, como por exemplo, informações errôneas ou incompletas sobre metas previstas e realizadas.”[14]

A esse respeito, apontava-se para problemas persistentes de gastos sem autorização pela Lei Orçamentária:

“Sobre a realização de despesas acima do valor autorizado pela Lei Orçamentária, cabe observar que, de acordo com a Lei 8.443, de 16 de julho de 1992, as contas das unidades gestoras serão julgadas irregulares quando demonstrarem ‘prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial’.”[15]

Em geral, o Relatório advertia para a “falta de transparência na visualização da programação orçamentária” e apontava que o “momento” era de “alerta”[16].

Além disso, a conclusão sublinha a “alteração para mais, mediante o Decreto nº 4.120/2002, dos Programas Estratégicos definidos pela Lei Orçamentária de 2002”[17]. Essa falha é esclarecida como repetida e persistente no corpo do Relatório de 2003:

“Cabe apontar que o aludido decreto foi sucessivamente alterado, no decorrer do exercício, por outros decretos e portarias, que incluíram e excluíram diversas ações, bem como alteraram sucessivamente os limites orçamentários e financeiros, com acréscimos e reduções nos tetos autorizados no período.

Tal como em 2001, pode-se constatar que nem todos os programas e ações eleitos como estratégicos no Decreto 4.120/2002 e suas alterações estavam contidos na programação prevista na LDO/2002, que definiu as metas e prioridades da administração pública federal para o exercício, conforme orientou a Magna Carta.

Não há perfeita congruência entre os programas e ações estratégicos, a serem tratados com precedência na execução, e os programas e ações prioritários, a serem tratados com precedência na alocação de recursos, conforme fixou a LDO, de forma que constam programas e/ou ações na referida Lei não contemplados no Decreto e vice-versa.

Reforçando os termos anteriores, recorde-se que a Carta Constitucional define que a LDO estabelecerá as prioridades e metas da administração pública federal para o exercício financeiro subsequente. Os Decretos do Executivo, quando estabelecem precedência na execução de outros programas, elegem nova categoria de prioridade, não prevista na lei.”[18]

Observa-se do exposto que, não só no exercício de 2002, mas também de 2001, Decretos do Presidente da República, além de autorizar aumento de despesas em contrariedade à lei orçamentária, estabeleceram ações e programas prioritários contrariamente às respectivas leis orçamentárias.

Apesar dessas e de outras “falhas”, persistentes e abundantes, o Parecer prévio do TCU referente ao exercício de 2002, opinava nos seguintes termos:

“Considerando que as falhas verificadas, embora não constituam motivo maior que impeça a aprovação das Contas do Poder Executivo relativas ao exercício de 2002, requerem a adoção das medidas recomendadas, observadas as ressalvas constantes da concussão do Relatório”.[19]

Esse modelo de parecer prévio com ressalvas concernentes às falhas, reaparece, conforme os precedentes, nos pareceres prévios do TCU referentes aos exercícios de 2003, 2004, 2005, 2008, 2009, 2012 e 2013, como esclarecem os juristas Jefferson Garús Guedes e Thiago Aguiar de Pádua:

“Mas o que ora importa observar é o que se deixou fixado nos Pareceres Prévios: em caso de irregularidades constatadas, isto é, que todas ‘as contas são aprovadas com ressalvas’.”[20]

A mudança casuística da jurisprudência do TCU em relação a essa matéria não poderia justificar a responsabilização da Presidenta por crime de responsabilidade, pois a hipótese fora tratada, no máximo, como falhas suscetíveis de saneamento. Qual o elemento doloso nesse contexto? Nenhum. Antes caberia recuperar a exigência da anterioridade penal, como uma garantia do Estado de direito também em face de mutações jurisprudenciais, especialmente quando tal alteração não tenha nenhuma justificação exigível para o overruling, ou seja, para a superação de precedentes por novos argumentos surgidos com a transformação de circunstâncias institucionais.

No que concerne à imputação de caso de chamada “pedalada fiscal” no ano de 2015, concernente ao Plano Safra, a situação é mais esdrúxula, pois o ato não está no âmbito de competência da Presidenta da República. A esse respeito, são esclarecedoras as palavras do jurista Ricardo Lodi Ribeiro, renomado especialista em matéria jurídico-financeira:

“Em relação às pedaladas fiscais, que, como já demonstramos nos referidos artigos desta coluna, não se confundem com operações financeiras vedadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cumpre considerar que, no caso do único contrato imputado em 2015, relativo ao Projeto Safra, a sua regulação compete ao Conselho Monetário Nacional, ficando a execução a cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Banco do Brasil.  Aqui, a presidente da república, de acordo com as normas do legais do Projeto, não possui qualquer atribuição. Nesse caso, se a norma que prevê o crime de responsabilidade atribuído pelos autores da denúncia ao caso em questão tipifica, no art. 10. 6 da Lei nº 1.079/50, a conduta de ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal, é de se perquirir: que atos praticados pela presidente da república são imputados como criminosos?  Ou que atuação desta configura a conduta descrita no art. 11.3, de contrair empréstimo sem autorização legal, que foi utilizada no parecer do relator da Comissão Especial da Câmara para considerar esta atuação como crime de responsabilidade?  Nenhuma é a única resposta legalmente admitida pelo regramento do Projeto Safra.  No caso em questão, a gestão dos contratos não está na competência presidencial, o que a impede de promover ou determinar a abertura de operação de crédito. Até em razão disso, os denunciantes ou o relator não foram capazes de apontar qualquer ato de abertura de crédito à presidente, já que a prática deste não é a ela legalmente atribuída, sendo conduta estranha ao exercício das suas funções, o que, por si só, inviabiliza a responsabilização da Chefe de Estado, nos termos do art. 86, §4º da Constituição Federal.”[21]

Inclusive se admitidas ilegalidades e inconstitucionalidade nas práticas da Presidenta, isso não poderia, por si só, justificar a sua destituição por meio de processo de impeachment. Não é qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade que justifica a denúncia da Presidenta da República por crime de responsabilidade. Caso a cada vez que a Presidenta editasse um decreto ilegal ou inconstitucional, contrário à Lei orçamentária, à Lei de Reponsabilidade Fiscal ou qualquer outra lei, ela já merecesse ser denunciada por crime de responsabilidade, toda e qualquer Chefa de Estado estaria submetida a cada exercício ao processo de impeachment. Na maioria dos casos, é suficiente a invalidação do ato ou a determinação do seu saneamento por órgão de controle, seja jurisdicional, de contas ou administrativo. Só em sendo algo patentemente atentatório à Constituição, cabe discutir sobre a possibilidade de impeachment. Isso significa que os crimes previstos nos incisos do art. 85 da Constituição e tipificados na Lei nº 1.079/1950 devem ser compreendidos à luz do caput do art. 85 da CF, pertencendo a todas as hipóteses normativas a exigência de que “atentem contra a Constituição Federal”.

Todo o casuísmo e artificialismo para condenar a presidenta da República foi conduzido por um congresso em que grande parte está envolvida em casos graves de corrupção. O então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (tardiamente afastado pelo STF), que dirigiu o processo na câmara baixa, além de envolvido em gravíssimos atos criminosos de corrupção, sempre atuou de uma forma parcial e fraudulenta, tanto para levar a um rápido desfecho do ato de admissibilidade da acusação contra a Presidenta na Câmara quanto para se livrar do Conselho de Ética que deve decidir sua cassação por falta de decoro parlamentar. Corrupto graúdo, mancomunado com a oposição, liderou uma cleptocracia hegemônica na câmara baixa para viabilizar a abertura do processo de impeachment no Senado. Isso levou a uma matéria do New York Times, que veio a enfatizar a posição de jornalista brasileiro de que “[a Presidenta] não roubou, mas está sendo julgada por uma gang de ladrões”.[22] Essa é uma afirmação baseada em amplas evidências que apontam para uma conspiração a por em xeque a democracia brasileira.

A essas práticas conspiratórias dos poderes legislativo e judiciário junta-se a parcialidade corrupta das grandes organizações empresariais midiáticas. Descaradamente, elas têm assumido um papel discriminatoriamente seletivo em suas matérias referentes ao atual processo de impeachment. Destaca-se a TV Globo de televisão, cujos jornais tornaram-se instrumentos fundamentais da campanha da oposição pelo impeachment. O “Jornal das 10” da Globo News tornou-se o equivalente a um comitê eleitoral de um partido ou coalizão derrotada. Essa postura discriminatória de desinformação foi percebida por dois renomados jornalistas norte-americanos, Glenn Greenwald, Andrew Fishman, e um brasileiro, David Miranda, em artigo no qual se destacam os seguintes trechos:

“Ao contrário da descrição romantizada e mal informada (para dizer o mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados ‘pelo Povo’, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa intensamente concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não exclusivamente, mas majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos cidadãos, que por muito tempo guardaram rancor contra o PT e contra qualquer programa social que combate a pobreza.

A mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores dos protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os perfis no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes (e ricos) da Rede Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando uma gravação de escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula vazou essa semana, o programa jornalístico mais influente da Globo, Jornal Nacional, fez seus âncoras relerem teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante de um jornal, causando ridicularização generalizada nas redes. Durante meses, as quatro principais revistas jornalísticas do Brasil dedicaram capa após capa a ataques inflamados contra Dilma e Lula, geralmente mostrando fotos dramáticas de um ou de outro, sempre com uma narrativa impactantemente unificada.

Para se ter uma noção do quão central é o papel da grande mídia na incitação dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos protestos do Tea Party. Agora, imagine o que esses protestos seriam se não fosse apenas a Fox, mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York Times e o Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso é o que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são controladas por um pequeno número de famílias, virtualmente todas veementemente opostas ao PT e cujos veículos de comunicação se uniram para alimentar esses protestos.

Resumindo, os interesses mercadológicos representados por esses veículos midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão ligados à história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie Nolen, correspondente no Rio para o canadense Globe and Mail: ‘Está claro que a maior parte das instituições do país estão alinhadas contra a presidente’.

De forma simples, essa é uma campanha para subverter as conquistas democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob uma bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato, muitos na direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e grupos nesses protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da democracia.”[23]

Essas considerações enfáticas nos põem diante do problema da falta de qualquer agência efetivamente encarregada da observação das organizações empresariais de comunicação de massa. Contra a criação de uma agência composta por membros da sociedade civil e do Estado, levantam-se equivocadamente (quando não oportunisticamente) vozes em nome das liberdades de expressão e de imprensa. Mas a liberdades de expressão e de imprensa são primariamente direitos dos cidadãos e não das empresas que exploram economicamente o jornalismo e a radiodifusão. Tais empresas precisam ser observadas para que possam ser caracterizados os casos em que tolhem a liberdade de expressão do cidadão. Não há nada de antidemocrático (nem de “bolivarianismo” no sentido usado pejorativamente pelo status quo). O país que mais preza a liberdade de expressão, os Estados Unidos da América, conta com a Federal Communication Commission, que, entre outras atribuições, tem competência para impedir que alguém inicie transmissão de “conduzir investigações e analisar reclamações”[24], tendo praticado multa a emissoras de televisão que recusaram a sua inspeção[25]. Além disso, o papel da FCC é fundamental para evitar a concentração de poder em uma ou algumas organizações empresariais midiáticas, não apenas por determinação do direito econômico de concorrência, mas também em nome da pluralidade e diversidade na formação da opinião pública, do direito à informação e também da liberdade de expressão dos cidadãos. Isso tudo falta no Brasil em relação aos gigantes da informação, que são antes instrumentos de lucro, do grande capital e de políticos oligárquicos do que das liberdades de imprensa e de expressão, assim como do direito à informação.

Nessas circunstâncias, o processo de impeachment atua como um equivalente funcional a um golpe de Estado. O objetivo é, na verdade, destituir a Chefa de Estado com base na distorção de um instituto constitucional legítimo. Ao falar de equivalente funcional a um golpe de Estado no sentido clássico da expressão, não descarto ser também adequado afirmar-se que se trata de um golpe parlamentar, judicial e midiático. Retomando e relendo aqui uma velha distinção de Louis Althusser e entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológico de Estado[26], um tanto fora de moda, pode-se dizer que, enquanto na versão clássica do golpe, a dimensão repressiva do aparato estatal sobressai, na versão atual, “moderna” ou (se quiserem) “pós-moderna”, prevalece a dimensão ideológica de agentes estatais e atores da sociedade civil. Em certos aspectos, esta talvez seja mais grave do que aquela, pois envolve uma escamoteação ideológica que, pretensamente em nome da constituição, distorce, corrói, erode a própria Constituição. O impacto de políticos corruptos conduzindo o processo e um judiciário partidarizado poderá levar a uma implosão da constituição e a um profundo descrédito das instituições jurídicas, caso o impeachment seja aprovado.

Tudo isso é a expressão de uma conspiração protagonizada por organizações empresariais midiáticas corruptamente parciais, por um parlamento dominado por uma cleptocracia, um Ministério Público ao mesmo tempo parcial e anfíbio, e um judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo politicamente capturado por um projeto golpista liderado em sua origem por um gângster, ainda solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e manipular o processo.

[1] Nota do editor: a publicação do presente artigo foi rejeitada pelo portal JOTA (jota.uol.com.br), com base no seguinte argumento do seu editor, jornalista Felipe Recondo: “Caríssimo, agradecemos o texto, mas não temos como publicá-lo. O texto, em verdade, é um manifesto (legítimo, evidentemente). Mas já tivemos de deixar de publicar textos neste formato recentemente. Não podemos abri o precedente, mas para figura tão respeitada, como o professor Marcelo Neves (…). Espero que compreenda. Obrigado mais uma vez e desculpe a demora.” Como nós, do Crítica Constitucional, além de tudo, discordamos de que se trate de um manifesto, pois entendemos ser um artigo de opinião com base técnico-jurídica, resolvemos publicá-lo para estimular o debate sobre o problema.

[2] Cf. Rose-Ackerman, Susan. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reforms. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

[3] Sobre subintegração e subcidadania versus sobreintegração e subrecidadania como formas de exclusão “por baixo” e “por cima”, respectivamente, na modernidade periférica, ver Neves, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien. Berlim: Duncker & Humblot, 1992, pp. 78 s. e 94 s.; Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, vol. 37, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, pp. 253-76.

[4] STF, 2ª Turma, Ação Penal nº 563/SP, rel. min. Teori Zavaschi, julg. 21/10/2014:http://s.conjur.com.br/dl/ap-563-protogenes-acordao.pdf. 

[5] Cf. sítio do CONJUR: http://www.conjur.com.br/2015-ago-19/anulacao-satiagraha-condenacao-prot….

[6] Cf. sítio de Exame.com: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/848/noticias/um-pais-imp….

[7] “Art. 17. Não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos, sob pena de responsabilização nos termos da legislação pertinente.”

[8] Zucca, Lorenzo. “Conflicts of Fundamental Rights as Constitutional Dilemmas”. In: E. Brems (org.). Conflicts between Fundamental Rights. Antuérpia: Intersentia, 2008, pp. 19-37, p. 28; Klatt, Mathias; Meister, Moritz. The Constitutional Structure of Proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 4.

[9] Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, pp. 121-2 [trad. bras.: Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 140].

[10] Cf. sítio da BBC:http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160329_frases_portugal_mf_np.

[11] Cf. sítio de Brasil 247: http://www.brasil247.com/pt/247/poder/221407/Contra-Lula-ministro-Gilmar-põe-STF-sob-suspeita.htm.

[12] Bicudo, Hélio Pereira; Reale Júnior, Miguel; Paschoal, Janaína Conceição. Denúncia (DCR 1/2015), pp. 47 ss.

[13] Semler, Ricardo. “Nunca se roubou tão pouco”. In: Folha de São Paulo, 21 de novembro de 2014:http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1551226-ricardo-semler-nunc….

[14] Tribunal de Consta União. “Relatório e Pareceres Prévios sobre as Contas do Governo da República – Exercício de 2002”. Diário do Senado Federal, ano LVIII, Suplemento ao nº 083, 17 de junho de 2013, Brasília – DF, p. 501.

[15] Ibidem, p. 497.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] Ibidem, pp. 60-61.

[19] Ibidem, p. 512.

[20] Guedes, Jefferson Garús; Pádua, Thiago Aguiar de. “Pedaladas jurisprudenciais do TCU ou prospective overruling?” In: Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2015, p. 1 (http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/pedaladas-jurisprudenciais-tcu-ou-p…).

[21] Ribeiro, Ricardo Lodi. “Da farsa do impeachment ao golpe parlamentar”. In: Direito do Estado, 27 de abril de 2016: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/da-far….

[22] “She didn’t steal, but a gang of thieves is judging her” (Romero, Simone; Sreeharsha, Vinod. “Dilma Rousseff Targeted in Brazil by Lawmakers Facing Scandals of Their Own”. In: New York Times, 14/04/2016: http://www.nytimes.com/2016/04/15/world/americas/dilma-rousseff-targeted…). Original: “Não roubou, e será julgada por muitos ladrões” (Conti, Mario Sergio. “O que quer uma mulher”. In: Folha de São Paulo, 29/03/2016:http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2016/03/1755014-o-…).

[23] Greenwald, Glenn; Fishman, Andrew; Miranda, David. “Brazil is Engulfed by Ruling Class Corruption – and a Dangerous Subversion of Democracy” [“O Brasil está sendo engolido pela corrupção – e por uma perigosa subversão da democracia”]. In: Intercept, 18 de março de 2016:https://theintercept.com/2016/03/18/brazil-is-engulfed-by-ruling-class-c….

[24] Cf. sítio eletrônico da FCC: https://www.fcc.gov/about-fcc/what-we-do (acesso em 4 de maio de 2016)

[25] Idem: https://www.fcc.gov/enforcement (acesso em 4 de maio de 2016).

[26] Althusser, Louis. “Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche)”. In: Louis Althusser. Positions (1964-1975). Paris: Éditions Sociales, 1976, pp. 67-
125, pp. 81 ss.; Poulantzas, Nicos. L’Etat, le Pouvoir, le Socialisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1978, pp. 31-8 [trad. bras.: O Estado, o poder, o socialismo. 2.a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 33-40].

Marcelo Neves

Professor Titular de Direito Público da Universidade de Brasília – UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Bremen, com bolsa do DAAD (1991). Obteve livre-docência pela Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça (2000). Foi bolsista-pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Frankfurt am Main, Alemanha (2000). Foi Jean Monnet Fellow no Departamento de Direito do Instituto Universitário Europeu, em Florença, Itália (2000-2001).

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.