O Genocídio Indígena e o Golpe da Indignação Seletiva

Ditadura, nunca mais. Mas entre o repúdio ao golpe e as patéticas manifestações saudosistas, não há só poços intransponíveis. Muita pinguela foi construída ao longo de 500 anos de opressão física e cultural das gentes da terra e daquelas trazidas à força da África. Algumas dessas pontes continuam sendo reformadas, em nome de um futuro que já deu o que tinha que dar.

Por Beto Vianna.

Rondon e Nambikwaras, Acervo Museu do indio-Funai
Rondon e Nambikwaras, Acervo Museu do indio-Funai

O país do futuro

Encantado com as possibilidades do Brasil, o austríaco Stefen Zweig escreve que o destino do país é a prosperidade. Não só pela vastidão de seus recursos, mas pelo motor aglutinante do variegado povo brasileiro, um amálgama de raças em construção. Para Zweig, “verifica-se que todas essas raças (…) porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea”. Além da integração afetiva, Zweig nos vê conjuminar esforços produtivos e geográficos. Foi assim no ciclo da borracha, em que “começa então, de modo semelhante ao que ocorreu por ocasião do descobrimento do ouro em Minas Gerais, um súbito boom nas florestas virgens do Amazonas, até então só habitadas por mosquitos e outros bichos”.

Outros bichos, realmente. Foi preciso quatro décadas, e uma ditadura no meio, para o futuro mostrar que infelizmente Zweig estava certo.

Passado nunca mais

vitrola

Em entrevista para o Carta Capital, um membro da Comissão Nacional da Verdade (investigadora dos debaixos-do-pano da ditadura) relata que recebeu o seguinte questionamento de um blog indígena: “por que vocês só tratam de mortos e desaparecidos não indígenas?”. “Para nós, foi uma porrada, uma surpresa”, diz o entrevistado. A conversa com os índios acabou desaguando em pesquisa específica: “Povos indígenas e ditadura militar – subsídios para a CNV (1946-1988)”, que vem sendo bem divulgada na mídia. Dito isso, interessa-me aqui mexer na causa dessa surpresa, pois o inusitado do questionamento não tem a ver com alguma santa inocência da CNV, mas com o hábito documental e discursivo de todos aqueles que sempre nos lembramos – e repudiamos – o golpe militar, em todas as suas manifestações.

Nossos ícones da resistência à ditadura são, primeiro, urbanos: Herzog enforcado na cela, o exército na rua, a polícia carregando contra os manifestantes, a guerrilha, Lamarca, companheiros trocados por embaixadores, operários, estudantes. No campo, mais estudantes, o Araguaia, Julião, as ligas camponesas, Lamarca de novo. No cinema, de “Cabra marcado pra morrer” a “O que é isso, companheiro?”, os dois universos preenchem totalmente as telas. Finalmente, convivemos, desde “Brasil nunca mais”, a anistia e a abertura política, com as listas e as fotos de mortos e desaparecidos da ditadura. Todos não índios (ou não quilombolas), como pontuou o blog à CNV.

Construindo o futuro I

Comissões no Senado e na Câmara, desde os anos 50, já apontavam irregularidades no SPI, o Serviço de Proteção ao Índio. Ainda antes do golpe, chegam à imprensa mundial revelações sobre o chamado “Massacre do paralelo 11”, em Rondônia: 3.500 Cinta Larga trucidados a mando do seringalista Antônio Mascarenhas de Junqueira com a ajuda do SPI, especialmente seu chefe, o major Luiz Vinhas.

Com a crescente denúncia dos próprios índios e a pressão internacional, em 1967 o Ministério do Interior instala uma Comissão de Inquérito própria que produziu o documento mais horripilante que já li sobre a situação indígena no Brasil, o “relatório Figueiredo” (sobrenome do procurador que redigiu a peça; não confundir com o homônimo futuro ditador). Assassinato, estupro, escravidão, prostituição e tortura de índios, aliciamento dos próprios índios como capangas do esquema, e intensa corrupção no órgão, com subornos, enriquecimento pessoal dos altos funcionários e favorecimento de donos de terra e madeireiros, à custa não só do erário público, mas da fome e doença dos milhares de índios “protegidos” (àqueles que gostam de pregar gente em postes, posso enviar o relatório por email, com o nome completo dos vândalos envolvidos, muitos deles vivos e felizes até hoje).

Os militares agiram. Do jeito deles. Uma centena de funcionários indiciados por cerca de mil crimes, três dezenas demitidos, uns gatos pingados e presos. Fecharam o SPI e criaram o novo (e atual) órgão, a Funai. O procurador que assinou o relatório, Jader de Figueiredo Correia, morreu de conveniência: em um acidente de ônibus em 76. Consumido em um incêndio, o documento desapareceu para sempre. Por 45 anos, ao menos.

Construindo o futuro II

Kapixaná – foto Aníbal Freire
Kapixaná – foto Aníbal Freire

No mesmo ano de 1967, a salvo das selvas onde índios são trucidados, o ilustríssimo general Golbery do Couto e Silva publica “Geopolítica do Brasil”. O raciocínio do General é impecável e suas metáforas, inebriantes. O Brasil possui um núcleo central, formado pelo eixo São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Ligadas a esse centro pujante somam-se forças também produtivas, porém secundárias: as “penínsulas” do Nordeste e do Sul. Segue-se a península do Centro Oeste, articulada ao núcleo central, porém debilmente, e parca de gentes e de forças produtivas (e, portanto, objeto das ações de integração). Fechando o esquema quinário de Golbery, surge a “ilha” da Amazônia, território indomado, vazio de forças desenvolvedoras, o deserto verde. No organismo integrado vislumbrado por Golbery, a Amazônia é a parte doente, e onde se devem administrar as doses mais concentradas do remédio.

Há autores com ideias melhores e piores, e podemos amá-los ou deixá-los. Mas, no apagar das luzes, o importante é a qualidade dos seus leitores. Apenas três anos após o début de “Geopolítica do Brasil”, a ditadura militar, sob a batuta de Médici, lança o Programa de Integração Nacional (o PIN), através do decreto-lei nº 1106 de 16 de julho de 1970. Lê-se, em seu artigo segundo, que a primeira etapa do PIN seria a construção imediata das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, sendo “reservada, para colonização e reforma agrária, faixa de terra de até dez quilômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para, com os recursos do Programa de Integração Nacional, se executar a ocupação da terra e adequada e produtiva exploração econômica”.

A Transamazônica, BR-230, percorre 4.000 km da Paraíba ao Amazonas, atendendo o princípio golberysiano de ligar a península nordestina à ilha despovoada. A longitudinal Cuiabá-Santarém, BR-163, 3.500 km de extensão, integra a península Sul à ilha amazônica, percorrendo toda a península Centro Oeste. O setor de desenvolvimento & integração da ditadura promoveu a partir de 1973 a construção de outros gigantes viários, integrados ao mesmo destino manifesto e projetados para cortar a Ilha Amazônica: transversalmente, a Perimetral Norte, BR-210, do Amapá à fronteira oeste, e longitudinalmente, a Manaus-Porto Velho, BR-319, ligando as duas cidades do deserto verde, e a BR-174, ligando Manaus à Venezuela.

Cada um desses braços viários se multiplicou em outros tantos tentáculos que envolveram os povos ao longo da trilha do desenvolvimento. O planejamento oficial, sozinho, foi responsável pela maior parte dos resultados genocidas: a abertura das estradas (com a presença das empresas e empregados em terra indígena), as frentes de expansão, os contatos forçados, as “guerras de pacificação”, o assentamento de colonos (com o apoio do Incra) e a ação da própria Funai, agora devidamente amansada e ocupada por agentes e funcionários militares de cima abaixo. A ponto do cacique e deputado Juruna (combatente tão ridicularizado pela própria esquerda, à exceção de Darcy e Brizola), referir-se ao órgão como a Fundação Nacional dos Coronéis. A reboque do oficial vem o ilegal e o colateral. Garimpos, criação de gado, mineradoras e madeireiras aproveitam a terra arrasada e a pacificação da gente brava para deitar e rolar (as próprias empresas construtoras desenvolveram atividades paralelas de extrativismo, sempre com a violência típica de quem pode exercê-la longe dos olhos da civilização). Novamente, assassinatos, escravidão, doença, fome e humilhação de povos inteiros, degradação de gente a passos largos no Norte e no Centro oeste do nosso pujante país.

Cumpria-se em vontade política um antigo ideal pátrio, a integração do Brasil, embalado nas metáforas acidental-geográficas do general Golbery. E, principalmente, com o carimbo dos militares, decretava-se oficialmente a tentativa de extermínio das comunidades indígenas espalhadas ao longo dos caminhos visados pela engenharia da integração.

A geopolítica atual das terras indígenas, em que áreas antes preservadas do contato genocida ainda existiam no país, foi obra e criação – um legado – da ditadura. Como todos nós sempre sonhamos, esse era um país que ia pra frente.

Construindo o futuro III

A BR-210 caiu sobre os yanomamis como a chuva bíblica de enxofre. Só no processo de construção da estrada morreram dezenas de índios, e os sobreviventes viraram mendigos de beira de estrada. Entre 1973 e 1975, 20% da população de quatro aldeias no vale do rio Ajarani é dizimada, e em outras quatro aldeias, só em 1978, o sarampo trazido pela estrada matou metade dos yanomamis. Com ou sem AI-5, líderes Yanomami já vinham denunciando, desde essa época, esse estado de coisas. A condição “binacional” do povo Yanomami, em território brasileiro e venezuelano, já provocou muita paranoia dos militares, com respingos de loucura até hoje, na literatura e na mídia. Recentemente, a revista Veja, teóricos do exército, jornalistas alucinados e outros próceres, argumentarem que, de fato, o povo Yanomami “não existe” (vasculhe na mídia; se relevar o trágico, você vai rir muito).

A Transamazônica também tem história pra contar. Através de duas ações civis públicas, o Ministério Público Federal no Amazonas vem desvendando a ação integradora e desenvolvimentista da ditadura (consubstanciada na construção dessa rodovia e da BR-174): diretamente responsável pelo genocídio de dois mil Waimiri, impacto desastroso na população Tenharim, e chegando bem perto da total dizimação dos Jiahui. Novamente, é bom frisar que desde a vigência do governo militar há denúncias do massacre. Os militares atuaram em ataques diretos à aldeia dos waimiris, com mortes e violação dos direitos humanos. Repetindo: humanos. Antes da construção da BR-174, havia cerca de três mil índios, reduzidos a cerca de 300 na década de 80.

Nem é preciso lembrar o quanto somos (nós e os militares?) inocentes úteis ao sonhar um Brasil unido e desenvolvido. Na década de 70, descobre-se que há cassiterita na terra do Waimiri. Nos anos 80, a empresa Paranapanema (note: a construtora da estrada) interessa-se pelo minério. Numa articulação da Funai e do Ministério das Minas e Energia, extingue-se a reserva indígena, transformada em “Área Interditada Temporariamente para Fins de Atração e Pacificação dos Índios Waimiri”, excluindo a região onde se encontravam as jazidas! Como se não bastasse, logo em seguida é construída pela Eletronorte a usina hidrelétrica de Balbina, cujo lago inundou 30 mil hectares na mesma área indígena.

Ao lado da Transamazônica, as rodovias Cuiabá-Santarém e Manaus-Porto Velho, atravessando as áreas de maior diversidade étnica do Brasil – os vale do Guaporé, do Madeira, do Tapajós e do Alto Xingu – foram um desastre, planejado e executado, para inúmeros povos que tinham a infelicidade de viver no percurso de desenvolvimento. Os parakanãs passaram duas décadas migrando, fugindo ou enfrentando as frentes de expansão, com a população reduzida ou em processo de inculturação progressiva e perda de identidade (o que, como já nos tentou ensinar Darcy Ribeiro, mata tanto ou mais que bala, doença ou fome). Conta-nos o antropólogo Carlos Fausto que a Funai, “tendo militares em seus postos de chefia, abandonou a postura estática do SPI no Tocantins e partiu para a guerra de pacificação, através de quatro frentes de penetração para contatar os parakanãs em seu território”. Os missionários evangelizadores, que já agiam desde o início do século XX, aproveitaram a fragilidade indígena da época para avançar mortalmente sobre a língua e a cultura dos povos amazônicos e xinguanos, talvez mal interpretando o significado de “amor” no Evangelho.

Os Nambikwara, famosos por terem sido estudados por Lévi-Strauss, também foram evangelizados – ou desindiados – durante todo o século XX, e também sofreram o credo da ditadura. Logo após a demarcação da reserva Nambikwara, em 68, a recém-criada Funai emitiu certidões negativas no vale do Guaporé atestando que não havia índios na região, e as terras (as mais ricas da reserva) foram vendidas a empresas agro-pastoris, beneficiadas pelos recursos federais da Sudam. Conflito anunciado, planejado e oficializado.

Em Rondônia, os Suruí sofreram a pacificação e a distribuição (oficial) pelo Incra de lotes em suas terras. Em 10 anos, dois terços desses índios simplesmente desapareceram. No sul do estado, com a abertura da gleba Corumbiara pelo Incra, vários índios isolados foram avistados pelas frentes de trabalho. O Incra omitiu esses dados e loteou as áreas para os colonos assim mesmo, ocasionando, como era de se esperar, um quadro de enorme violência e morte contra os povos da região. Trabalho sujo da ditadura, providencialmente realizado por terceiros.

Sobreviventes do genocídio, os últimos cinco Akuntsu vivem na região do Omerê, em Rondônia. Os Juma também são cinco, após a expansão das frentes extrativistas. Os Kanoê são uma centena, mas a grande maioria vive arrancada de sua própria cultura. Na região do Omerê vive uma família de apenas quatro pessoas, que mantém o modo de vida e a língua kanoê, e é testemunha do genocídio de seu povo. E a lista segue. O número de povos de Rondônia trucidados pela ditadura é infinito, enquanto dure.

Grupo de índios Kapixaná no Rio Pimenta Bueno.
Grupo de índios Kapixaná no Rio Pimenta Bueno.

Abaixo as ditaduras

Carlos Fausto nos diz que, em parakanã, a palavra para pacificar é mo´yng, que também quer dizer cativar, seduzir, e é o termo que usam para o rapto de mulheres estrangeiras: as transformações que sofre o pacificado em direção aos desejos do pacificador.

As guerras de pacificação no Brasil colônia, em uma terra então povoada basicamente por índios e seus filhos caboclos, o massacre dos Cinta Larga pelo consórcio (ilegal) entre madeireiros, donos de terra e o SPI, e tantas outras histórias de genocídio ao longo de nossos 500 anos de história, ganham, com o advento da Revolução Gloriosa de 1964, o caráter de cumprimento oficial de um desejo nacional. Se não de ordem, definitivamente de progresso. Pacificar, povoar e desenvolver o deserto verde, só habitado por “mosquitos e outros bichos” como tão vivamente sugere Stefen Zweig.

No regime militar, a luta indígena pela terra e pelo modo de vida tinha nome, endereço e CPF. Bem como ainda hoje tem nome, endereço e CPF. Pensar nessa luta como algo distinto de um enfrentamento político é assumir um entendimento muito estreito do que seja político. É negar o direito que cada povo tem de viver do modo que vive, e isso contradiz nossa luta legítima pelos direitos – também negados pela ditadura -, de uma totalidade amorfa, pois que nunca foi unitária: o povo brasileiro.

Uma das premissas de relembrar o golpe de 1964 é cuidar para que isso não se repita. As violações dos direitos dos povos indígenas prosseguem, muitas com clara chancela oficial. Precisamos decidir o ponto em que nosso desejo de um Brasil desenvolvido difere daquele dos generais da ditadura. E se nossa justa indignação precisa ser assim tão seletiva.

Fonte: Revista Pittacos

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.