Por José Carlos Peliano.*
O capitalismo toma conta do mundo sob o guarda-chuva colorido e reluzente da globalização. Mesmo nos países onde ele ainda não é incipiente, as relações econômicas estabelecidas com os países centrais têm de ser realizadas desde a mesma orientação, cláusulas e condições. Caso contrário não há negócios ou transações.
Como um vírus ele, o capitalismo, e ela, a globalização, penetram o sistema econômico tal qual no sistema orgânico das pessoas. Por lá ele se expande, às vezes infecciona, outras provoca metástase, enquanto na maioria das vezes reside ali, procria, infesta, subjuga e domina o paciente.
Por certo que antes do capitalismo se estabelecer mundo afora, começando pela Inglaterra e vizinhos durante e após a Revolução Industrial, já havia o domínio das relações mercantis, sob o manto do mercantilismo, nos países conhecidos, e mais tarde naqueles ainda não descobertos, como o Brasil, ou colonizados como a África quase inteira.
O mercantilismo já era uma forma primária e pobre do capitalismo, mas já se valia da hegemonia das nações mais desenvolvidas para estabelecer os termos de seus contratos de negócios e transações. Assim, por certo, o capitalismo aprendeu a ler e escrever com o mercantilismo. Pós-graduou-se anos após.
Uma das facetas mais salientes e fantásticas do capitalismo é a de vender gato por lebre. Faz parte intrínseca de seu modo de funcionar, estabelecer espaços de cooptação, gerenciar tempos de funções e tarefas, bem como dominar o modo de pensar e viver das pessoas, famílias, empresas e países.
Vale-se do glamour do consumismo para embelezar vitrines, marketing em jornais, revistas, panfletos e sites, cujos produtos servem à beleza, ao fitness, a grifes de roupas e demais utensílios pessoais, aos melhores carros, imóveis, hotéis, excursões, entre outros.
O toque de beleza, sucesso, perfeição, eficiência e paraíso penetra fundo ao desejo, à aparência e à vontade de estar sempre na moda e na ordem do dia do prazer e da satisfação pessoal e social. Poucos os que resistem a tanta pressão diária, semanal, mensal e anual. Vira um comportamento natural, embora totalmente fabricado e artificial.
Lembro-me de meu primeiro carro, um Ford 1951, que um dia bateu contra o muro de minha casa. O muro foi seriamente danificado, enquanto o para-choque apresentou um leve arranhão.
A tecnologia da lataria atual, vendida como a mais completa, poderosa, o top da qualidade, não resiste a uma leve batida, quiçá um empurrão ou pressão mais forte. Pois é essa tecnologia automotiva que é vendida no mundo globalizado como a mais evoluída e segura de todos os tempos.
É essa característica do capitalismo que chama mais a atenção de seu furor de se expandir mais e mais e de dominar os mercados por todos os meios e fins possíveis. Ele doura a pílula para que os pacientes, sim, todos nós, comprem suas maravilhas de consumo, mesmo a preços muitas vezes incompatíveis com os produtos e/ou inacessíveis aos bolsos.
De toda sorte, não há alternativa ou saída, ou compra-se ou não se compra. Não há outro fornecedor, nem diferenciado, pois todos os outros fazem parte da ordem e rede capitalista de produção.
Essa característica, a que o velho Marx deu o nome de fetiche da mercadoria, é a marca registrada do capitalismo, ao qual a globalização lhe serve bem como a vitrine mundial de seus produtos e serviços.
Um exemplo há tempos vendido pelos governos a nós contribuintes vale para destacar o fetiche. Nesse caso não de produto mas de ideias. Ou como vender gato por lebre por meio de iluminados economistas, incansáveis parlamentares cooptados e governos comprometidos ou acuados, às custas dos contribuintes, incautos cidadãos, pessoas comuns como todos nós.
Antes uma breve recordação. Franklin Delano Roosevelt conseguiu tirar os EUA da crise de 1929 com seu programa de recuperação da economia via investimentos em infraestrutura. O chamado “New Deal”. A partir daí o “Welfare State”, o Estado do Bem Estar Social, toma forma e é adotado pelos demais países europeus.
Após a 2a Guerra Mundial, em julho de 1944, 45 países aliados assinaram o Acordo de Bretton Woods onde estabelecem um sistema para gerenciar as relações comerciais e financeiras internacionais dos países então mais industrializados.
Se o New Deal serviu para mostrar ao mundo como enfrentar uma crise através de programas direcionados de investimentos, readmitindo empregados, Bretton Woods serviu para estabelecer o poder do dinheiro através da equiparação de moedas nas relações de comércio e de capitais.
O mundo de hoje esqueceu o New Deal e Bretton Woods. Neste, não é mais o padrão-ouro que vigora, mas o padrão dólar. New Deal nem pensar. Diria minha avó que é Deus no céu e o dinheiro na terra.
Os iluminados economistas austeros, seguidores das ideias de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, nos vendem gato por lebre ao defenderem enxugar o setor público e os salários para sobrar dinheiro para projetos que eles acham mais importantes e para pagar os títulos públicos comprados pelos bancos. Além de sempre salva-los quando entram em bancarrota por infrações e maus negócios realizados.
Mas vamos ao exemplo. Denise Gentil, professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, mostrou o gato vendido por lebre em sua tese de doutorado sobre a previdência social há dez anos atrás. Arguiu que a alardeada crise da previdência era, de fato, uma falsa crise.
O que estava por trás da falsidade: Thatcher e Reagan trouxeram à cena a substituição do estado do bem estar social, onde o desenvolvimento econômico e a distribuição de renda eram seus pilares, pelo livre mercado onde as transações econômicas são soberanas e os direitos individuais sobrepujam aos coletivos. Enquanto aqui o estado é mínimo, lá o estado era interventor.
Deste modo, em geral, a seguridade social passa de universal e solidária, baseada em princípios de redistribuição, para ser individualizada, onde cada contribuinte tem seus recolhimentos capitalizados via fundos de previdência. Aqui instituições empresam os recolhimentos, enquanto lá o estado é quem administrava o fundo social.
O principal argumento usado para a substituição foi de que os custos do sistema universal da previdência causava custos crescentes pelo envelhecimento da população. Reduziu-se a razão socioeconômica dos custos crescentes à uma questão demográfica. Com isso, não há alternativa a não ser corte de direitos, redução de benefícios e aumento de impostos.
Essa justificativa persiste ainda em vigor sustentando as sucessivas revisões previdenciárias. E pior, prova a pesquisadora que não há déficit na previdência, mas sim superávit. Além de nos vender gato por lebre, fazem as contas do jeito que os justifique.
As contas não seguem a Constituição de 1988 (artigo 195). Elas levam em conta apenas a receita de contribuição do INSS que incide sobre a folha de pagamentos. Assim, surge o déficit.
Quando, porém, se somam as demais fontes de receita da previdência, COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos e prognósticos, o superávit aparece. Isto vem acontecendo desde a mudança do regime de repartição para o de capitalização. Os recursos da COFINS, CSLL e prognósticos são usados para outros fins via DRU (Desvinculação de Receitas Tributárias).
A nova proposta do governo de alterar a idade mínima para aposentadoria deve ser enfrentada com um debate amplo e aberto sobre as contas da previdência e seguridade social sob pena de se comprar mais uma vez gato por lebre.
*colaborador da Carta Maior
Fonte: Carta Maior