Por Roberto Caldas, juiz brasileiro da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Quando o golpe de Estado militar-civil completa 50 anos, é preciso refletir seriamente sobre como colocar em prática as etapas a cumprir da nossa justiça de transição, pois só assim viveremos uma experiência democrática consolidada e madura. Um processo completo de transição ocorre em muitas fases, e cada país tem o seu tempo de amadurecimento. Contudo, meio século depois do golpe, é chegado o momento de avançar sem temor.
O processo de transição brasileiro vem sendo estruturado, principalmente, pelas medidas de reparação, ao passo que as medidas relativas à justiça não vêm sendo desenvolvidas no mesmo ritmo. Chegar à justiça, oferecendo às vítimas uma resposta completa, é fundamental não apenas porque é direito delas, mas também porque toda a sociedade depende disso para superar os resquícios autoritários em todas as práticas e instituições estatais, bem como para que esse período lamentável da história não volte a se repetir. É, justamente, para que se complete o processo de transição que precisamos enfrentar o problema da Lei de Anistia de 1979 no Brasil.
Em 24 de novembro de 2010, a Corte Interamericana emitiu sua sentença sobre o Caso Guerrilha do Araguaia, ao interpretar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, norma fundamental que tem plena vigência no Brasil, determinou, entre outras coisas, que graves violações de direitos humanos não podem ser anistiadas, seguindo entendimento expresso anteriormente não só em várias de suas decisões, mas em tratados de direitos humanos e na jurisprudência de outras cortes internacionais. O problema não está apenas nas “autoanistias” (quando agentes estatais editam leis cujos beneficiários são também agentes estatais), mas na consequência de não punir graves violações de direitos humanos. Assim, não é cabível a alegação de que a Lei de Anistia brasileira seria legítima, pois seria fruto de um acordo político, tendo em vista que o objetivo permanece o mesmo: não há acordo político, anistia, indulto, prescrição que possam ser aplicáveis a crimes graves contra direitos humanos de lesa-humanidade.
O STF, meses antes da sentença do Caso Guerrilha do Araguaia, havia analisado a questão sob a interpretação constitucional e decidiu que a mesma Lei de Anistia seria válida. É preciso reconhecer que a Corte Interamericana e o Supremo Tribunal possuem papéis diferentes no que tange à proteção dos direitos humanos. Ao passo que a este cabe a decisão final sobre o controle de constitucionalidade, aquela é responsável pela última palavra no que concerne ao controle de convencionalidade, ou seja, adequação das normas e atos internos à Convenção Americana.
O Brasil, no exercício de sua soberania, ratificou a Convenção Americana e reconheceu voluntariamente a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Isso implica o dever de proteger e promover os direitos humanos garantidos na Convenção, levando em consideração a interpretação em última palavra dessa Corte. Ou seja, o Brasil está vinculado não só à Convenção, mas à jurisprudência da Corte, mesmo nos casos em que não seja parte. Assim, mesmo antes da sentença do Caso Araguaia, já existia decisões sobre o alcance de leis de anistia em tudo aplicável ao Brasil, visto que tal entendimento foi expresso de forma consistente em três decisões anteriores, quais sejam: Barrios Altos vs. Peru (2001), La Cantuta vs. Peru (2006) e Almonacid Arellano e outros vs. Chile (2006).
O Brasil tem dado sinais de avanço no cumprimento da sentença da Corte Interamericana. Criou a Comissão Nacional da Verdade, promulgou a Lei de Acesso à Informação, implantou o Grupo de Trabalho Araguaia e desenvolveu ações de formação em direitos humanos para as forças armadas, entre outras medidas. O Ministério Público Federal, por sua vez, tem apresentado denúncias contra diversas pessoas acusadas de tortura durante a ditadura. Nada disso é efetivo, no entanto, se não houver a responsabilização criminal dos que cometeram graves violações de direitos humanos durante o regime ditatorial. Nunca é demais reafirmar que crimes contra a humanidade não estão sujeitos à prescrição e que, no caso específico dos desaparecimentos forçados, estes são crimes continuados que não têm seu fim até que seja determinado o paradeiro da vítima.
O futuro reserva ao Supremo Tribunal uma nova análise da Lei de Anistia já tendo presente a interpretação feita no Caso Araguaia, no sentido da nulidade da Lei por contrária à Convenção, como aliás vêm fazendo outras instâncias judiciais. A expectativa é a de que o STF, levando em consideração a sentença do Caso Araguaia, ainda que entenda por manter a constitucionalidade da Lei, é provável que a declare nula por inconvencionalidade, na linha da jurisprudência da Corte Interamericana, para a boa harmonia e diálogo jurisprudencial em pleno curso, de modo a que finalmente se possa chegar à investigação, julgamento e punição dos crimes bárbaros contra direitos humanos cometidos em nosso País, para que nunca mais se repitam.
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Fonte: Carta Maior