Por Nicole-Edith Thévenin, via L’Humanité.
Tradução: Daniel Alves Teixeira,
Filósofa e psicanalista, Nicole-Edith Thevenin dá uma declaração firme sobre o movimento feminista, que ela acredita, hoje, estar confinado somente a reivindicar os direitos das mulheres e à reclamação. Ela apela à criação de um poder político capaz de se ancorar na luta de classes, contra o capitalismo e o patriarcado.
L’humanité: Muitas vezes nós reduzimos o feminismo somente à defesa dos direitos das mulheres. Isso não é revelador de um desconhecimento do pensamento feminista?
Nicole-Edith Thévenin: No início do movimento, o feminismo não dissociava as reivindicações por direitos e a luta pela emancipação total. Mantendo-se na simples afirmação de direitos, nós recuamos ideológica e politicamente. Hoje, o movimento feminista se vira, se agita, sem se colocar a questão do que se tornou. Falta-lhe a decisão que lhe permita não só resistir contra o atual, mas acima de tudo para resistir atualmente. É necessário lutar pelos direitos fundamentais, tanto pela igualdade que por ser um sujeito de direito em tempo integral. A ambiguidade dessa luta é ter que passar pelo direito de propriedade de si mesmo – meu corpo me pertence – para ser capaz de reivindicar a capacidade de dizer “sim” ou “não” e assim decidir o seu próprio destino. Ele deve então se inscrever dentro do sistema legal dominante. Como o movimento operário, o movimento feminista é marcado pela contradição que consiste em reivindicar os direitos necessários, e ao mesmo tempo ter uma posição política de colocar em questão toda estrutura política e ideológica de dominação e exploração.
L’humanité: O movimento feminista não sabe mais, hoje, ultrapassar essa contradição?
Nicole-Edith Thévenin: A “Democracia” não é um conceito simples. Ela é uma estrutura de poder que é fundada sobre um sistema de representação que assegura a reprodução de um aparelho de Estado. Este está aí para manutenção e submissão das classes exploradas e a submissão das mulheres ao sistema patriarcal, assegurando os seus modos de expressão que não coloquem em jogo a reprodução do todo. Os partidos e sindicatos foram construídos sobre este modelo, e apesar do seu apoio ao “feminismo”, nada se muda quanto a reprodução ideológica de um “machismo” inerentes à sua operação, ainda que invisível. Há certamente avanços, graças à luta das mulheres, mas o fato é que a estrutura geral não muda. De modo que, segundo as correlações de força em curso, esta estrutura pode se voltar contra os direitos adquiridos. É por isso que eu denuncio a ilusão estatal e democrática. As próprias feministas foram capturadas por essa ilusão jurídica consistente em acreditar que os direitos uma vez registrados, estão ganhos. Nesta luta, qualquer avanço é precário e nos obriga então a formar um movimento político.
L’humanité: A estrutura patriarcal é, de acordo com você, a base de todas as formas sociais de dominação?
Nicole-Edith Thévenin: Uma estrutura modela o campo político e social, e portanto a subjetividade. A forma patriarcal de dominação na família é a primeira forma de dominação e sustenta todas as outras formas. Ela vem articular até no privado as formas subjetivas e estruturais do poder. Hoje, nós já não teorizamos mais a questão do poder como aparelho do Estado, como tentou fazer Louis Althusser, seguindo Marx, colocando o foco nas formas de sua reprodução, em sua teoria dos aparelhos ideológicos de Estado, entre outras. De modo que nós tendemos a contar com o Estado e com o direito como último recurso e mesmo desejamos reconstruir a família, o que quer dizer desejar reconstruir o absoluto da proteção jurídica em detrimento de seu próprio respaldo político. O que nos fragiliza diante um poder que pode se voltar contra aquilo que ele acorda.
L’humanité: Para você, o recuo do peso ideológico das feministas é um sinal de que a batalha ideológica foi perdida para todo o movimento social?
Nicole-Edith Thévenin: Ela está perdida para o movimento social radical. Ela está perdida para todos aqueles, progressistas ou revolucionários, que querem abolir os sistemas de poder, seja na estrutura patriarcal, capitalista, do racismo, da homofobia … ou seja, qualquer sistema de poder que gera opressão em grupos, classes ou indivíduos. Eu não vejo como podemos nos emancipar deixando as estruturas de dominação no lugar. A estrutura patriarcal não se limita ao sistema capitalista, ela existia muito antes. Mas essa última a incorporou para sua própria reprodução. O que faz com que a ideologia da libertação das mulheres se junte à da libertação do indivíduo. Mas ao não ir em direção à destruição do capitalismo, as mulheres estão lutando, de fato, por sua própria maça e reivindicam estar no poder como os homens. Elas se integram ao sistema tal como ele existe. Ora, como o movimento proletário, o movimento feminista encontrou na exploração e dominação das mulheres as forças de sua radicalidade. O feminismo radical se junta ao pensamento marxista e, até mais, tal radicalismo é o motor da revolução.
L’humanité: O feminismo e o marxismo não podem estar senão ligados, segundo você?
Nicole-Edith Thévenin: Evidentemente. O marxismo é a única teoria que insiste em mostrar como funciona um aparelho de Estado e que portanto, para se libertar, é preciso destruí-lo. O capitalismo como o patriarcado podem incorporar avanços que lhes permitem sobreviver. Nós não podemos se libertar de um sem se libertar do outro.
L’humanité: Por que você afirma que o feminismo, enquanto um movimento, deve confrontar com o “auto-engano” para se inserir no processo de reprodução?
Nicole-Édith Thévenin: Falo aqui do processo de sujeição que concerne a todos. Estar na oposição pode nos fazer acreditar que nós escapamos à ideologia que combatemos. Ora, todo sujeito está divido entre seu desejo de se libertar e um desejo inconsciente de ser “sujeitado” a um poder estrutural que ao mesmo tempo nos dê algo para sermos reconhecidos. Nós todos reproduzimos sem o nosso conhecimento o pensamento dominante, as suas formas sociais e políticas. Nós estamos presos nesta contradição. Se opor, reclamar, nos dá uma boa consciência e circunscreve um terreno bem marcado. Isso é necessário, mas também é um engano, pois nós não realizamos esse trabalho incessante de desligamento que nos é preciso realizar para nos separar de nossa própria aspiração ao poder. Daí também a explosão do movimento onde todo mundo quer ter sua “casa”, associação, instituição. Este é o lugar onde a psicanálise nos é preciosa. Ela interroga o ser que não se sente bem consigo mesmo. Ela sinaliza que há um mal-estar que está no auto-engano. Nós reproduzimos alguma coisa que não está de acordo com as nossas exigências internas. A psicanálise nos permite distinguir entre aquilo que é necessidade imediata e isso que é um “eu” que não retorna ao narcisismo, mas, como diz Lacan, ao movimento de não ceder no seu desejo. A psicanálise consiste em libertar as falsas identidades, o eu ideal, como disse Freud.
L’humanité: O movimento feminista, como o movimento social em geral, caiu, você afirma, na armadilha do capitalismo que tenta reduzir o indivíduo às necessidades. De modo que, você diz, os apelos à mobilização contra a austeridade e pelas reivindicações puramente econômicas são ilusórias …
Nicole-Édith Thévenin: É preciso retornar à questão da luta de classes. Aquilo que sentimos é antes de tudo essa implacabilidade da luta de classes, a implacabilidade da reprodução patriarcal. Nós somos interpelados então como sujeito político diretamente ligado ao sujeito do inconsciente. O sujeito do desejo é o sujeito da criação, o sujeito da emancipação. É por isso que a psicanálise é fundamental. São esses sujeitos que nós vemos na análise. É a pessoa que, ao contar as histórias, está pronta para reexaminar todas as suas “ligações”, todas as suas certezas. Nós não estamos no ideal da humanidade. Ela vem procurar o sujeito em sua força de oposição, sua força de negação. Lembro-me das grandes manifestações de Jean-Luc Mélenchon na campanha presidencial de 2012. Havia nele uma vontade de institucionalizá-la, como em todos os políticos, mas também uma palavra direta, dirigida ao rebelde. As pessoas se reconheceram, não no indivíduo institucional, mas no sujeito radical, o indivíduo que pensa. Nós experimentamos a mesma coisa em 2005, quando da consulta sobre a TEC. Nós estávamos “mobilizados”, porque nós encontramos uma liberdade de expressão que ia à raiz das coisas, que instituiu linhas de divisão, um movimento apaixonado… Questão de vida ou morte. Hoje nos demandam somente para “resistir”. É cansativo e sem futuro.
L’humanité: O movimento feminista deve fazer um balanço sem concessão sobre ele mesmo e analisar sua estratégia em face das relações de força?
Nicole-Édith Thévenin: O feminismo se integrou às instituições. Ele se contenta hoje em reclamar. Ele perdeu sua força de oposição. Marie-Josèphe Bonnet, em seu último livro, “Adeus aos rebeldes”[1], analisa lucidamente a confusão ideológica na qual as feministas (e os homossexuais) se fecharam ao abandonar o ideal de emancipação por um ideal jurídico de integração dos pequenos “eus” em nome de todos ….. É preciso formar uma força se nós queremos que a história não seja eterna repetição. Nós não podemos nos manter no balanço das “conquistas” perdidas. Nós não nos recuperaremos sobre a base do antigo, sobre o Estado melhorado. É preciso um salto a frente. O modo de produção capitalista se perpetua construindo os sujeitos de que ele tem necessidade. Mas, como disse Foucault, sua dominação é também dominação senão em relação a um sujeito ou às massas supostamente capazes de se levantar. Mas no lugar de acentuar a distância, nós nos esforçamos em colar àquilo que nos sujeita, de reclamar seu reconhecimento. E a proteção. Ora, se nos é preciso desdobrar uma dialética entre conquistas imediatas e processo revolucionário, isso não pode ser senão do ponto de vista do comunismo, como sobredeterminação ideológica e política. Não é a Revolução Francesa, que foi construída sobre a exclusão das mulheres, que deve ter nossa filiação, mas a Comuna de Paris. Aí, Badiou tem razão e nós não saberíamos lhe reprovar o cultivo do mito da grande noite. O movimento deve ser comunista ou não ser.
L’humanité: Ao escutá-la, nós acreditaríamos que o feminismo e o comunismo são simples sinônimos…
Nicole-Édith Thévenin: A estrutura de dominação sobre as mulheres é um impensado da luta revolucionária. É um impensado de todo homem e toda mulher, pois todos nós fomos carregados a isso. Se nós reproduzimos por nós mesmos a evidência de que haveria uma desigualdade natural entre os sexos, que há uma natureza feminina, chamada a ser naturalmente dominada e conclamada a fazer certas tarefas e a reproduzir os papéis, bem, um processo revolucionário não consegue se concretizar. A teoria feminista vem interrogar não somente a estrutura, mas também a ideologia que modela nossa subjetividade. E a “guerra dos sexos”, não são as mulheres que a conduz, mas muito antes os homens …. Não é por nada que Engels declarou que o nível de uma civilização se julga a partir do lugar que as mulheres ocupam na sociedade!
L’humanité: O feminismo e o comunismo são os dois pés do mesmo corpo?
Nicole-Édith Thévenin: Nós não podemos pensar o comunismo sem pensar o feminismo. O feminismo é parte intrínseca do movimento comunista. Ele condiciona o devir revolucionário da revolução que, sem ele, se transforma em contra-revolução. Se o movimento não despertar no nível político e não reencontrar sua radicalidade e sua autonomia, se ela não se formar no nível da luta ideológica e teórica, ele retorna mil anos, e com ele o movimento revolucionário. Mas depois de tudo, nós não dissemos que tudo não é senão conquistado? Mas a qual preço?
Nicole-Edith Thevenin, filósofa e psicanalista, é também poeta. Ela é autora de artigos e livros sobre Marx, Althusser, a Escola de Frankfurt, K. Popper. Seu Livro mais recente é “O príncipe e os hipócritas: ética, política e pulsão de morte, Edições Syllepse, 2008”. Este texto tenta repensar a relação entre Freud e Marx. Nicole-Edith Thévenin fundou uma articulação do movimento feminista e comunista, “Elas veem vermelho”. Uma articulação, de acordo com ela, que afirma que a estrutura patriarcal “sobredetermina” a luta de classes. Uma premissa teórica que ela e seus camaradas tiraram da “prática mesmo das lutas, parecia-lhes em troca ter efeitos incalculáveis sobre a prática”, ela observa no livro “O poder tem um sexo?”, publicado pela Fundação Peri Gabriel.
[1] Adieu les rebelles!, Marie-Josèphe Bonnet, éditions Flammarion, Café Voltaire, 2014.
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Fonte: Lavra Palavra.