Por Mauro Iasi.
“Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
Fingindo desconhecer a imagem,
Deixaram-me, a sós, perplexo,
Com meu súbito reflexo.”
O Espelho – Mia Couto
Desde 2004 não voto no PT e me coloquei como oposição de esquerda a seus governos. No segundo turno entre Dilma e Aécio em 2014 votei nulo e não me arrependo dessa posição, inclusive pelo cenário que se desdobrou após o pleito e a vitória da petista. O que haveria de diferente neste segundo turno?
Em todas as outras oportunidades víamos um discurso que afirmava que era necessário garantir o governo petista diante do retrocesso que significaria apostar no PSDB e em sua declarada política privatista e pró-mercado, sua política externa entreguista e sua rendição aos ditames do capital financeiro. Sempre argumentamos que, ainda que houvessem diferenças importantes entre as propostas de governo de petistas e tucanos, havia uma campo de consenso no que dizia respeito a aspectos como a reforma do Estado, a política de superávits primários, a submissão à lei de responsabilidade fiscal, a lógica de parcerias publico privadas, o abandono da reforma agrária diante da prioridade ao agronegócio, a forma de governabilidade via concessões e negociatas e tantos outros.
Hoje acreditamos que a situação é qualitativamente diferente quando nos confrontamos com a extrema direita. Hoje defendemos um voto “crítico” em Fernando Haddad. Não se trata de programas de governo, ainda que uma breve análise do que está proposto pelas candidaturas seja mais que o suficiente para alertar sobre os graves perigos que a vitória do candidato do PSL representa. É muito mais do que isso. Não alimentamos ilusões sobre o caráter do programa petista e sabemos que sua inclinação ao centro e à centro direita será um fato certo, até mesmo pela chantagem entorno dos termos da chamada governabilidade.
Ocorre que o fracasso dos governos de conciliação de classe e a total falta de estabilidade do governo usurpador que se seguiu ao golpe institucional, parlamentar e midiático de 2016, gestou as condições para o fortalecimento da alternativa de extrema direita. Tal fato foi profundamente facilitado pelo braço jurídico do golpe e pela condenação sem provas do ex-presidente Lula que teria, muito provavelmente, ganho estas eleições.
A desarticulação do PT e a impossibilidade da direita golpista encontrar uma alternativa viável do ponto de vista eleitoral abriu o espaço para que a alternativa reacionária se apresentasse como possibilidade de governo. Programaticamente aponta para o que tem se chamado de “ultraliberalismo”, mas que, parodiando Lênin, poderíamos chamar de “ultrabobagens” que nem mesmo os mais neoliberais com ainda alguma capacidade de intelecção acreditam ser viáveis. Isto é, coisas como realizar a total privatização dos serviços oferecidos pelo Estado, implementar uma simplificação grosseira do imposto de renda com porcentagens iguais diante de uma realidade de profunda desigualdade de rendimentos e rendas da população, levar a cabo o desmonte das universidades federais do ensino público gratuito, dotar o famigerado movimento “escola sem partido” de retaguarda legal para operar uma cruzada de perseguições políticas e obscurantismo no sistema educacional, eliminar todos aos “ativismos” (sabemos o que isso significa) e acabar com o 13 salário e do adicional de férias, entre outras sandices.
O verdadeiro sentido da extrema direita é outro. Acirrar as contradições para vender a alternativa da ordem imposta violentamente, seja pela interferência direta das forças armadas, seja através do controle da ordem institucional, legislativa e judiciária. O problema é que o acirramento é fundamental para ganhar as eleições, mas impossível para manter condições mínimas de governabilidade, daí a alternativa da força.
A história nos ensina que os verdadeiros planos aparecem depois da solução de força, como vimos na clara diferença entre os projetos da Aliança Liberal de Vargas em 1929, que falava da “vocação agrária do Brasil” e as prioridades do Estado Novo depois de 1937; da pregação moralista e anticorrupção das forças golpistas de 1964 e o entreguismo corrupto da ditadura por décadas.
Podemos ver esse processo mesmo nos clássicos casos do nazi-fascismo europeu, quando a retórica nacionalista e a crítica ao grande capital se transformou na aliança prática do capital financeiro e monopolista com o nazismo e o fascismo. É ridículo mas necessário lembrar que o fascismo e o nazismo foram projetos da extrema direita. Se seguirem o “raciocínio” que se tem feito esses dias, é capaz dos reacionários do futuro afirmarem que o Bolsonaro era de centro, pois eu partido se autodenomina “social e liberal”.
A extrema direita é um instrumento do grande capital que lança mão da barbárie para salvar sua civilização diante do risco da democracia. Seu método, como já discutíamos em outra oportunidade, é a estigmatização do inimigo, a manipulação dos valores da Nação, da família, da moral, do perigo comunista, deslocando a responsabilidade pela crise e seus efeitos para os ombros de seus adversários. Por isso, não nos espanta que a mentira seja a principal arma política daqueles que defendem os interesses de uma minoria e precisam do apoio das massas para suas aventuras. Não foi o Facebook nem o WhatsApp que criou o fenômeno. Ainda que esses dispositivos sejam veículos eficientes da mentira e das falsificações, a “propaganda” é reconhecidamente um instrumento do fascismo, pois a verdade os destrói como a luz aos vampiros.
Mas, por que devemos combater a extrema direita? Não é uma doutrina política como outra qualquer que devemos respeitar no sagrado debate de ideias e o direito ao divergente? Não acredito nisso, pelo simples fato que não há diálogo com aqueles que negam o diálogo e optam pela manipulação, a mentira, a manobra grosseira e pregam nossa eliminação física. Não devemos ser tolerantes contra a intolerância e o obscurantismo.
A extrema direita desperta na sociedade forças reacionárias que ameaçam a integridade física e moral da maioria da população. Não estão simplesmente apresentando suas propostas e disputando uma eleição, estão operando um golpe. Já passa de 50 o número de atentados notificados em que apoiadores de Bolsonaro constrangeram, ameaçaram ou agrediram ou mataram pessoas, como foi o caso do mestre Moa do Katendê, assassinado com doze facadas covardemente pelas costas na Bahia. Outro caso alarmante foi o da menina que teve uma suástica gravada a canivete em sua pele no Rio Grande do Sul. Essas agressões dão corpo a uma escalada de violência política à qual poderíamos somar tantos outros casos como o assassinato de Marielle Franco, de Jorginho Guajajara e muitas outras lideranças indígenas ainda este ano.
Consolidou-se uma postura entre parte da população de que a resposta a ser dada ao PT (seja pelo que de fato fez e pelo que a ele se atribui através de diversas e inverossímeis alegações) é votar em Bolsonaro. Desta maneira, o deputado aparece como a forma vazia de conteúdo que recolhe o antipetismo e o transforma em alternativa política. O problema é que se a forma se presta perfeitamente a tal função, de modo algum esta candidatura é vazia de conteúdo e sua substância real fica obliterada pelo antipetismo.
Entre as milhares de pessoas que votaram no primeiro turno é possível que existam fascistas convictos, reacionários de todo tipo e conservadores, mas a grande maioria escolheu alguém para derrotar o PT. Caso retirássemos este fator, restaria uma trupe de pessoas muito estúpidas que acreditam que a terra é plana, que o Francis Fukuyama é comunista e que Rogers Waters, do Pink Floyd, nunca prestou atenção nas letras que ele mesmo escreveu. O problema é que estas pessoas, supostamente boas, estão acalentando a ilusão de que o mais importante é derrotar o PT, de que o maluco do Bolsonaro não fará tanto estrago como seus antecessores. O vice Mourão seria um militar simplório e racista que gosta de seu neto que está a cada dia mais branco e que prometeu acabar com o 13o salário, mas que não vai fazer isso. As “pessoas boas” só estão preocupadas em salvar a família tradicional, morrem de medo de jovens do mesmo sexo que passeiam de mãos dadas pela rua, mas ninguém vai sair nas ruas matando homossexuais a golpes de barra de ferro, ou queimar índios, ou estuprar mulheres, ou ligar fios desencapados nos testículos de ninguém, pendurar pessoas no “pau de arara”, espanca-las e depois de deixa-las nuas, cobertas de sangue e fezes, para em seguida trazer seus filhos de quatro anos para presenciar a cena. Ninguém vai pegar um jovem, tortura-lo, amarrar sua boca no escapamento de um Jipe e arrastá-lo pelo pátio do quartel. Ninguém enfiaria um rato na vagina de ninguém. Ninguém vai assassinar opositores, esquartejá-los e queimar os restos nos fornos de uma usina de açúcar no Rio de Janeiro. Pessoas boas preferem não pensar nisso.
Mas tudo isso aconteceu de verdade (o contrário do fake news é uma coisa chamada história) e já está acontecendo quer as “pessoas boas” queiram ou não. De alguma forma, elas são cumplices da barbárie. São elas que estão colocando a arma na mão dos assassinos, são elas que colocam as pedras nas mãos dos fanáticos que apedrejam meninas saindo dos cultos afros, são elas que estão dando a chave do cofre para as quadrilhas que as assaltarão. São elas que estão assinando um contrato no qual acreditam que há apenas uma clausula: impedir que o PT volte a governar.
Não. Bolsonaro não é maluco. Nem seu vice, um milico simplório. Nem seus asseclas, que não passam de profissionais bem remunerados para fazer uma “campanha eleitoral”. São políticos de extrema direita, alguns com claras características fascistas, que estão tentando encobrir suas pegadas e seus crimes, desde 1964 e o golpe, as torturas e a longa noite que se abateu sobre o Brasil, mas também suas falcatruas presentes, seu apoio inconteste ao governo do usurpador Temer e seus ataques aos trabalhadores e sua responsabilidade direta pela destruição do país. Não são anjos vindos do céus com a missão de derrotar o PT, como dizem alguns pastores coniventes e parceiros da farsa, em nome da fé, da família e do fim da corrupção. São, em poucas palavras, pessoas más que habitam os bastidores do terror e da barbárie, com negócios e interesses escusos.
Em 2015, quando essas forças iam as ruas pedir o afastamento da então presidente Dilma, ao fazer uma análise de conjuntura, eu dizia que com esses setores não poderia haver diálogo possível. Fui envolvido numa manipulação grosseira de minha fala para me apresentar como aquele que queria fuzilar “todos os conservadores” por conta de uma citação descontextualizada de poema de Brecht. Fui caluniado, perseguido, ameaçado, processado, ironicamente por aqueles que defendem e praticam o extermínio e os fuzilamentos. Mas o que o poeta alemão externava em seu poema, usando a imagem do fuzilamento, dizia respeito à responsabilidade daqueles que ajudaram o fascismo a chegar ao poder e que, depois da catástrofe, se diziam inocentes pois o fizeram na mais boa das intenções, porque, afinal, eram pessoas boas.
Na Alemanha de Weimar também haviam pessoas boas que só queriam um país grande e forte. Estavam descontentes com a crise, a inflação e o desemprego. Tinham críticas aos governos democráticos, muitas delas bastante pertinentes. Queriam defender a família, queriam uma raça pura, bonita e forte. Por isso votaram em massa pelos nazistas e os elegeram em 1932. Continuaram os apoiando quando em 1933 Hitler eliminou toda a oposição ao seu governo. Por isso, também, aceitaram quando apareceu a proposta de esterilizar pobres e pessoas com comportamento antissocial hereditário, assim como matar aqueles que tinham uma vida indigna de ser vivida. Estavam alegres e confiantes como as boas pessoas que eram… até que começaram a levar as crianças com problemas mentais para eventualmente serem mortas no projeto Aktion 4 (até 1945 foram mais de 5 mil crianças), e terem seus cérebros destinados à pesquisa de um prestigioso doutor (ele também uma boa pessoa) Depois foram os judeus, os ciganos, os homossexuais, os comunistas que passaram a ser levados para o extermínio nas câmaras de gás e nos fornos crematórios dos campos de concentração. Mas tudo isso para eliminar o crime, a corrupção e afastar o mundo perigo do comunismo. No final das contas, entretanto, foram os comunistas que ajudaram a salvar o mundo dos nazistas. Os homens de bem ficaram, compreensivelmente confusos. Será que estávamos do lado errado, pensavam em meio às cidades em ruinas e às bombas que caiam sobre suas cabeças, enquanto corriam para se livrar de todo símbolo que os pudessem associar ao mundo que ruía à sua volta.
Será possível que as pessoas de bem estivessem entre aqueles corpos esqueléticos jogados em valas comuns e cobertos de cal? Será que as crianças assassinadas não eram… pessoas boas? Seriam mesmo os judeus os culpados de tudo? Seriam os comunistas realmente nossos inimigos? Assim divagavam as pessoas que se achavam boas e apoiaram a barbárie fascista, mas toda e qualquer dúvida desaparecia quando confrontavam suas vítimas, porque seu lugar era entre os carrascos.
Então vamos combinar uma coisa: vote em que quiser. Se você é um fascista convicto, vote nos assassinos e torturadores, pois acredito mesmo que eles o representam. Mas, se você acredita que é uma pessoa boa, não diga depois que não sabia. O sangue de homens e mulheres de bem, gente simples e corajosa – Moas e Marielles e tantos outros – o sangue dessas pessoas já está caindo e tingindo o solo de nosso país de vermelho, jovens são agredidos no meio da rua e têm sua carne marcada com a suástica nazista. Você que se acha uma pessoa de bem e um cristão e votou no candidato da extrema direita já está com sangue nas mãos e nenhuma água ou esquecimento será capaz de limpar suas mãos e sua consciência desses crimes cometidos em seu nome.
Ainda temos uma chance de evitar uma catástrofe que já é reconhecida e temida por todos os órgãos de imprensa sérios do planeta. Você quer ser lembrado por ter ajudado a derrotar as forças do mal (e depois ajudar a organizar a oposição ao governo do PT) ou por ter dado seu apoio a um governo que será catastrófico do ponto de vista econômico, social, cultural e civilizatório? No futuro, quando você que não escutou todos os alertas, tentar negar sua responsabilidade, repetindo como um mantra que é uma pessoa boa, olhando para o espelho verá, inconfundível, os traços dos assassinos, o olho brutal da maldade e o horror de todas as vítimas consumindo suas pretensões de ingenuidade. Só podemos garantir uma coisa: nós estaremos lá, como estivemos no passado, todos os dias, para que você e ninguém jamais esqueça.