O Fascismo da Hegemonia Branca e Viril no Vale do Itajaí. Por Viegas Fernandes da Costa.

Foto: Gerd Altman/Pixabay

Por Viegas Fernandes da Costa.

Ouvindo o episódio 226 do podcast Foro de Teresina (caso ainda não conheça, fica a dica), comoveu-me a mensagem de um ouvinte do Vale do Itajaí, na qual revela a dificuldade e o medo que ainda persiste de assumir seu voto contrário a Bolsonaro na última eleição. Um medo real, físico, de sair às ruas, e a sensação de isolamento. O ouvinte apela para a criação de uma rede de apoio, afetivo inclusive.

Compreendo-o perfeitamente.

Embora também aqui na capital de Santa Catarina (de onde escrevo) Bolsonaro tenha obtido no 2º turno 53% dos votos válidos, o ar parece muito mais irrespirável no Vale do Itajaí, região do interior catarinense que, no seu processo histórico, constituiu-se na promoção do genocídio dos povos indígenas para dar lugar à colonização europeia a partir de projetos privados de loteamento do território. A história do Vale do Itajaí é um dos melhores exemplos para ilustrar as políticas raciais de embranquecimento da população brasileira, os investimentos na eugenia como projeto de nação e do desenvolvimento de uma ética protestante que tem no discurso da acumulação privada e do trabalho enquanto oposição ao tempo livre sua tônica. Não por acaso, o Vale do Itajaí reuniu na década de 1930 uma das maiores concentrações de integralistas no interior do Brasil, foi alvo privilegiado da criminosa campanha de nacionalização promovida pelo governo autoritário de Getúlio Vargas e bateu continência ao golpe de Estado de 1964. Não se trata somente de conservadorismo, mas de autoritarismo fascista sem maquiagem. Em Blumenau, por exemplo, centro regional do Vale do Itajaí e onde Bolsonaro obteve 75% dos votos válidos no 2º turno, um notório e declarado defensor do nazismo formado na Escola Superior de Guerra lecionava livremente História para estudantes de ensino médio e pré-vestibulandos. A devoção que parte significativa da região dedicava (e ainda dedica) a este personagem se materializava não apenas em seu livre trânsito pelas salas de aula lecionando uma disciplina para a qual não era licenciado, mas também no espaço que lhe era disponibilizado pela imprensa local, especialmente nas emissoras de rádio. Trata-se, portanto, de figura pública amplamente conhecida no Vale do Itajaí e que há alguns anos chegou a ser homenageado por seus estudantes que o saudaram com o “sieg heil” durante uma formatura escolar (mesma saudação realizada recentemente por defensores do golpismo em São Miguel do Oeste, no extremo oeste catarinense).

É disso que se trata, portanto: sem eufemismos, de fascismo. E por mais que se pretenda relativizar a influência deste fascismo na constituição social do Vale do Itajaí, buscando-se visibilizar extraordinárias exceções, o negro, o nordestino, a pessoa com deficiência, o indígena, a comunidade LGBTQIAPN+, o militante de esquerda e outras minorias são, quando muito, tratadas com condescendência, mas nunca como cidadãos de plenos direitos em uma região que já se vendeu como a “Alemanha sem passaporte” (porque a Alemanha moderna, que exige passaporte, esta respeita os direitos humanos e, por extensão, defende a diversidade e há muito abandonou e condena o imaginário do Terceiro Reich).

Sim, entendo perfeitamente o ouvinte que escreveu ao Foro de Teresina, e a ele me solidarizo. Sou nascido no Vale do Itajaí, e lá morei até meus 38 anos. Durante o tempo que vivi na região, como pessoa com deficiência, professor de História, colunista na imprensa local e militante de esquerda, vivenciei diariamente esta sensação de isolamento, preconceito, medo físico e o misto de frustração e nojo ao ver acolhidas pelas elites e imprensa locais as narrativas do fascismo. Aliás, elites e imprensa são as faces da mesma moeda do autoritarismo no Vale do Itajaí. São estas que alimentam o insulamento da região e a tornam refratária a qualquer perspectiva cosmopolita que a ela possa se apresentar. Rejeita-se tudo aquilo que ponha em risco a hegemonia branca e viril das elites autoritárias e retrógradas do tal “vale europeu” fossilizado nas primeiras décadas do século XX. Trata-se de uma hegemonia que se impõe, a despeito da diversidade social e humana que é real e que hoje colore todo Vale do Itajaí. Em Blumenau, pouquíssimos compreendem o alemão, no Médio Vale também são poucos aqueles que falam italiano e ainda mais raros os fluentes em polonês (alemães, italianos e poloneses são os principais grupos europeus que colonizaram a região). Há muitos nordestinos e latino-americanos no Vale do Itajaí. Há muitos afrodescendentes no Vale do Itajaí. A nação Laklanõ existe no Vale do Itajaí. Cada vez mais, as constituições familiares no Vale do Itajaí superam o patriarcado. Entretanto, a hegemonia branca e viril se impõe no espaço cívico, e o desenho político não reflete a diversidade da região.

No segundo turno, Bolsonaro obteve votações muito significativas nos municípios da região: além dos já citados 75% em Blumenau, obteve 69% em Indaial, 77% em Ibirama, 82% em Timbó, 82% em Ascurra, 80% em Pomerode e 76% em Rio do Sul (município onde ocorreu uma das mais violentas reações à tentativa de desobstrução das rodovias federais em Santa Catarina). De modo geral, nos municípios do Vale do Itajaí a média de votos de Bolsonaro no segundo turno ficou próxima dos 80%. O resultado expressivo nas urnas por certo não é uma resposta do eleitorado aos investimentos do governo federal na região nos últimos quatro anos. O Vale do Itajaí foi literalmente abandonado pelo governo de Bolsonaro. Obras importantes de infraestrutura, como a duplicação da BR-470, por exemplo, só não ficaram completamente paradas devido ao aporte de recursos estaduais. A despeito de todos os investimentos federais realizados na região pelos governos petistas, como a construção de um campus da Universidade Federal de Santa Catarina em Blumenau, a implementação de dois Institutos Federais com diversos campi, a construção de policlínicas, o início da duplicação da BR-470, principal via rodoviária que corta toda região (para citarmos apenas alguns dos investimentos), a rejeição do eleitorado local às candidaturas de centro-esquerda, e de Lula como síntese, possivelmente encontra explicação nesta hegemonia “dos olhos azuis e das ruas varridas” – e aqui me valho de metáforas produzidas pela literatura local – historicamente produzida e alimentada no Vale do Itajaí. Uma hegemonia que não é, obviamente, exclusiva nesta região, mas que encontramos em outros locais do estado com processos de desenvolvimento histórico bastante parecidos, como é o caso do município de Joinville e suas adjacências no norte catarinense.

A despeito desta hegemonia, é preciso olhar para as resistências no Vale do Itajaí, de algum modo anunciadas pela mensagem-apelo enviada pelo ouvinte do Foro de Teresina. Olhar para estas minorias que são, numericamente, maiorias, mas que ainda não conseguiram organizar os instrumentos para disputar a hegemonia política e institucional na região. O resultado eleitoral e suas consequências práticas no Vale do Itajaí, tornou o território ainda mais perigoso para aqueles que não se alinham com o discurso e as práticas da direita, e é preciso assegurar a segurança destas pessoas, muitas delas perseguidas em seus postos de trabalho por empresários sem decência ou sofrendo boicotes de todo tipo daqueles que detêm o poder político, simbólico e econômico na região.

Viegas Fernandes da Costa é historiador, professor do Instituto Federal de Santa Catarina e escritor. Seus livros mais recentes são Coliseu Tropical e Sob a Sombra da Tabacaria.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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