Por Victor Hugo Coelho Martins*
O filósofo Nietzsche já diferenciava os homens entre escravos e livres. Existem vários modos de escravidão, porém, nos dias atuais, podemos dizer que também é escravo quem não tem tempo para si.
Partindo dessa premissa e dependendo do ponto de vista, podemos constatar que não só o empregado, mas também o patrão pode ser um escravo, mesmo dono de uma indústria com milhares de empregados.
Quem “rola, conforme a estupidez da mecânica” é um alienado, não vive conforme sua individualidade, não expande sua personalidade, e no fundo, não se diferencia de uma máquina ou de um equipamento de uma empresa. Não lhe resta tempo. Enfim, o homem que não tem tempo livre para si e não exerce seu direito ao lazer, não pode então ser considerado como pessoa livre.
Conceituamos assim o lazer como “tempo livre necessário dedicado para si”. Vemos que no plano internacional, o direito ao lazer está positivado e garantido através da Declaração de Direitos Humanos desde 1948, que traz expressamente: “todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho, e a férias remuneradas periódicas.” Já a Constituição brasileira, também positiva o direito ao lazer no capítulo dos direitos sociais, entre os direitos e garantias fundamentais, onde expressa: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
O princípio da “dignidade da pessoa humana” há de ser considerado como um fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, que implicitamente também estão ligados ao princípio do “valor social do trabalho”. Os dois são fundamentos expressos da Constituição brasileira, que já em seu artigo 1o diz que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Portanto, se todas as normas constitucionais são sempre dotadas de um mínimo de eficácia, no caso dos direitos fundamentais, podemos afirmar que incubem aos poderes públicos, a tarefa e o dever, de extrair dos direitos fundamentais a maior eficácia possível, dando a eles efeitos reforçados na analise das demais normas constitucionais.
Nesse aspecto, há de se reconhecer a necessidade de eficácia imediata do direito ao lazer, inclusive nas relações de trabalho, exigindo atuação negativa em relação ao estado, assim como aos particulares.
O direito ao lazer então, deve ser observado, também, nas relações de trabalho e limitar a jornada de trabalho é, indiretamente, garantir o tempo livre para o ser humano.
A Constituição possui diversas regras limitadoras da jornada de trabalho, tornando ainda mais explícita a intenção do legislador de garantir o direito humano fundamental ao lazer, que deve ser respeitado pelo empregador, como na limitação de jornada diária e semanal, na previsão de repouso semanal remunerado, assim como na garantia a férias anuais remuneradas, entre outros.
Vemos então, que a Constituição garante o direito ao lazer de forma indireta, em outras palavras, ela limita o tempo do trabalho, já para possibilitar esse tempo livre.
Deixando ainda mais explícita a preocupação com o direito ao lazer das pessoas, a Constituição determina que o descanso semanal deva ser “preferencialmente aos domingos”, ou seja, preocupa-se em tornar regra para todos o mesmo dia da semana, para encontrar os familiares, amigos, ou ir ao culto religioso. Para desestimular o serviço extraordinário, ordenou a sua remuneração para, no mínimo, 50% superior ao trabalho normal. Ainda, determinando o pagamento de mais 1/3 do salário das férias, busca possibilitar teoricamente, uma viagem, um passeio, ou um gasto extra.
Por fim, temos ainda normas constitucionais que são totalmente compatíveis com o direito ao lazer, como a meta do pleno emprego do inciso 8º do Art. 170 da CF que diz: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados entre outros princípios o da busca do pleno emprego”;
Nesse sentido, é defendido por diversas correntes do pensamento econômico, que a limitação ou ate mesmo a redução da jornada de trabalho, seria um fator potencial de geração de empregos, de elevação da qualidade do resultado, e de aumento da produtividade, ao mesmo tempo em que melhora a qualidade de vida do trabalhador, que terá tempo livre para o lazer, a educação e para a família.
Sendo assim, o problema agora é definir, o que seria o chamado de “serviço extraordinário”.
Pois é aqui, a brecha constitucional que permite instituir a prorrogação de jornada, colidindo diretamente com o direito humano fundamental ao lazer citado até aqui.
Vejamos, serviço extraordinário deve ser sempre aquele prestado excepcionalmente além da jornada normal. O que ultrapassar este limite da excepcionalidade não terá respaldo constitucional e será considerado, portanto, um ato ilícito que causará dano ao direito ao lazer. Não podemos jamais aceitar como válido o trabalho extraordinário habitual.
O simples acordo entre as partes não é capaz de legitimar a prorrogação de jornada, pois o acordo não está, por si só, dando a natureza excepcional ao serviço extraordinário.
A habitualidade, então, seria algo ainda mais grave, pois é o extremo oposto de serviço extraordinário, que torna um paradoxo, admitir um serviço extraordinário habitual.
A Constituição viabiliza a prorrogação de jornada apenas em duas hipóteses: dentro de sistema de compensação, e, quando a prática do labor além da duração normal seja algo esporádico.
Portanto, “serviço extraordinário” é aquele unicamente previsto na CLT “motivo de força maior, serviços inadiáveis, ou em caso de risco de prejuízo manifesto”, podendo ter “compensação” apenas através de acordo ou convenção coletiva. Então, qualquer outra espécie de prorrogação, diferente do previsto, não foi recepcionada pela Constituição, e ofende diretamente o direito fundamental ao lazer das pessoas.
Ainda, quanto mais recursos tecnológicos são inventados, mais os trabalhadores são envolvidos, acompanhados e comandados, muitas vezes 24 horas por dia. Imaginável a idéia de o quanto um localizador pode controlar um Pager, um celular, ou um veículo rastreado. Hoje em dia e-mail, celular, rádio, são todos mecanismos que, se não observados sob a ótica do direito ao lazer, servem para levar a jornada de trabalho a níveis extraordinariamente inimagináveis anos atrás.
Existem trabalhadores que são acordados e chamados a qualquer hora do dia ou da noite. Outros ainda, não podem sequer visitar parentes nem mesmo aos domingos ditos “de folga”, porque na cidade de destino não tem sinal de radio, celular, ou mesmo internet. Sem contar, os casos de trabalhadores sendo obrigadas a despachar e-mails e mensagens durante as refeições, ou mesmo entre um cochilo e outro.
É importante definir que jornada excessiva é aquela que viola o direito ao lazer, portanto, é um ato ilícito que causa dano ao trabalhador, e tal dano é previsto e indenizável pelo Código Civil.
Enfim, havendo a prorrogação de jornada que não atende a compensação mediante convenção coletiva, a remuneração da hora extraordinária superior no mínimo em 50% à normal, e também ao motivo de força maior para os serviços inadiáveis e o perigo de prejuízo, o empregador estará cometendo ato ilícito, pois ferirá o direito ao lazer.
Mesmo que haja acordo do empregado na prorrogação, dependendo do caso concreto, haverá ofensa ao direito ao lazer, afinal é um direito irrenunciável. O empregador não pode jamais se aproveitar da fragilidade econômica do empregado, que normalmente ganha muito pouco cumprido apenas a jornada normal, e acaba por se sujeitar à jornada excessiva por medo ou necessidade financeira.
Infelizmente, nessa questão, o que causa estranheza é a grande distância entre o direito fundamental ao lazer e a sua proteção na dimensão infraconstitucional, que fica praticamente indiferente a ele.
Constata-se que, a primeira vista, nada acontece com quem obriga o outro ao trabalho extraordinário, muitas vezes não pagando nem mesmo o adicional de horas extras. Na prática, no máximo pagará o que deixou de pagar.
Seria a mesma coisa que um indivíduo roubar um carro e saber que ao final do processo, o máximo que poderia acontecer seria ter que devolver o objeto roubado. Isso, se no meio do caminho, não fizesse um acordo para entregar somente o volante e ficar por isso mesmo.
O incrível é que esta metáfora do carro ocorre todos os dias com o adicional das horas extras nos acordo trabalhistas.
Agora, diferente a isso, se restar comprovado que tal atitude feriu o direito fundamental ao lazer, tal situação injusta pode e deve ser equilibrada e compensada a fim de ser reprimida.
Uma vez estabelecido que, quem ofende direito ao lazer comete ato ilícito, a reparação não deve ser o pagamento das horas-extras, afinal tal pagamento advém da remuneração do trabalho. O que está em jogo, é a ofensa do direito de ter tempo livre dedicado para si e sua família.
Em outras palavras, a ofensa ao direito ao lazer, não se configura pela falta de pagamento das horas-extras, até porque esta remuneração se refere à contraprestação ao trabalho realizado e o direito ao lazer é exatamente o contrário de trabalho realizado.
Como se trata de um direito fundamental extrapatrimonial, deve ser reparado por meio de indenização pelos danos morais tendo, portanto, natureza indenizatória.
Por fim, podemos concluir que o trabalho extraordinário deve ser considerado como tal, e a imposição de jornadas extremas de forma indiscriminada, na prática de horas extras habituais, torna viável e necessária a reparação pela lesão correlata sofrida quanto ao direito ao lazer, além do óbvio pagamento do adicional mínimo de 50%.
*Victor Hugo Coelho Martins é Advogado especialista em Direito do Trabalho e Assessor Jurídico do Sindfar/SC
Fonte: Sindicato dos Farmacêuticos
Foto: Ilustração
Infelizmente hoje vemos o comércio abusando dessa fragilidade da constituição, sem contar outras formas de abuso ao trabalhador assalariado.