O estupro, as neves eternas da legalidade jurídica e a esquerda “racional”

Por Sylvia Debossan Moretzsohn. 

Para pesquisadora, parte da esquerda abolicionista ignora o sofrimento das pessoas e se descolou da vida real

Um sujeito põe o pau pra fora, masturba-se e ejacula em cima de uma mulher sentada no banco de um ônibus, mas, não, isso não é constrangimento nem violência. O sujeito tem “um histórico desse tipo de comportamento” e precisa de “tratamento psiquiátrico e psicológico”, no entanto é simplesmente devolvido à rua. Suas condutas “violam gravemente a dignidade sexual das mulheres” mas, “penalmente, configuram apenas contravenção penal”. A mulher foi “surpreendida pela ejaculação do indiciado” e ficou, “logicamente, bastante nervosa e traumatizada”, mas não há muito o que fazer: cabe a ela lidar com seus nervos, seu trauma, sua dignidade sexual gravemente violada.

Veja outro ponto de vista: A “turba do bem” e o linchamento

A decisão do juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, que no dia 30 de agosto liberou Diego Ferreira Novais, preso em flagrante na véspera pela acusação de estupro, causou escândalo entre os leigos, que não entendiam como foi possível ignorar aquela violência evidente. No meio jurídico as opiniões se dividiram e muitos apoiaram o juiz a partir de argumentos técnicos relativos à tipificação daquela conduta. Reconheciam o abuso, a ofensa, a humilhação, mas rejeitavam o enquadramento naquele tipo penal. E justificavam a desqualificação de crime para contravenção como forma de evitar a punição exagerada, definida pela lei que em 2009 ampliou a tipificação de estupro, já incluído no rol dos “crimes hediondos”: seria preciso alterar a lei para adequá-la a esse caso.

Faz sentido? Para a professora de direito Maíra Zapater, não, por mais que ela seja também crítica ao punitivismo: no seu depoimento ao site Justificando, ela diz que não é possível considerar aquele ato como uma simples “importunação ofensiva ao pudor” porque “houve contato físico com a vítima. E será que se pode dizer que a vítima não foi obrigada” – isto é, constrangida – “a receber aquele jato de esperma no pescoço?”.

Daí que nem mesmo o recurso à “letra da lei” teria uma solução única, como aliás deveria ser óbvio, porque toda lei é passível de interpretação, ou não seriam necessários juízes. Mas quem argumentou assim nas redes sociais recebeu como resposta um sofisma: estaríamos, nós aqui, movidas pela paixão – sobretudo as mulheres, atingidas num ponto especialmente sensível –, querendo que o juiz ignorasse a doutrina e decidisse de acordo com o nosso sentimento. Estaríamos reproduzindo o comportamento que condenávamos, por exemplo, no juiz Sérgio Moro, com seus abusos em relação a Lula.

As falácias, os sofismas, os contorcionismos verbais para tentar justificar o injustificável, à parte um indisfarçável machismo, lembraram a famosa ironia do falecido ministro Sérgio Motta, dos tempos de FHC, sobre “masturbação sociológica”. Bem a propósito.

Particularmente curiosos foram os argumentos de certos advogados e professores de direito identificados com o abolicionismo penal, talvez guiados por um entendimento muito simplório dessa proposta, como se a luta antipunitivista significasse a eliminação imediata da punição nas sociedades de classe. O que é uma impossibilidade prática, como se sabe: o grande valor do abolicionismo, no contexto em que vivemos, é oferecer elementos para a luta contra a onda punitivista. Que, aliás, precisaria ser travada urgentemente nesse campo específico: não há dúvida de que a mudança legal relativa a essa conduta se insere nesse fervor que o clamor público excitado pela mídia costuma provocar. O correto seria estabelecer uma gradação da pena conforme a gravidade do ato.

Entretanto, parte dessa esquerda abolicionista optou por uma discussão acadêmica e técnica, “lógico-racional”, à luz da “dogmática penal”, como se o direito fosse um mundo à parte, infenso ao sofrimento humano, embora, curiosamente, obrigado a lidar com ele. Não se trata aqui de brandir o argumento emocional fácil tantas vezes repetido nessas horas – “e se fosse com sua filha? e se fosse com sua mulher? e se fosse um macho como você que recebesse um jato de esperma no pescoço?” –, mas não é possível ignorar que o necessário distanciamento para qualquer julgamento não pode ser alheio ao sofrimento que pessoas reais enfrentam em seu cotidiano. E isso faz parte da interpretação da lei.

Por isso é tão oportuno lembrar o que escreveu o jurista Nilo Batista, um dos mais eminentes criminalistas brasileiros, na revista Discursos Sediciosos, em 2002:

“Juristas sofrem de uma doença profissional perigosa, proveniente do contraste entre as altas temperaturas da fundição do discurso do poder e as neves eternas da legalidade compreendida pelo viés positivista, que congela esse discurso na lei. Tal enfermidade nos habilita a perceber conflitos sociais como simples deficiência de normatização, que o inesgotável Estado do bem-estar jurídico tratará logo de suprir, motivo pelo qual adquirimos a capacidade mágica de superá-los com dois ou três artigos e parágrafos. Ficamos sempre um pouco desorientados perante a força bruta que rompe os modelos legais, ansiosos por repousar no porto seguro de alguns incisos e alíneas”.

É com a materialidade dessa força bruta que o direito está obrigado a lidar. E é espantoso que quem se proclame de esquerda ignore isso e se descole da vida real. Enclausurados na discussão lógico-racional da dogmática, nem desconfiam por que o discurso punitivista rasteiro da direita cresce tanto no país.

Fonte: Ponte Jornalismo. 

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