O Estatuto da Sagrada Família

Escreva Lola Escreva.- O projeto de lei chamado de Estatuto da Família foi arquivado ano passado, mas agora, com a Câmara mais conservadora desde 1964, chefiada por Eduardo Cunha, o país corre o grande risco de ver aprovada mais esta aberração.
O projeto define “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Se o projeto for aprovado, casais homossexuais não serão considerados uma família, o que vai contra a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconhece a união estável para casais do mesmo sexo. Além disso, a precária redação, ao escolher o termo “descendentes” — que se refere à parentalidade biológica — exclui também as famílias adotivas.
Semana passada, a comissão especial que analisa o Estatuto da Família se reuniu para ouvir o parecer de 58 páginas do relator. O projeto deve ser votado até o final do mês. E, se não houver muita pressão da sociedade, ele será aprovado. Pra começar, por favor, assinem a petição contra o Estatuto.
Para mostrar por que o Estatuto é um grande retrocesso, quero publicar alguns posts. O primeiro é de Cândida Ferreira, assistente social, teóloga, cronista, poeta, especializada em infância e violência doméstica. Cândida trabalha na prefeitura de Nova Iguaçu (RJ) e tem um blog.
Quem lê o Estatuto da Família, que propõe políticas públicas e sociais para o núcleo familiar, depara-se com uma visão conservadora e excludente de família.
A justificativa do projeto é fundamentada da seguinte forma: “A família é considerada o primeiro grupamento humano organizado num sistema social, funcionando como uma espécie unidade–base da sociedade”. E também no art. 226 da Constituição Federal: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.
Vamos considerar esses dois pontos inicialmente. Primeiro, o autor do projeto está tomando um conceito de família de forma a-histórica e generalista. Família é uma instituição social e como tal historicamente determinada pelas sociedades, além de ser um conceito cultural, ou seja, cada sociedade tem sua maneira de significar o que é família.
O conceito apresentando é derivado da modernidade e seu modo de produção capitalista, a chamada família burguesa, nuclear, formada por pai, mãe e filhos. Philippe Ariès, historiador da infância e da família, mostra-nos como na Idade Média, por exemplo, a família não era pensada e vivida como na era moderna. O historiador chega à seguinte conclusão: “A análise iconográfica leva-nos a concluir que o sentimento da família era desconhecido da Idade Média e nasceu nos séculos XV-XVI, para se exprimir com um vigor definitivo no século XVII” (Ariès 1981, p. 201).
Tanto no campo, quanto entre a nobreza, sentimentos de pertencimento e linhagem falavam mais alto do que de uma família nuclear. Segundo o autor, havia mesmo uma oposição entre a família nuclear e o que os historiadores chamam de mesnie: “A família ou mesnie, embora não se estendesse a toda a linhagem, compreendia, entre os membros que residiam juntos, vários elementos, e, às vezes, vários casais, que viviam numa propriedade que eles se haviam recusado a dividir, segundo um tipo de posse chamado frereche ou fraternitas” (Ariès 1981, p. 201).
Com o enfraquecimento deste tipo de relação, fruto do modo feudal, onde sentimentos de honra, serviço, vassalagem, são substituídos agora pelo Estado centralizado e as leis do contrato social, a família tem bens a preservar. Principalmente a nova família que nasce da classe burguesa, a família nuclear, precisa que os bens não sejam divididos.
Podemos dizer que sabe-se que a família nuclear é fruto da modernidade. Família não é igual em todas as culturas. Família ocidental-burguesa formada por pai, mãe e filhos, não é a mesma em vários países do Oriente ou na África, onde família é compreendida como todos os integrantes da família, que aqui chamamos de família extensa. Aqui mesmo nas comunidades indígenas, família não é apenas o grupo nuclear, mas todos os parentes, consanguíneos ou não.
Num Estado laico, sua opinião sobre quem criou a família não pode ser critério de discriminação. Além do mais, como e por que a existência de vários tipos de famílias afeta a família nuclear?
Então a justificativa do projeto cai por terra pois família não foi o primeiro grupo organizado a existir entre os humanos. A família que o projeto defende é fruto da era moderna.
O segundo ponto é o art 226 da Constituição Federal de 1988. A primeira análise que temos ao ler os incisos é que os legisladores procuram defender neste artigo as famílias que não são constituídas através do contrato social do casamento. É um avanço considerável que na década de 1980 os filhos (sejam de relações matrimonias regulamentadas por lei ou de relações estáveis e até passageiras) passam a ter direitos igualitários.
Assim, dissipa-se a figura do bastardo, a figura da amante, e a Constituição passa a garantir direitos sociais relevantes a mulheres e filhos que ficavam à margem da lei. Outro avanço é a equiparação dos cônjuges, colocando os gêneros em pé de igualdade dentro da sociedade familiar. E o reconhecimento da família monoparental, ainda chamada de comunidade chefiada por um dos pais.
Avós criando netos? Não é família, segundo o Estatuto da Família. Vale a pergunta: pode o Estado dizer o que é família, sendo ela construída historicamente dentro das sociedades?
Na proposta do projeto do Estatuto é signatária dos direitos sociais a família constituída por pai e mãe ou a monoparental. Logo, todos os que formam configurações familiares como avós e netos, tios e sobrinhos, irmãos, primos, não seriam considerados família? Isso sem falar, obviamente, nas uniões homoafetivas, o verdadeiro alvo do Estatuto. Ou seja, o projeto é excludente e deslocado da realidade social brasileira.
Como assistente social que trabalha em um Centro de Referência de Assistência Social no município de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, atendo famílias com variadas configurações: monoparentais femininas e masculinas, tia-avó e sobrinhos-netos, irmã e irmão, avós e netos e até mesmo famílias constituídas sem consanguinidade, além de famílias em que filhos de outros casamentos coabitam no mesmo teto.
A variedade de arranjos não enfraquece a familiar nuclear, mas aponta para a sua reconstrução histórica, pois vivemos hoje numa transição em que arranjos antes não permitidos (mas sempre existentes) agora estão sendo visibilizados socialmente.
Além de o Estatuto ser um projeto marqueteiro, família, entendida como todas as pessoas que habitam na mesma casa, já é o centro das políticas de assistência social e saúde, como por exemplo o NASF (Núcleo de Atendimento em Saúde da Família) e clínicas da família, que trabalham com conceitos ampliados.
Não há nenhum estudo que comprove um tipo de família ideal para o combate à drogadição (tóxico dependência) e à violência doméstica, área que conheço bem. Na minha experiência, é nas famílias nucleares que ocorre a maioria dos abusos, principalmente os sexuais, além das violências de gênero. Quanto mais o modelo familiar é conservador, patriarcal, repressor, maiores são as chances dessas famílias se tornaremincestogênicas.
Como o sistema é repressor e autoritário, a tendência é que não ocorram denúncias sobre esse tipo de família vindo de dentro dela própria. Porém, os profissionais de saúde e educação acabam por denunciar violações graves.
No que tange a violência doméstica e de gênero há um patrulhamento judicial dos pobres e um silêncio quanto as famílias de alto poder aquisitivo: quanto mais alto esse poder, mais silêncio se faz.
Interessante é que a literatura especializada em violência doméstica contra crianças e adolescentes aponta a família patriarcal, criada na idade moderna como o terreno fértil de violações de direitos individuais, repressão e por fim violências.
Colocar na centralidade das políticas públicas e sociais a família nesse entendimento conservador mostra o despreparo do autor do projeto e seu desconhecimento do tema na literatura especializada das ciências humanas. Além disso, mostra também o desconhecimento completo da realidade da sociedade brasileira em seus arranjos familiares, variando entre classes sociais e até mesmo regionais.
Por fim, em pleno século XXI vemos ser apresentado um projeto que restringe a cidadania e torna as políticas públicas e sociais, ao invés de inclusivas, excludentes, mais uma vez.
O fortalecimento das famílias passa pela estruturação de políticas públicas e sociais que garantam a todos os arranjos familiares acesso aos direitos sociais preconizados na Constituição, sem distinção alguma, de forma democrática, livre e igualitária.
Enquanto as casas legislativas desse país produzirem atentados à liberdade individual e também promoverem através de lei a acepção e preconceito quanto a pessoas e famílias, estaremos muito longe de ser uma sociedade democrática. Somos na verdade um Estado democrático liberal, mas não um Estado Democrático de Direitos. E precisamos ser de fato um Estado laico.
É preciso continuar a luta e visibilizar o que segmentos fundamentalistas e conservadores querem retornar à invisibilidade. As famílias — com todos seus vários arranjos — existem, estão aqui e merecem respeito.

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