O esgarçamento violento da força de trabalho

 

Foto: Divulgação.

Por Thiago Sardinha.

“Sem estímulo da escola ou mercado de trabalho
Por não ter espaço é um alvo fácil
Jovens da favela, da população, a parte mais vulnerável (…)
Os predadores chegam armados com rapidez
Usando fator surpresa, matam quatro e mais cinco ou seis.”
“A Revolta dos Humildes” RZO (Sandrão, Helião, Dj Cia, Negra Li, Calado).

A crise estrutural do capitalismo avança de maneira intensa e galopante levando a sociedade a um completo colapso. Seu traço marcante é a incapacidade de manter em funcionamento a relação social de valorização do valor (Robert Kurz). Assim, suas esferas orgânicas desmoronam objetivamente bem aos nossos olhos, sendo impossível tentar extrair ainda alguma novidade de uma sociabilidade em ruínas.

Outros pontos visíveis resultantes da crise do capital são as condições mais degradantes possíveis em que o conjunto da força de trabalho se encontra e o aumento da criminalidade, fatos que motivam alguns pensadores a ainda insistirem em ignorar sua relação apenas para entoar panaceias progressistas sustentadas pela ética do trabalho. E não são poucos os que ainda acreditam numa retomada de um “novo ciclo de acumulação”, deixando para trás este sombrio passado recente de sobreacumulação que tanto nos devora. Portanto, tornou-se limitante a crítica da distribuição da riqueza socialmente produzida no capitalismo; na verdade, esta perspectiva indica um tempo histórico já esgotado. É preciso, sim, avançar na crítica de seus fundamentos mais profundos enquanto modo de produção objetivo e abstrato destrutivo.

Na esfera da força de trabalho, os sintomas são mais dramáticos e rebarbativos. O vetor produtivo essencial ao movimento da produção de valor é substituído em larga escala por tarefas da circulação de capital, como o setor de serviços intensamente precarizados, a informalidade emergencial e o setor financeiro. Tudo isso indica não somente novos parâmetros para o capitalismo global, mas uma estrutura visivelmente em crise.

Segundo a OIT (Organização Mundial do Trabalho), 61% da população empregada no mundo está em situação informal: ao todo são mais de 2 bilhões de pessoas[i]. E, mais, 93% do emprego informal do mundo estão nos países emergentes e em desenvolvimento. Na África, 85,8% do emprego é informal. A proporção é de 68,2% na Ásia e, no Pacífico, de 68,6% nos Estados Árabes, de 40% nas Américas, e pouco acima de 25% na Europa e na Ásia Central. Segundo o mesmo estudo, o fato que afeta o aumento da informalidade relaciona-se com a debilidade na educação. Algo que também já vem mudando nos últimos anos, em que a precariedade do trabalho vem alcançando a força de trabalho mais qualificada.

No caso brasileiro especificamente, soma-se à informalidade o subemprego e a precariedade generalizada. Em abril de 2018 o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou, através do PNAD, o resultado da situação da força de trabalho brasileira: No primeiro trimestre, o mercado de trabalho perdeu 408 mil vagas com carteira assinada em relação ao quarto trimestre de 2017. O País perdeu 1,528 milhão de postos de trabalho em apenas um trimestre, ao mesmo tempo em que mais 1,379 milhão de pessoas migraram para o contingente de desempregados[ii]. E mais ainda: houve um aumento de pessoas trabalhando por conta própria em condições inseguras, sem qualquer garantia de respaldo legal de direito trabalhista; foram 3,8% de crescimento, com 839 mil pessoas a mais que no mesmo período de 2017. Ademais, chegamos ao número de 13, 1 milhões desempregados.  Em 2014, chegamos ao patamar de 12,5 milhões de vínculos ativos nas atividades tipicamente terceirizadas e 35,6 milhões nas tipicamente contratantes, ou seja, essas últimas respondem por cerca de um quarto dos vínculos de trabalho formais no Brasil[iii]. São 6,2 milhões de subocupados: pessoas que trabalham menos de 40 horas por semana, mas gostariam de trabalhar mais.

O avanço da precarização do trabalho vem crescendo de maneira intensa nos últimos anos. Cada vez mais forma-se uma grande quantidade de pessoas subjugadas ao trabalho precário, à margem do regime de assalariamento. O que também vem crescendo com a crise do valor é uma quantidade de pessoas que não servem nem mesmo para serem exploradas pela ordem do capital, nem lhe é mais cabível enquadrá-las no conceito de exército industrial de reserva.  O conjunto de desdobramentos do capitalismo atual constitui o novo paradigma no qual a força de trabalho está inserida, seja através da pequena parcela de trabalhadores componentes do regime do trabalho assalariado formal, da força de trabalho ocupada no setor de serviços, da terceirização, da informalidade e, sobretudo, daquela que não se encaixa em nenhuma destas esferas econômicas e sociais. Evidentemente que, mesmo nessas condições ou até dentro de uma estrutura social inferiorizada, é difícil tanto para o Estado quanto para a classe dominante mitigar o conjunto dessa força de trabalho nos seus diferentes subterfúgios frente a essa horrenda realidade. Portanto, o condicionamento submetido a este específico contingente social só pode ser disciplinado e controlado segundo a lógica do mercado através de mecanismos punitivos que ultrapassem o próprio direito burguês. No caso do disciplinamento, desde que haja condições inerentes ao próprio mercado para serem disciplinadas pelo trabalho, fato que não é mais possível nestes termos. Essa perda de centralidade no processo produtivo fez com que essa força de trabalho procurasse ocupações de diferentes naturezas e contratos. E quando examinamos países da periferia do sistema, o processo é tão mais terrível quanto no seu centro, pois atingem perfis historicamente marginalizados dentro da diversidade categórica da força de trabalho, como os pretos, periféricos e favelados das cidades.

Pobres, pretos, favelados e periféricos constituem a nova forma de um perfil antigo da força de trabalho expulsa da valorização de valor, formando assim as classes perigosas; na verdade, estar à margem desta relação social, no caso brasileiro, possui raízes históricas. Por isso é que o capitalismo, através do Estado controlado por uma elite econômica e outras forças sociais, utiliza um conjunto de recursos impetuosos para prevenir explosões sociais dessas populações e conjuntamente controlar o perfil insólito do capitalismo. Podemos sintetizar estes recursos violentos e punitivos da seguinte maneira: a) o encarceramento em massa da força de trabalho excluída da valorização do valor; pretos e pobres constituem maioria atingida por este mecanismo; b) o controle territorial generalizado através de tecnologias de ponta utilizadas em guerras ou conflitos mundiais; c) a militarização das cidades, com uso de aparato bélico ostensivo pelas forças de segurança, forças armadas e grupos armados com práticas militares de controle da sociabilidade. Quando tais mecanismos ainda assim mostram-se insuficientes, entra na ordem do dia o extermínio em massa da força de trabalho excluída e sobrante.

Este extermínio assustador da força de trabalho não é novidade. Ao mesmo tempo, o perfil preto e marginalizado muito menos. Portanto, nos fazemos uma pergunta que ajuda a refletir tudo isso: será guerra? A Guerra às Drogas, uma política reaganiana dos anos 1970/80, serviu (serve?) por muito tempo como justificativa oficial das forças de segurança do Estado para tantas operações, tantas intervenções e tantas outras brutalidades. Porém, esse é o ponto do qual queremos destacar: a Guerra às Drogas já não é a explicação unívoca para tanto extermínio, pelo contrário, tornou-se uma máscara para esconder o genocídio escancarado da população preta das cidades. Trata-se de um viés estrutural claramente racista embutido tanto no discurso justificado sobre a guerra às drogas, quanto pelo número de pretos e pobres que dominam as estatísticas de homicídios, encarceramento e controle.

No Brasil, esta afirmação acima cai como luva por conta apenas de sua dramática realidade. Chegamos a níveis estratosféricos de encarceramento, assumindo a posição de quarta maior população carcerária do mundo. São mais de 600 mil pessoas presas no Brasil[iv], atrás apenas de EUA (com 2,2 milhões – 2013), China (1, 66 milhão – 2014) e Rússia (673 mil – 2015). O que estes países diferem do Brasil é que já vêm diminuindo suas taxas de encarceramento.

No caso dos Estados Unidos, a Guerra às Drogas serviu de muleta esquemática para este “ataque” aos pretos e pobres nativos. Em menos de trinta anos, sua população carcerária explodiu: de 300 mil passou para mais de 2 milhões –  e as condenações ligadas às drogas foram responsáveis pela maior parte desse aumento. Os Estados Unidos têm hoje a maior taxa de encarceramento do mundo[v]. Embora as taxas brasileiras tenham sido atingidas recentemente, este processo de boom carcerário já vinha de anos (Figura 1)[vi].

imagemFigura 1 – Aumento progressivo do Encarceramento Brasileiro[vii].

É interessante notar que o número gigante de pessoas encarceradas no Brasil é alcançado no período de um governo chamado de progressista. O mesmo que mais ampliou programas compensatórios para a força de trabalho pauperizada. Portanto, esta era a triste tríade para os pobres no período destacado: encarceramento – Bolsa Família – extermínio.

Na esteira do encarceramento o Brasil e, mais especificamente, o Rio de Janeiro são afetados pela atuação direta de grupos armados atuantes principalmente nas cidades. As milícias, mesmo após a CPI de 2008, aumentaram sua influencia e domínio territorial. Atualmente as milícias estão em 11 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, o que representa uma área de 348 km²; são mais de 2 milhões de pessoas sob o controle militarizado das milícias. E pensar que, em 1998, quando ainda era conhecida como grupo de “autodefesa” comunitária, estava territorializada em apenas 1 comunidade. De lá pra cá já são 37 bairros e 165 comunidades dominadas por milícias[viii]. A maneira pela qual estes grupos agem é tão violenta quanto o varejo do tráfico: exploração territorial através de interesses econômicos; controle militarizado, rigoroso e ostensivo; utilização do aparato policial estatal, já que também envolvem agentes do próprio Estado.

Junto com estes grupos armados estão também outros que representam o controle militarizado: as Forças Armadas e as Forças de Segurança. Cada vez mais vem tornando-se comum os uso das Forças Armadas para combate à violência. Cada vez mais, operações das Forças Armadas vêm diminuindo seu intervalo (nos últimos 10 anos foram 12 operações realizadas[ix]) e sempre o alvo são as favelas cariocas. As operações para garantir a Rio Eco-92 foi deflagrada no dia 30 de maio de 1992, pelo Comando Militar do Leste, para garantir a segurança de chefes de Estado estrangeiros e dos seus participantes. Até o dia 15 de junho, cerca de 15 mil homens armados com fuzis, metralhadoras, granadas e bombas de gás lacrimogêneo policiaram as ruas da cidade com radiotransmissores, carros blindados e até tanques; as operações Rio I e II, entre 1994 e 1995, tiveram o objetivo de prevenir e reprimir o varejo do tráfico para, assim, retomar a sensação de segurança. “O Exército empregou nas favelas cariocas a tática conhecida no jargão militar como a do martelo e da bigorna, que consiste em cercar o inimigo com tropas e pressioná-lo com a ação de grupos de elite da corporação, além do trabalho da inteligência militar, que seleciona os alvos preferenciais. 13 favelas foram ocupadas[x]”. Em outubro de 1994, foi anunciada a Operação Rio I: dois mil militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica participaram, e a atuação militar nos morros do Dendê e da Mangueira foi feita à base de prisões sem flagrante e sem mandados. Naquele ano já se falava que o comando militar tinha um mapeamento dos morros e planos para usar as tropas no combate ao crime organizado. A Operação Rio II contou com o apoio da Polícia Federal Rodoviária; ao todo 20 mil homens foram mobilizados para atuar em todo o Estado. Durante a Cimeira – encontro de cúpula que reuniu chefes de Estado e de governo de 49 países em junho de 1999 – soldados do Exército também ocuparam pontos estratégicos da cidade. Eles trabalharam em apoio aos policiais, num esquema de segurança que mobilizou, ao todo, 8 mil agentes. De lá pra cá, foram mais 4 operações entre 1997 e 2007. Depois disso as operações se concentraram nas instalações das UPPs e para a realização da Copa do Mundo e Olimpíadas – nestas últimas foram utilizados mais de 22 mil agentes das Forças Armadas. Na intervenção de 2018, a lógica não mudou significativamente: foram 70 operações monitoradas com um efetivo de 40 mil agentes, com 940 pessoas mortas, sendo 209 pela polícia[xi]!

As Forças de Segurança do Estado (Polícias civil, militar e federal) sempre estiveram na linha de frente quando o assunto é o extermínio de pretos e favelados. Desde a década de 1990 que o seu modus operandi “ é subir na favela de deixar corpo no chão”, como bem ressalta o verso de uma música do Bope (Batalhão de Operações Espaciais). É seguir a lógica de guerra e derrotar o seu inimigo; por isso que policiamento no Estado do Rio de Janeiro tornou-se sinônimo de confronto armado direto. Portanto, não existe nenhuma “metáfora de guerra” quando vidas reais de homens e mulheres pretas são dilaceradas. Trata-se de um genocídio declarado. Voltemos então à pergunta feita acima: será guerra?

O extermínio da força de trabalho constitui um drama estrutural do capitalismo. A militarização é uma eficaz ferramenta de controle generalizado da força de trabalho em várias esferas da vida cotidiana. No entanto, tudo isso é mais sintomático em países periféricos e mais ainda na América Latina e principalmente no Brasil. Entre 1980 e 2010, o Brasil registrou 1.091.125 de mortos por homicídio, uma média de 4 vidas dizimadas por hora! De 11,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 1980, passamos para 26, 2. Um aumento de 124%. Situando-se na faixa de mais de 50 mil homicídios por ano, alcançamos a tétrica posição de sexto país com mais mortes violentas no mundo; se considerarmos apenas os casos de jovens entre 15 e 24 anos, pulamos para a quinta colocação, com 51,6 homicídios por 100 mil habitantes[xii]. Considerando o período de 2006 a 2015, a polícia no Estado foi responsável pela morte de 8.052 pessoas – no mesmo período, entre 2006 e 2015, 4.526 pessoas foram mortas pelas polícias dos 50 Estados dos EUA, conforme dados do FBI.[xiii]

Em junho deste ano, o Atlas da violência divulgou mais relatório acerca dos resultados da violência no Brasil nos últimos anos. Bem, não há nada de novo no cenário estrutural do capitalismo periférico, a norma continua intacta e impiedosa. Segundo o estudo, em 2016, foram contabilizadas mais de 62 mil homicídios, alcançando a taxa média de 30, 3 mil mortes por 100 mil habitantes. Destas, 92,6 % são homens e 56,5 % estão na faixa de 15 a 19 anos. No entanto, quando o perfil estereotipado destas taxas são os pretos, a situação é bem mais horrenda. Para os pretos a taxa a taxa vai a 71% destes que morrem. Se formos para Alagoas, a coisa piora: a taxa vai para 60, 1 por 100 mil habitantes. Realmente é uma realidade assustadora. Se observarmos as taxas de homicídio por estado, percebe-se que a Região Nordeste é a que mais preocupa em termos de crescimento dos homicídios: Sergipe, Rio Grande do Norte e Alagoas são os primeiros a a encabeçarem este assombroso ranking (Figura 2). Já o Rio de Janeiro, mesmo sendo o que mais recebeu intervenções militares das Forças Armadas, não está entre os mais violentos.

ImagemFigura 2: Taxas de homicídio por Habitantes[xiv]

Para além dos dados e estatísticas, que são importantes, é preciso reforçar que estamos falando de vidas pretas cujo fardo histórico remete ao racismo como herança da escravidão que insiste em ecoar violentamente. Algo que não vem descrito nestes números são os choros das famílias que perderam alguém por conta desta violência estrutural produzida pelo capitalismo em ruínas. São cada vez mais comuns e recorrentes as chacinas devoradoras de vidas, esgarçadas pela ordem socialmente estabelecida. Em 2016, a polícia fluminense chegou ao impiedoso registro de 4.222 pessoas assassinadas. Mesmo ano da fatídica operação das Forças de Segurança na Gardênia Azul, após a queda de um helicóptero da polícia atribuída aos traficantes, em que 11 pessoas foram assassinadas. Cena que se repetida na Maré, zona norte do Rio em que, após a incursão de helicóptero de guerra, 8 pessoas foram assassinadas, incluindo Marcus Vinicius, 14 anos de idade.

Recentemente, 8 corpos foram encontrados na praia da Urca, todos identificados como sendo de “traficantes” da favela Chapéu Mangueira, que fica nas proximidades[xv]. No mês de abril deste ano, a polícia chegou à cifra de 101 assassinatos, um aumento de 26, 3%, se comparada com o mesmo período do ano passado[xvi]. Em Belém, no mês de maio, são 66 pessoas mortas desde o assassinato de uma policial no dia 29 de abril; estas mortes foram efetuadas por grupos de extermínio[xvii]. Em 2017, no Rio de Janeiro, o número de vítimas em confronto com a polícia teve um aumento de 19%, enquanto o de policiais caiu 15%; neste mesmo ano o Rio de Janeiro registrou 5.012 pessoas mortas por policiais[xviii], 790 a mais que em 2016. Também em 2017 a favela do Jacarezinho experimentou a musculatura da “operação vingança” por 11 dias em que foram mobilizadas Forças de Segurança e Forças Armadas, para ocuparem a favela após a morte de um policial civil: 8 pessoas foram mortas.

Diante desse quadro obscuro fica impossível a negativa de um extermínio sistemático da força de trabalho excludente no capitalismo contemporâneo. Um quadro visivelmente global, pois não é só força de trabalho preta que vem sendo brutalmente esgarçada, mas também e infelizmente os palestinos, que sofrem a política genocida do Estado de Israel, o qual decidiu dizimar este povo da superfície terrestre. Portanto, enquanto o capitalismo vai arrastando toda sociedade para a barbárie, são aos pobres que mais sofrem perante o processo de desmantelamento social. Também é notória a relação entre extermínio em massa da força de trabalho com a crise estrutural do capitalismo. Ou revertemos este quadro ou seremos devorados.

Entretanto, é preciso dizer com muita firmeza que passou do momento de os territórios historicamente oprimidos não aceitarem mais esta horrenda realidade. Estes territórios possuem a potencialidade de se transformarem em células de transformação radical da sociedade burguesa numa outra em que não seja mais possível este tipo de opressão e extermínio.

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