Situada ao norte das calhas dos rios Solimões e Amazonas, perpassando os Estados do Amazonas, Roraima, Amapá e Pará, essa região é conhecida como a Calha Norte, um dos maiores cenários de áreas protegidas do mundo. Ela abriga cerca de 25% da população indígena do país e vêm obtendo, nas últimas décadas, o reconhecimento do direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles. Na contramão dos processos de regularização fundiária, projetos de exploração minerária e usinas hidrelétricas continuam a ameaçar os territórios ocupados pelos indígenas.
As TIs Trombetas Mapuera, Nhamundá Mapuera, Kaxuyana Tunayana e Zo’é, compõem um fragmento do corredor de áreas protegidas da Calha Norte do Pará, totalizando juntas 7.873.103,66 hectares de floresta amazônica preservada por meio do uso e ocupação de povos indígenas do tronco linguístico Karib (Wai Wai, Hixkaryana, Katuena, Karafawyana, Tikiyana, Xereu, Mawayana, Katxuyana, Tunayana, Kahyana, além de grupos isolados) e do tronco Tupi-Guarani (os Zo’é de recente contato).
O histórico recente desses povos é marcado pelas migrações e aldeamentos forçados, a partir dos anos 50, em missões na Guiana, Suriname e Parque do Tumucumaque. Assim como por processos de isolamento voluntário de alguns grupos que recusaram a se relacionar sob a égide da igreja e demais ações colonizadoras. A partir dos anos 60, o projeto evangelizador das agências missionárias, cuja base de sustentação era a concentração dos índios, coincidiu com o plano de desenvolvimento do governo militar para esta região, orientado para o povoamento e ocupação militar para assegurar esta faixa de fronteira.
O plano do governo militar, que ganhou novo impulso nos anos 80, por meio do intitulado Projeto Calha Norte, tinha como foco a abertura de estradas, formação de assentamentos rurais, construção de hidrelétricas e concessão de lavras minerárias. As atividades minerárias e garimpeiras – e seus impactos ambientais e sociais – tangenciam, portanto, as dinâmicas e lutas territoriais desses povos tanto no passado, quanto no presente.
A corrida contínua por minérios
A região apresenta uma riqueza de minérios que vem sendo explorados desde a década de 1970. Causando impactos irreversíveis nessa área rica em biodiversidade, a atividade minerária transforma também as dinâmicas de uso e ocupação territorial dos quilombolas e indígenas, isolados ou não, que habitam na região.
O acesso de exploradores de minério foi facilitado com a construção das rodovias Transamazônica, Cuiabá-Santarém, BR – 174 e parte da Perimetral Norte (BR-210), que tiveram suas concessões de abertura durante o período da ditadura militar e cujos traçados incidiram em territórios indígenas.
Essas rodovias e a invasão territorial decorrente tiveram como desdobramento direto o declínio demográfico de muitas populações indígenas, além da perda do controle de suas terras em favor de militares, que assumiram a posição de guardiões das fronteiras. Com a justificativa de facilitar o acesso à exploração de minério as populações indígenas foram submetidas aos rigores da expulsão de seus territórios tradicionalmente ocupados.
Após o longo histórico de dispersões, migrações e esbulho territorial, a regularização fundiária das terras indígenas desta porção da calha norte aqui focada, perdura até os dias de hoje (vide a recém aprovação da presidência da Funai do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Kaxuyana Tunayana, publicada no Diário Oficinal de União em 20 de outubro de 2015).
Em vias paralelas, porém descompassadas, perduram igualmente até hoje as atividades de empresas de mineração no entorno destas terras indígenas, assim como garimpos ilegais dentro dos limites das mesmas. As empresas de maior expressão na região são a Mineração Rio do Norte, autointitulada a maior produtora de bauxita do Brasil, que atua na calha do alto Rio Trombetas fora de terra indígena, mas incidindo em terras quilombolas em processo de regularização fundiária. E a Itautinga Agroindustrial S/A, que explora calcário na calha do Rio Jatapu há mais de 3 décadas, em área fora de terra indígena, mas bem próxima de aldeias Hexkariyana, onde também constam relatos sobre a presença de isolados.
Com uma atuação mais recente, mas não menos expressiva, a empresa GH Paulain Machado, pertencente ao prefeito do município de Nhamundá, vem extraindo desde 2012 areia e seixo através do método de dragagem no leito do baixo Rio Nhamundá, fronteira entre os estados do Pará e Amazonas e dentro da Terra Indígena Kaxuyana Tunayana, em área próxima a um dos registros de isolados existentes na referida TI.
A empresa detém autorização de lavra pelo Departamento Nacional de Produção Minerária (DNPM) em área fora da TI e licença ambiental pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) – quando o órgão licenciador da atividade deveria ser o IBAMA, tendo em vista a Lei Complementar no140, de 8 de dezembro 2011 e a Resolução CONAMA no 237, de 19 dezembro de 1997, que versa sobre processo de licenciamento de empreendimentos desenvolvidos em dois ou mais Estados da Federação. Em 2010, obteve ainda autorização para realização de pesquisas de minério de ouro na mesma região.
Diante da atuação irregular da empresa, ao extrapolar os limites autorizados para extração, invadindo a Terra Indígena Kaxuyana Tunayana, os indígenas estão mobilizados e articulados junto à Funai (por meio da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema e Coordenação Técnica Local de Nhamundá), ao Ministério Público Federal de Manaus e Santarém para disciplinar a atuação da empresa, cujos impactos socioambientais são significativos para as aldeias localizadas no rio Nhamundá e potencializa as vulnerabilidades físicas e territoriais que acometem os povos isolados que habitam esta bacia.
Além das atividades minerárias dessas empresas, existem no Departamento Nacional de Produção Minerária (DNPM) 17 processos de autorização de pesquisa e 1 requerimento de lavra, dentro das TIs Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera e Kaxuyana Tunayana.
E ainda garimpos ilegais no alto Nhamundá e alto Mapuera, em áreas próximas a registros de grupos isolados. E com maior atividade exploratória durante o período da seca, em razão das condições mais favoráveis para garimpar nas cabeceiras.
As atividades expõem os indígenas e as TIs a uma série de problemas, dentre eles: a insegurança física e territorial em função das invasões de garimpeiros e funcionários de mineradoras; o assoreamento dos leitos dos rios em decorrência da extração de seixo e areia, que impacta na navegabilidade e afeta todo o ecossistema que orbita esta bacia hidrográfica. Além disso, a contaminação dos recursos hídricos e, em termos de macro política, o lobby feito pelas empresas contra os processos de regularização fundiárias das terras indígenas visando à exploração dos recursos minerários existentes.
Mineração em Terras Indígenas
Segundo reportagem da Agência Pública de Notícias sobre mineração em áreas indígenas, um quarto ou 25% das TIs no país registram processos minerários no Departamento Nacional de Produção Mineral. Na Amazônia legal um terço, ou 34% das TIs, têm interesses relacionados à mineração. Só o estado do Pará concentra 50% desses processos em TIs já identificadas e delimitadas pela Funai. Enquanto cresce o número de processos minerários, crescem também as invasões em terras indígenas para o garimpo ilegal.
Ainda segundo a reportagem, são 2357 títulos minerários no estado do Pará que, em alguns casos, cobrem áreas inteiras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Apesar dos títulos, qualquer atividade minerária em TIs atualmente é ilegal, já que mesmo prevista na Constituição Federal, não existe legislação específica para o exercício.
Ocorre que os pedidos de processo mineral, mesmo que a atividade não se efetive no curto prazo, garante ao requerente a prioridade sobre a mineração na área. Com isso as empresas requerentes conseguem aumentar o valor de suas ações em mercados futuros. Por outro lado, pressionam a aprovação da regulamentação da atividade que tramita em propostas no Congresso Nacional.
Atualmente a principal aposta do lobby das empresas mineradoras é o PL 1610/96, de autoria do Senador Romero Jucá (PMDB-RR), que tramita na Câmara dos Deputados desde 1996. A proposta voltou a ser discutida no início de 2015, quando o então Presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), assinou a criação da Comissão Especial destinada a emitir parecer sobre o PL 1610/96.
De interesse das empresas mineradoras, o PL 1610/96 é visto pelo movimento indígena como mais um ataque aos direitos dos povos indígenas, pois não prevê o direito das comunidades à palavra final sobre as propostas de mineração dentro de suas terras tradicionais. Na prática, o PL 1610/96 torna a consulta apenas uma formalidade, já que os indígenas não teriam direito ao veto, resumindo os direitos das comunidades à repartição nos resultados econômicos da lavra.
Além disso, o PL 1610/96 não prevê qualquer porcentagem limite das áreas liberadas para a exploração dentro das Terras Indígenas, o que permitiria que alguns territórios indígenas fossem totalmente afetados.
Na opinião de boa parte do movimento indígena e indigenista, o PL 1610/96 desvirtua a proposta do Estatuto dos Povos Indígenas (PL 2057/1991) que visa regulamentar a relação dos povos indígenas com o Estado brasileiro, como apontado na análise do CTI em 2012.
Ameaças aos povos isolados e de recente contato na Calha Norte
Atualmente há na região da Calha Norte dez registros de índios isolados, em diferentes fases de qualificação, que se encontram nos estados do Amazonas, Pará, Roraima e Amapá. Cinco desses registros foram classificados com alto grau de vunerabilidade a partir de fatores como: pressão no entorno, área de empreendimento, referência fora de Terra Indígena, referência em região transfronteiriça, iminência de conflitos, etc.
As ações realizadas pelas Frentes de Proteção Etnoambiental (FPEs/Funai) se orientam tendo em vista os fatores de vulnerabilidade, e para cada situação de risco são desenvolvidas, em parceirias com outros atores, ações específicas.
Quando um grupo se encontra vulnerável por estar em área tranfronteiriça, por exemplo, as ações estarão voltadas para a interlocução com os órgãos oficiais e com as organizações indígenas e indigenistas de ambos os países. O objetivo neste contexto é iniciar diálogos com vistas ao estabelecimento de estratégias e protocolos comuns de trabalho para localização e proteção dos povos isolados.
Se por outro lado há um grupo de indígenas sendo afetado por atividades de mineração ilegal, são realizadas ações em parceiria com outros órgãos para coibir tal atividade.
Um dos registros com alto grau de vulnerabilidade chama a atenção para a presença de um grupo Zo’é isolado, que se encontra fora da Terra Indígena, em uma região com exploração mineral iminente.
Os Zo’é são um povo Tupi-Guarani de recente contato que vem sofrendo com invasões e com a poluição de rios e igarapés, decorrente da expansão da atividade de mineração ilegal.
Em março deste ano foi realizada pela Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema (FPEC/Funai), Polícia Federal, Ministério Público Federal, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a Operação DAKJI, com objetivo de coibir a atividade ilícita de mineração no entorno da Terra Indígena Zo’é.
Na região da Calha Norte existem 3 Frentes de Proteção Etnoambiental – Cuminapanema, Waimiri Atroari e Yanomami/Ye’kuana – que trabalham com a proteção e monitoramento territorial de grupos indígenas em isolamento e promoção de direitos sociais de grupos de recente contato, todas elas num contexto de pressão e expansão das atividades minerárias licenciadas ou ilíticas, dentro e no entorno das Terras Indígenas.
Foto de capa – Fases do Processo Minerário nas Terras Indígenas Trombetas-Mapuera, Nhamundá-Mapuera, e Kaxuyana-Tunayana.
Fonte: Povos isolados na Amazônia.