Por Jonattan Rodriguez Castelli, para Desacato.info.
No dia 24 de junho estreou o último e surpreendente episódio da segunda temporada da série de ficção científica do canal HBO inspirada na homônima obra de Michael Cricthon (autor de Jurassic Park e O Mundo Perdido): Westworld. Aos que não estão familiarizados com esse programa, sua narrativa aborda os eventos ocorridos em um futurístico parque de diversões habitado por androides, de complexa inteligência artificial, onde os visitantes podem interagir com eles, dando vazão a diversos sentimentos e pulsões – inclusive suas inclinações mais violentas. Não se preocupem, contudo, pois não darei spoilers a respeito da série, o importante para este texto é frisar uma das questões que serve de mote para a obra televisiva: até onde a inteligência artificial pode ir.
A partir do desenvolvimento cognitivo dos androides da série, particularmente Dolores e Maeve, a própria concepção do que é real e o que é ser um “ser humano” acaba sendo posto em xeque. À medida que suas capacidades cognitivas se desenvolvem essas personagens passam a questionar a sua realidade, saindo da caverna platônica e adentrando no mundo real. Essa ação, por sua vez, leva a um inevitável confronto entre humanos e androides, onde talvez não haja uma solução pacífica. Esse tipo de conflito abordado por Westworld – os possíveis impactos das tecnologias na ordem social – é tema recorrente na literatura, em autores como Julio Verne e Isaac Asimov, e no cinema (como no recente Ex Machina e em A.I – inteligência artificial).
Quando um conjunto de novas tecnologias tem uma penetrabilidade tão grande que é capaz de transformar não só o modo de produção como as relações sociais, estamos diante de uma Revolução Tecnológica. Cada revolução tecnológica é caraterizada por tecnologias-chave e um novo arranjo institucional (mercado de trabalho, setor financeiro, leis e normas, costumes etc) que as sustentam. As três primeiras foram as Revoluções Industriais, o Fordismo e as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). E agora temos a Quarta Revolução.
A indústria 4.0 é frequentemente encarada como um mero avanço das TICs, porém é mais do que isso. Ela representa a convergência das tecnologias físicas, digitais e biológicas a partir do uso de sistemas digitais que as sustentem. Podem-se elencar nove tecnologias-chave ligadas à indústria 4.0 (IEDI, 2017): os sistemas ciberfísicos (combinação do mundo físico e do mundo virtual); a Big data analytics (coleta e análise de grandes volumes de dados que permite às máquinas aprenderem de maneira autônoma a partir de seus erros, se aperfeiçoarem e realizarem previsões); a computação em nuvem; a internet das coisas; a internet dos serviços (IoS); a manufatura aditiva (entre as quais a impressão 3D); a inteligência artificial; a colheita de energia (que buscam aproveitar pequenas quantidades de energia de processos físicos e mecânicos, como a solar e a eólica) e a realidade aumentada.
Se tomarmos essas tecnologias de maneira combinada, a referência à Westworld se torna mais evidente. Estamos diante de um complexo sistema tecnológico que permitirá às máquinas terem maior autonomia produtiva, a partir do uso da inteligência artificial, da capacidade de aprendizado e de comunicação entre mundo real e virtual. Trata-se, portanto, de uma verdadeira revolução baseada na capacidade das máquinas evoluírem cognitivamente e aprenderem novas funções. Sem dúvidas as consequências da quarta revolução tecnológica serão muito profundas e imprevisíveis, impactando tanto na produtividade quanto no mercado de trabalho e nas demais instituições que permeiam nossas relações sociais.
Como a indústria 4.0 ainda não está plenamente desenvolvida não se pode ainda prever exatamente seu real impacto, porém é possível se fazer algumas conjecturas. Para começo de conversa, esse conjunto de novas tecnologias afetarão a estrutura e funcionamento do mercado de trabalho de muitas formas, tanto de maneiras positivas quanto negativas.
Pelo lado positivo, a combinação dos sistemas ciberfísicos com a inteligência artificial, a virtualização, a internet das coisas e a computação em nuvens pode propiciar melhorias nas condições de trabalho, podendo, inclusive, reduzir o número de acidentes. Elas poderão proporcionar uma nova rotina para o trabalhador, reduzindo o tempo de serviço e aumentando sua segurança. Outra boa nova da indústria 4.0 é a criação de novos tipos de emprego. Evidentemente, algumas atividades serão mais beneficiadas do que outras, o que já pode apontar a necessidade de se repensar na capacitação do trabalhador no futuro. O economista Klaus Schwab alerta para o processo de migração da força de trabalho do setor industrial manufatureiro para o setor de serviços e de TI (o que já vinha ocorrendo com as TICS, mas agora ocorrerá de forma mais intensa).
Ademais, atividades que estejam envolvidas com a produção dessas tecnologias, com transmissão, coleta e processamento de dados, novas matrizes energéticas e a compreensão da inteligência artificial (como a psicóloga do clássico Eu, Robô de Asimov) terão maior destaque, como: engenharia elétrica, da computação, da automação e controle, mecânica e mecatrônica; matemática e estatística; engenharia da produção; ciência dos materiais; psicologia e filosofia; física e química; design entre outras (IEDI, 2017).
Nesse sentido, em estudo do Senai sobre a indústria 4.0 divulgado no dia 05 de julho, são elencadas 30 novas profissões que estão emergindo a partir dessa mudança tecnológica, que podem ser vistas no quadro abaixo:
Sem embargo, a deusa tecnologia é temperamental, e assim como o deus grego Jano, também possui duas faces: uma benevolente e a outra cruel e dura. O que se discutiu acima foi sua face benevolente às causas do trabalhador. O que resta agora é a sua face sedenta por sangue.
Dois graves problemas podem surgir da expansão da indústria 4.0 para o mercado de trabalho: a redução líquida de postos de trabalho – isto é, desaparecer mais postos do que surgir novos decorrente da 4RT – e a precarização do trabalho – o que no Brasil é intensificada pela reforma trabalhista aprovada ano passado e que acaba de completar um ano de existência. Salienta-se ainda, que esses efeitos deletérios podem ser mais profundos nos países em desenvolvimento – América Latina e Brasil – historicamente atrasados na corrida tecnológica. Parafraseando Eduardo Galeano, a deusa tecnologia não fala espanhol, nem português.
Os países latino-americanos enfrentarão dois obstáculos principais: i) seu estoque de capital e capacitação tecnológica são inferiores aos países desenvolvidos; ii) aqui ainda passamos por uma transição demográfica distinta dos países europeus e Japão. Embora a participação de idosos na população total esteja aumentado na América Latina, mesmo assim, nos próximos anos haverá a entrada de uma massa de jovens no mercado de trabalho que podem dar de cara nas portas fechadas das empresas.
Em relação ao desemprego tecnológico, um conjunto de estudos publicados nos últimos anos tem apontado para uma redução dos postos de trabalhos decorrente da adoção das novas técnicas de produção nos próximos anos, mesmo com a criação dessas novas atividades elencadas no quadro acima. Conforme a ONU (2017), com ou sem a ocorrência de novas crises econômicas, em 2035 a taxa global de desemprego alcançará os 20% e até a metade deste século 40% dos postos de trabalho, tal como existem, deixarão de existir. O Citibank, a partir de dados do Banco Mundial, projeta que 57% dos postos de trabalho atuais poderiam ser substituídos por máquinas nos 35 países da OCDE.
O McKinsey Global Institute (2017), por seu turno, estima que 50% dos atuais postos de trabalho no Brasil poderiam ser automatizados, ou seja, 53,7 milhões de um total de 107,3 milhões. Cerca de 60% das profissões poderiam ter ao menos 30% de suas atividades automatizadas, de acordo com essa estimação. Nesse sentido, no Fórum Econômico Mundial de Davos de 2016, apresentou-se a estimativa que até 2020 haverá uma perda líquida de 5 milhões de empregos ao redor do globo. Uma razão de 7,1 milhões de empregos eliminados para 2,1 milhões criados, em decorrência das mudanças estruturais no mercado de trabalho.
Um agravante desse fenômeno é que a redução de empregos atingirá não apenas as funções mais simplificadas do processo produtivo, mas também cargos administrativos. Mesmo atividades que exigem uma alta qualificação e preparo – como médicos, advogados e contadores – com o tempo serão atingidas pela automatização robótica e cognitiva. De fato, esse processo já começou.
Nos ambulatórios chineses, por exemplo, um modelo de Médico-Robô já está em uso no tratamento de pacientes. Baseando-se no processo de aprendizado das máquinas e de inteligência artificial, o robô chinês é capaz de lembrar de diagnósticos e receitas realizados por outros médicos que trabalham no centro ambulatorial e a partir disso atender os pacientes. Na mesma linha, já estão disponíveis no mercado robôs com o objetivo de cuidar e entreter pessoas idosas ou enfermas, tais como o Care-O-Bot, o EllieQ e o Dinsow.
No caso da prática da advocacia, o professor Josh Balckman, professor na South College of Texas of Law (Faculdade de Direito do Sul do Texas), descreve um aplicativo – o qual denomina de Harlan – que poderia substituir o trabalho de advogados e profissionais do Direito na resolução de questões legais mais simples. O aplicativo analisaria informações indicadas pelo usuário sobre o caso – como documentação relevante, as partes, os fatos etc. – a partir de algoritmos que mapeariam as jurisprudências mais importantes e faria previsões e recomendações legais baseadas em casos parecidos. Afora a advocacia, o jornalismo também é vulnerável a essas novas tecnologias, através de um fenômeno denominado de robô jornalismo (jornalismo robô) que seria a utilização de softwares específicos capazes de importar uma base de dados e escrever textos jornalísticos automáticos com frases simples, mas compreensíveis, de acordo com a linha editorial do jornal ou revista.
Já no Brasil, as tecnologias 4.0 que permitem a automatização do trabalho podem ser vistas no metrô da linha amarela de SP que trabalha sem maquinista, os bancos em plataforma (100% digitais) e as caixas automáticas em redes de supermercados que não precisam de operadores. Aliás, um dos setores em que as tecnologias 4.0 transformaram a estrutura de seu mercado de trabalho é o bancário.
Entre 2008 e 2016 as transações financeiras via sistemas digitais e smartphones somadas – o Internet Banking e o Mobile Banking – passaram de 30% para 55% do total das transações bancárias no Brasil, enquanto as feitas nas agências se reduzem significativamente, caindo de 18 para 8%. Já o número de bancários no Brasil teria caído entre 2013 a 2016 em 5,3%, muito decorrente do uso dessas novas tecnologias, atingindo um total de 486 mil pessoas, mesmo nível do que era em 1996 (após a reestruturação dos bancos brasileiros).
Além da redução de emprego, deve-se salientar que as tecnologias 4.0 podem afetar o mercado de trabalho negativamente ao provocarem a sua precarização através da expansão de um fenômeno conhecido como “GIG ou Freelance Economy” ou mesmo “uberização do trabalho”. À medida em que o trabalho é flexibilizado, e no Brasil esse processo é intensificado pela reforma trabalhista, cada vez mais surgem relações de trabalho temporárias sem vínculos empregatícios, como os negócios peer to peer (P2P), onde o trabalho é contratado sob demanda, intermediado pelo uso de aplicativos e softwares específicos, caso da UBER.
Como não há vínculo, também não há direitos, segurança ou estabilidade nesse novo modelo de trabalho. O resultado é uma condição mais precária para os trabalhadores e trabalhadoras. Rodrigues (2018) salienta que atualmente nos EUA 49 milhões de pessoas já trabalham sob esse novo regime de trabalho, porém dessas apenas 30% o fazem por opção própria.
O que se conclui, é que o conflito no mercado de trabalho causado pelo “efeito westworld” já é uma realidade. Seus resultados, embora imprevisíveis, mudarão toda a dinâmica do trabalho e inclusive a ideia de que uma carreira profissional segue uma linha retilínea e bem definida está perdendo espaço à medida que essas tecnologias se expandem globalmente. Reter o avanço tecnológico, no entanto, é impossível e contraproducente, o que devemos fazer como sociedade é refletirmos sobre que meios e instituições deverão ser desenvolvidas para suavizar essa transição e permitir que as novas tecnologias nos sejam benéficas e não um mal a ser combatido.
REFERÊNCIAS
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AGÊNCIA BRASIL. Estudo aponta 30 profissões que estão surgindo com a indústria 4.0. 05 de julho de 2018. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-07/estudo-aponta-30-profissoes-que-estao-surgindo-com-industria-40
BLACKMAN, J. Robot, Esq. 9 de janeiro de 2013. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2198672
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE INDÚSTRIAS (CNI). Relações trabalhistas no contexto da indústria 4.0. Brasília: CNI, 2017. Disponível: http://www.portaldaindustria.com.br/relacoesdotrabalho/media/publicacao/chamadas/Relacoes_trabalhistas_web.pdf
DA SILVA, I. L. A utopia social da inteligência artificial. 13 de junho de 2018. Bloco Jota. Disponível em: https://blocojota.com/2018/06/13/a-utopia-social-da-inteligencia-artificial/
ÉPOCA. Médico-robô começa a tratar pacientes em ambulatório da China. 05 de março de 2018. https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2018/03/medico-robo-comeca-tratar-pacientes-em-ambulatorio-da-china.html
INSTITUTO DE ESTUDOS PARA O DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL (IEDI). Indústria 4.0: A Quarta Revolução Industrial e os Desafios para a Indústria e para o Desenvolvimento Brasileiro. São Paulo: IEDI, julho de 2017. Disponível em: http://www.iedi.org.br/artigos/top/estudos_industria/20170721_iedi_industria_4_0.html
OPERA MUNDI. Jornalismo-robô: softwares que escrevem notícias dividem indústria e profissionais de mídia. 25 de janeiro de 2015. Disponível: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/39252/jornalismo-robo+softwares+que+escrevem+noticias+dividem+industria+e+profissionais+de+midia.shtml
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). The impact of the technological revolution on labour markets and income distribution. https://www.un.org/development/desa/dpad/2017/development-policy-seminar-frontier-issuesthe-impact-of-the-technological-revolution-on-labour-markets-and-income-distribution/
RODRIGUES, V. M. O. Indústria 4.0 no Brasil: impactos no mundo do trabalho. São Paulo: DIEESE, 30 de junho de 2018. (apresentação de trabalho) Disponível em: http://www.fundacentro.gov.br/Arquivos/sis/EventoPortal/AnexoPalestraEvento/INDUSTRIA%204.0%20E%20IMPACTOS%20NO%20MUNDO%20DO%20TRABALHO.pdf
SCHWAB, K. The Fourth Industrial Revolution. Genebra: World Economic Forum, 2016.
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Jonattan Rodriguez Castelli é economista, com mestrado e doutorado em economia pela UFRGS, e faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.