O discurso do capitalismo sobre o “desenvolvimento”

Foto: Mácio Ferreira / AG Pará. Agricultura familiar é considerada contraproducente.

Por Prabhat Patnaik.

A narrativa capitalista sobre o “desenvolvimento”, que se tornou muito influente em todo o Terceiro Mundo no período neoliberal, apresenta-se de seguinte forma:    (i) o “desenvolvimento” tem de consistir no deslocamento da força de trabalho do setor tradicional da economia (pequena produção), que está superpovoado e possui baixa produtividade do trabalho – e, portanto, constitui um repositório de pobreza – para o setor moderno (capitalista), cuja produtividade do trabalho é muito maior;    (ii) para que este deslocamento ocorra, o setor moderno (capitalista) deve ser livre para crescer tão rapidamente quanto possível, e com este fim devem-se remover todos os impedimentos à acumulação de capital; e    (iii) mesmo que durante o crescimento do setor moderno (capitalista) alguns pequenos produtores sejam deslocados – por exemplo, como resultado da aquisição de terras agrícolas ocupadas por camponeses para a instalação de indústrias – este pode ser considerado no máximo como um problema transitório e não deveria merecer muita atenção, dado que toda a força de trabalho associada à pequena produção acabará finalmente por ser absorvida pelo setor capitalista. Disto decorre que a colocação de entraves ao crescimento do setor capitalista, à guisa de proteção do pequeno produtor, constitui um passo atrás, que pode ser ditado por considerações “políticas” ou “populistas”, mas é desprovido de lógica econômica. 

Para justificar este discurso, tipicamente faz-se referência à experiência da Europa Ocidental, onde o setor capitalista surgiu através de um processo de acumulação primitiva de capital – do qual o exemplo clássico foi o “Movimento das enclosures” ocorrido na Inglaterra, quando as terras comunais foram “cercadas” (“enclosed”) por proprietários rurais para impedir que os camponeses as utilizassem e consequentemente tornar a sua economia inviável. Os pequenos produtores deslocados, muito embora tenham passado por grande sofrimento durante o período de transição, acabaram por ser absorvidos em empregos capitalistas. Esta experiência, argumenta-se, irá tão-somente se repetir em países do Terceiro Mundo, como a Índia, onde um processo similar de desenvolvimento capitalista ocorre neste momento.

O discurso também é justificado através da teoria econômica elementar: uma vez que a existência de um setor tradicional e superpovoado de pequena produção mantém os salários próximos ao nível de subsistência, não muito acima do rendimento per capita deste setor, mesmo no setor capitalista, onde o produto por trabalhador é muito maior, o excedente por unidade de produto no sector capitalista é igualmente muito maior. Caso o excedente seja investido, para o que é necessário criar condições favoráveis à acumulação de capital, então o setor capitalista experimentará um alto crescimento que necessariamente afastará a força de trabalho do setor tradicional de pequena produção. E quando essa migração ocorrer os salários irão se elevar no setor capitalista, pondo fim à pobreza na economia. Assim, o que as economias do Terceiro Mundo necessitam para o seu “desenvolvimento” é criar um clima favorável à acumulação de capital, para exacerbar os “espíritos animais” dos capitalistas; isso assegurará o fim da pobreza.

Entretanto, este discurso está fundamentalmente errado. Consideremos, primeiramente, o argumento teórico. Este poderia estar correto, caso estivéssemos a falar de um único nível tecnológico dado, que prevalecesse de forma constante no setor capitalista, de tal forma que durante o processo de crescimento a produtividade do trabalho permanecesse constante. (Modelos econômicos teóricos tais como o de Lewis, que descreve esta transição entre setores, assumem explicitamente que a produtividade do trabalho no setor capitalista é constante). Contudo, o capitalismo, em particular se não houver restrições, introduz continuamente inovações tecnológicas, e desta forma mantém crescente a produtividade do trabalho. Assim, para qualquer taxa de crescimento do produto do setor capitalista, a capacidade de geração de emprego é progressivamente reduzida. Na verdade, se a produção do setor capitalista cresce, digamos 8%, e a produtividade do trabalho cresce 7%, o emprego somente pode crescer 1%; e se ocorre esse crescimento ser menor que a taxa natural de crescimento da força de trabalho, o que acaba por acontecer é que, ao invés de retirar mão-de-obra do setor da pequena produção, o setor capitalista não será capaz de empregar nem mesmo o crescimento natural da sua própria força de trabalho. Assim, o argumento teórico simples utilizado para justificar este discurso não permanece válido a partir do momento em que percebemos o progresso tecnológico no setor capitalista.

Retornaremos a este ponto mais tarde, mas antes examinemos o argumento histórico sobre a experiência da Europa ocidental. É completamente errado sugerir que os pequenos produtores deslocados pelo capitalismo da Europa Ocidental foram absorvidos no interior do sistema como trabalhadores. Um vasto contingente deles foi deslocado para as colônias, semicolônias e dependências, devido à livre importação de produtos das metrópoles, e permaneceu nesses territórios, reduzido ali a uma massa pauperizada. De facto, a “moderna pobreza em massa”, que consiste não somente em baixa produtividade do trabalho, mas acima de tudo na insegurança econômica , tem suas origens neste processo de deslocamento, que jamais foi seguido de qualquer absorção na força de trabalho capitalista, uma vez que este setor, naquelas economias, permaneceu diminuto por longo tempo.

No entanto, mesmo quando falamos dos deslocados dentro das economias das metrópoles, vemos que eles também não foram absorvidos por empregos no capitalismo metropolitano. Eles emigraram, em grande número, para as regiões de colonização com clima temperado, como o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e a África do Sul, onde expulsaram os habitantes locais de suas terras e estabeleceram-se eles mesmos como agricultores. Foi essa emigração, estimada em 50 milhões de pessoas durante o “longo século XIX” (que terminou na I Guerra Mundial), que manteve sob controle a reserva de trabalhadores da Europa, que possibilitou o surgimento de sindicatos bem-sucedidos e a elevação dos salários à medida que a produtividade do trabalho subia, reduzindo assim a pobreza. O que esteve na base da experiência europeia não foi nenhuma tendência inerente ao capitalismo para a absorção das pessoas por ele deslocadas no contingente de mão-de-obra, e sim a emigração em larga escala, uma possibilidade que não mais existe para as populações do Terceiro Mundo (algo que o drama dos refugiados que hoje chegam à Europa demonstra amplamente).

Assim, o discurso sobre o “desenvolvimento” propagado pelo capitalismo não é nem teoricamente, nem historicamente válido. Mas há mais. Suponhamos que o crescimento do emprego no setor capitalista fique abaixo da taxa natural de crescimento da força de trabalho, como sugerido mais acima. Assim, uma vez que as reservas de trabalho cresceriam, em vez de contrairem-se, os salários reais do setor capitalista continuariam a se manter ao nível da subsistência; mas dado que a produtividade do trabalho no setor continuaria a elevar-se (pois esta é a razão básica pela qual as reservas de trabalho não se esgotam primeiro), a parte do excedente no setor capitalista também estaria a se elevar.

Actualmente, aqueles que vivem do excedente numa economia do Terceiro Mundo tipicamente emulam o estilo de vida que prevalece entre a população rica da metrópole, o que requer mercadorias menos intensivas em trabalho do que as mercadorias demandadas pelas massas trabalhadoras no Terceiro Mundo. Assim, a crescente desigualdade de rendimentos dentro desta economia causará uma elevação subsequente da produtividade do trabalho e consequentemente uma nova redução na capacidade de absorção de mão-de-obra no setor capitalista. Isto provoca um novo aumento da desigualdade e assim por diante. Forma-se um círculo vicioso no qual a capacidade do setor capitalista de fornecer empregos se mantém decrescente ao longo do tempo. Mesmo que a taxa de crescimento da produção se mantenha alta e inalterada (e propositadamente abstraímos da argumentação qualquer problema relativo à deficiência da procura agregada neste setor, isto é, deliberadamente admitimos a validade da absurda Lei de Say assumida como verdadeira pela economia burguesa), caso o setor capitalista não reduza à partida as reservas de trabalho, nunca poderá fazê-lo. E o que é mais grave, ao não fazê-lo ocorre um agravamento na pobreza daquela economia, mesmo em comparação com o que poderia ter prevalecido em outras circunstâncias.

Em outras palavras, ao invés de superar a pobreza através do crescimento efectivo, o capitalismo em economias como a nossa [Índia] produz crescimento econômico num pólo, possivelmente até com taxas mais elevadas, e um agravamento da pobreza no outro. Este agravamento torna-se ainda pior se o crescimento no setor capitalista simultaneamente causar o deslocamento de pequenos produtores, o que ocorre quando as terras dos camponeses são tomadas para a construção de fábricas, estradas e outras obras de infraestrutura, isto para não mencionar projetos imobiliários ou campos de golfe.

Isto não significa que não devamos construir fábricas ou estradas e sim que elas criam um problema dentro da lógica da trajetória do desenvolvimento capitalista. A compreensão intuitiva deste facto é o que está por trás da resistência dos camponeses e de outros segmentos da população afetados pela desapropriação de suas terras para os diversos projetos de “desenvolvimento”.

Disto se segue que o “desenvolvimento” capitalista, não importa quão rápido seja, é incapaz de superar a pobreza e o desemprego em sociedades como a nossa. A necessidade de uma trajetória alternativa ao capitalismo para o desenvolvimento, que defenda e promova a pequena produção, elevando seu nível de organização através de cooperativas e coletivos de trabalho formados voluntariamente (para o que uma redistribuição igualitária de terras é uma condição necessária), que dependa do setor público e deste setor cooperativo para levar adiante os investimentos e introduzir o progresso tecnológico (cujo resultado não mais seria a criação de desemprego) decorre desta razão.

Uma tal alternativa, entretanto, requer uma mudança no caráter de classe do Estado. Ela exige um Estado baseado na aliança entre os trabalhadores, incluindo os agrícolas, e os camponeses, e outros segmentos de pequenos produtores. Contudo, mesmo no período transicional antes que tal Estado seja alcançado será indispensável às forças progressistas lutar contra a trajetória de desenvolvimento capitalista neoliberal, que somente agrava a pobreza na economia, e fazer reivindicações transicionais ( transitional demands ) que tragam à luz e fortaleçam esta aliança de classes.

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