O direito e a mentira na crise europeia

Dizia Winston Churchill que, em tempos de guerra, a verdade é tão valiosa que deve ser acompanhada de mentiras como guarda-costas. E na crise económica também encontramos um fértil ecossistema no qual proliferam mentira e engano para proteger a verdade, ou o que ainda restar dela.

Por Alejandro Nadal.*

Agora que o Syriza voltou a triunfar nas eleições gregas, o tema da restruturação da dívida ganha maior relevância. Tsipras e o seu partido apresentam-se ante o eleitorado e a opinião pública como os únicos capacitados para conseguir este objectivo que se lhes escapou no seu primeiro mandato. Mas as novas tentativas enfrentarão as velhas mentiras.

Desde que estalou a crise na Europa diz-se repetidamente que é necessário aplicar as regras e os tratados fundamentais da união monetária. Essa retórica refere-se em primeira instância à necessidade de pagar as dívidas adquiridas e, em segundo lugar, à impossibilidade de resgatar uma economia em perigo de cair em insolvência e suspensão de pagamentos.

Qual é o fundamento legal da segunda regra? Normalmente faz-se referência ao artigo 125, primeiro parágrafo, do Tratado da União Europeia na sua versão consolidada. Essa disposição diz que nem a União, nem os estados membros, assumirão ou serão responsáveis pelos compromissos dos governos centrais, autoridades regionais ou locais ou outras autoridades públicas, ou empresas públicas dos estados membros, sem prejuízo das garantias financeiras mútuas para a realização conjunta de projetos específicos.

Este artigo é a expressão do que comummente se chamou a cláusula de não resgate no contexto da crise europeia. Mas a letra desta disposição somente proíbe à União ou aos estados membros assumir as dívidas de outros estados membros. Não proíbe fazer empréstimos para ajudar outro Estado membro a superar uma crise.

O mais importante: onde se proíbe explicitamente a restruturação de dívidas de um Estado membro? A resposta: em nenhuma parte. O artigo 125.1 não proíbe a redução de taxas de juro nem a extensão de prazos ou o adiamento do pagamento de juros ou de capital. Schäuble e os seus amigos no Ecofin não têm argumentos legais para se opor a uma restruturação da dívida grega. A única opção que lhes resta é agarrarem-se ao dogma neoliberal.

Ainda que isto possa parecer estranho, esta é a interpretação avalizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso Pringle contra o governo da Irlanda. O TJUE está encarregue da interpretação e aplicação do marco legal da União Europeia. Esse caso foi iniciado pelo deputado irlandês Thomas Pringle que questionou o procedimento de criação e mesmo a legalidade do mecanismo europeu de estabilidade (MES). Este mecanismo foi criado em 2010 de forma rápida e formalizado num tratado especial em 2012. O mandato do MES é velar pela estabilidade macroeconómica e assegurar o funcionamento dos fundos de resgate que marcaram as primeiras respostas das instituições europeias face à crise. No caso Pringle, o Tribunal rejeitou os argumentos do deputado, tanto no que respeita a falhas de procedimento, como a aspecto centrais do MÊS.

O veredicto do TJUE não surpreendeu os economistas e os apaixonados dos dogmas sobre livre mercado. Mas no âmbito forense, esta decisão foi vista com preocupação. Trata-se de uma sentença superficial que não corrige os vícios essenciais de muitas mudanças introduzidas nos tratados constitutivos da UE para tranquilizar os mercados financeiros.

O exemplo anterior não é o único com bases legais frágeis. O programa do Banco Central Europeu (BCE) sobre Transacções monetárias directas (OMT, nas siglas em inglês) é outro exemplo importante. Esse mecanismo permite ao BCE comprar títulos de curto prazo no mercado secundário para reduzir o custo de financiamento para países europeus. Mas hoje a controvérsia legal subsiste: o anúncio da criação do OMT numa conferência de imprensa é quase o único fundamento legal de dito programa. Estou a exagerar, claro, mas não por muito.

Desde que estalou a crise, o regime de direito na União Europeia encontra-se submetido a tensões insuportáveis. O ‘modo de emergência’ resultou em delegar ao BCE todo o tipo de faculdades, algumas das quais carecem de fundamentos legais robustos e outras simplesmente fazem com que a ideia de prestação de contas seja uma piada de mau gosto. O resgate é e será para os amigos.

Hoje os governos e instituições europeias respondem cada vez menos aos cidadãos. O estado de direito converteu-se no manto protetor da arbitrariedade. A ajuda e a flexibilidade para os amigos e aliados, a regra dura e a rigidez para os nossos inimigos. Essas são as verdadeiras regras de Schäuble e dos seus amigos.

A senhora Christine Lagarde disse-o em 2011 com grande clareza: os líderes da União Europeia tiveram de violar a lei para salvar o euro. Mas Esquilo já se tinha adiantado, ao assinalar que a verdade é a primeira vítima numa guerra.

*La Jornada

Fonte: Esquerda.net

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