Por André Márcio Neves Soares* em LavraPalavra.
O documentário chamado “O dilema das redes sociais”, exibido pela Netflix, é emblemático para a realidade brasileira por dois motivos: 1) a sensação do aumento de inclusão e participação social com o progresso da tecnologia de entretenimento virtual é uma fantasia; e 2) o Brasil, como um país periférico, com todas as mazelas daí decorrentes (baixa escolaridade, saúde e trabalho precários, falta de regulamentações específicas contra “fake news” etc.), está muito mais vulnerável em termos de manipulação em massa.
De fato, o último grande movimento nacional, em 2013, serviu como manobra das elites para criar o ambiente propício para o golpe parlamentar desferido três anos depois, em 2016. Apesar do protesto popular em 2013 ter começado por um motivo bem simples, qual seja, o aumento das passagens de ônibus em R$ 0,20 (vinte centavos de real), a verdade é que a população geral do Rio de Janeiro e o grupo dominante nacional revelavam objetivos bem distintos. A população carioca explodiu, farta dos desmandos locais do governo Cabral, amplamente divulgados pela grande mídia. O grupo dominante nacional, por outro lado, estava ávido por uma oportunidade concreta de apear do poder um segmento de classe, os petistas, que jamais deveria ter chegado aonde chegou, embora tenha firmado acordos para garantir a governabilidade que foram amplamente favoráveis à elite nacional e transnacional.
Parece oportuno lembrar as palavras de Sófocles, no início do documentário acima citado, quando diz: “Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”. O grandioso progresso tecnológico das redes sociais virou o mundo de cabeça para baixo em menos de duas décadas. Realmente, se fizermos uma comparação histórica entre o que ocorria em termos de movimentos sociais, de qualquer natureza, antes do advento das trocas de mensagens instantâneas, e o pós “espalhamento” dessas redes de conectividades globais, a diferença entre o tempo e o espaço dos acontecimentos parece hoje ser abissal.
Um bom exemplo, talvez, pode ser o Brasil da última ditadura (1964 – 1985). A despeito dos violentos embates nos primeiros anos entre o regime militar e os que tentaram resgatar o regime democrático, é fato que a grande manifestação popular que enterrou de vez qualquer projeto de continuidade dos militares no poder só aconteceu 20 anos depois, na grande manifestação no centro do Rio de Janeiro, em 1984, que ficou conhecida como “Diretas já”. Hoje em dia, salvo em condições excepcionais, isso seria impensável. Basta vermos o que aconteceu na chamada “primavera árabe”, mesmo que os resultados não tenham sido de todo animadores. Uma revolta popular, que antes das redes sociais podia levar anos em gestação, hoje leva dias. E se for do interesse do mercado produtor de mercadorias, talvez apenas horas.
O filósofo húngaro Lukács, em uma longa entrevista ao “Der Spiegel” alemão, no início dos anos 1970, já avisava através dos ensinamentos de Lênin que: “… quando as classes dominantes não podem mais governar como antes e as classes oprimidas não querem mais viver como antes, aí surge uma situação revolucionária” (1).
Nessa toada, tanto na forma macro global, quanto na forma micro no nosso país, a angústia do capitalismo é verificar que a elite mundial/local não consegue mais governar apenas com os seus interesses de curto prazo. Para além da já tão desgastada luta de classes, existe hoje um novo ator muito mais poderoso, introjetado entre esses dois velhos combatentes: o fator ecológico. A atual pandemia da COVID-19 é apenas um, o mais visível no momento, dos vários problemas que o progresso desenfreado das tecnologias artificiais está acarretando no planeta. Além da pandemia, temos a volta do sarampo, o derretimento das geleiras e o aumento do nível dos oceanos, o desmatamento como fator de aquecimento global etc.
Destarte o sucesso inicial do golpe parlamentar em 2016 no Brasil, que resultou num governo de transição de cunho claramente privatista e demolidor dos direitos e garantias dos trabalhadores, o pior ainda estava por vir. De fato, com o apoio da grande mídia nacional, a reverberar diariamente os supostos desmandos dos governos do PT, e a possível candidatura de Lula para tentar um terceiro mandato na eleição de 2018, as mídias sociais foram tomadas de assalto por uma fração de classe do chamado baixo clero parlamentar, capitaneado pelo atual presidente Bolsonaro, em conluio com a Igreja Pentecostal (especialmente, mas também outras igrejas evangélicas), para disparar notícias falsas como nunca antes na história desse país, e sem qualquer tipo de controle. O resultado dessa manobra, todos nós já sabemos: a ascensão de um novo grupo ao poder, em conjunto com uma parcela das forças armadas. Uma espécie de um novo pacto civil-militar, nos moldes da última grande ditadura, agora travestida de legalidade pelo voto democrático.
Voltando a Lukács, é interessante notar sua falta de ilusão quanto ao mito do nefasto “novo homem” moderno. Ele sabe que a história oferece diversas possibilidades coletivas e individuais. E diz: “Se, onde e como este renascimento do marxismo terá lugar é algo sobre o qual obviamente nada podemos dizer. Mas as nossas considerações devem concluir pela demonstração ontológica de sua possibilidade” (2). Assim, não podemos olvidar da continuidade do poder das manifestações sociais presenciais. Ainda que as redes sociais sejam o caminho atual para o chamamento às ruas, por motivos nobres ou torpes, não se fazem mudanças pela fibra ótica dos aparelhos eletrônicos. Pelo menos não ainda. O Brasil foi um claro exemplo torpe, mas ainda assim um exemplo, de como os novos tempos estão sujeitos ao clamor dos disparos de chamadas à distância. Pessoas das mais diferentes classes sociais, gêneros, etnias e cores foram às ruas pedir o impeachment de uma Presidenta eleita pelo voto popular, sob rasteiras acusações, e mais tarde colocaram no poder um grupo manifestamente antidemocrático. Chega a ser deprimente a cena no documentário indicado onde apoiadores do presidente Bolsonaro gritam “Facebook … Facebook… Facebook”.
A democracia, historicamente, é uma lenda. Uma ordem imaginada, como disse Harari (3). Se isso for correto, e concordo com ele, a democracia brasileira pode ser encarada como uma das porta-estandartes desse tipo de regime político no atual campo histórico da nossa modernidade. Pois, desde a proclamação da República, essa mesma derivada de um golpe militar, a população em geral (nesse caso, especificamente, a população comum do Rio de Janeiro) assistiu a tudo bestializada (4).
Ao longo das décadas passadas, especialmente entre os anos de 1930 e 1960, o Brasil foi o país que mais cresceu, com um profundo, acelerado e contundente espraiar das relações capitalistas no campo e na cidade, com a característica central negativa da sociedade brasileira, qual seja, a de possuir a maior concentração de renda e riqueza do mundo. Assim, o desenvolvimento capitalista não prescindiu de uma superpopulação relativa, com elevado custo social, a comprometer o futuro de muitas gerações de brasileiros.
Nesse sentido, é preciso enfatizar que esses processos não são apenas econômicos, mas também de força, no sentido ditatorial, ou elementos de cultura política que se tornam o solo fértil para as sementes da dominação e da submissão. É notória a modernização conservadora brasileira, com a estratégia-mor de privatizações, clientelismo, cultura inflacionária e populismo, com apoio da grande mídia a essa cultura de contrarreformas e formadora de opinião elitista. O avanço do neoliberalismo não se explica sem todos esses fatores atuando de forma conjunta e regressiva, incutindo nesse “ser-aí” (Dasein) heideggeriano uma política de insegurança da existência, com a perspectiva do desemprego estrutural e suas consequências nefastas para a maior parcela dos trabalhadores.
O dilema da participação social brasileira impulsionada pelas rede sociais, com todos esses ingredientes já brevemente explicitados, em tempos de pandemia, não pode perder de vista o entendimento sobre os direitos fundamentais e sua relação com a totalidade da vida social. Pois, é a ação humana envolvida e determinada pelo pertencimento às classes sociais em disputa que, ao cabo, ergue, aniquila, reconstrói, possibilita e inviabiliza a produção e reprodução da vida, sob dadas condições materiais. É a “produção em um grau determinado do desenvolvimento social, da produção dos indivíduos sociais” (5).
A partir da década de 1990, especialmente nos países periféricos como o nosso, o que se tem evidenciado são processos de guerra, que foram desencadeados de modo artificial para garantir a expansão do capital. Com isso, a retração dos direitos face à universalização das relações mercantis foi acentuada. E não é surpresa, pois, se por um lado, quanto mais se dilaceram as condições de existência, maior é o apelo à valorização dos direitos; por outro, maiores são as derrotas desses apelos, o que configura uma espécie de esgotamento dessas ações que visam controlar a fúria destrutiva do capital por meio da ação do Estado.
Nesse aspecto, o conhecimento objetivo da realidade é sempre um grande desafio. As redes sociais hoje, na maioria dos casos, distorcem parcial ou completamente o objetivo primário das manifestações de rua, estas normalmente de interesse público, para favorecer escusos interesses de grupos privados. Temos visto isso no Brasil, em maior ou menor escala, desde a redemocratização. Para o bem ou para o mal. Portanto, não podemos (nem devemos) correr o risco de conceder ao direito, e à sua estruturação num complexo jurídico-político, independência e autonomia, como se este se constituísse numa esfera autorregulada. Ser anticapitalista implica colocar-se ideologicamente na luta permanente contra o sistema e os valores liberal-burgueses. Precisamos nos mover nas contradições, esfera onde se inscrevem os direitos fundamentais de qualquer ser humano, para preencher de sentido emancipatório e direção social contrária ao “status quo” as lutas que indicam e dão visibilidade à barbárie do tempo presente, sob o domínio do capital.
Caso contrário, o crítico e ensaísta inglês T. J. Clark (6) pode ter razão na sua visão não apocalíptica do futuro, porém não menos dolorosa. Diz ele:
“A ‘saída da modernidade’ será precisamente … um processo que nada terá de apocalíptico, um processo arrastado, massacrante, chocante, banal, medíocre, sem o menor traço de ‘espetáculo’. Essa é a realidade que, no contexto político atual, a direita e o centro (assim como a ‘esquerda’ estabelecida) a meu ver não conseguem enxergar, quanto mais enfrentar. Continuo a acreditar que uma esquerda não estabelecida – uma esquerda sem futuro – pode ser capaz de fazê-lo.”
Acreditamos, de fato, que CLARK conseguiu captar, pragmaticamente, o fim da modernidade. Historicamente, a visão apocalítica do mundo sempre esteve presente em momentos de barbáries e/ou de catástrofes. Mas, como todos os atuais vivos sabem, o mundo nunca acabou. O que sempre mudou foram as condições orgânicas e materiais da histórica. As lutas emancipatórias da civilização foram sempre interpretadas de forma dialética pelos envolvidos. Não é privilégio do capital deter, e até demolir, direitos já conquistados. O que vemos é a retroalimentação ideológica de uma lógica de desigualdade que sempre existiu. O problema está na rapidez com que essas demolições estão ocorrendo. Sucede que, como diz CLARK, até o advento das derrocadas imponentes das grandes eras passadas, com seus respectivos impérios, está sendo-nos privado.
Nesse aspecto, vale também trazer à tona o pensamento de DUFOUR (7) sobre o declínio do Grande Sujeito lacaniano da modernidade e a passagem para a pós-modernidade. Diz ele:
“Com efeito, o próprio da modernidade, em nome do espaço crítico e ‘crísico’ em que ela se move, é combater tudo – inclusive ela mesma. Assim, foi por seus próprios meios que ela caiu na armadilha.”
Bem-vindo à era das rede sociais e da participação (in)significante!
Notas:
1 – Verinotio – Revista on-line de educação e ciências humanas. N. 9, Ano V, nov. 2008 – Publicação semestral – ISSN 1981-061X;
2 – LUKÁCS, Gyorgy. Idem;
3 – HARARI, Yuval Noah. HOMO DEUS – Uma breve história do amanhã. São Paulo. Boitempo. 2016;
4 – CARVALHO, José Murilo de. OS BESTIALIZADOS – O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo. Companhia das Letras. 1987;
5 – MARX, Karl. Introdução (à crítica da economia política). In: MARX. Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1996;
6 – CLARK, T. J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo. Editora 34 2013;
7 – DUFOUR, DANY-ROBERT. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro. Companhia de Freud. 2005.
* André Márcio Neves Soares é Mestre e Doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica – UCSAL/BA.