O diabo na mesa dos fundos, de Wesley Barbosa

Por Nélio Santos

Wesley Barbosa inicia sua obra com o conto “Parada para o almoço”, falando de: amor, fome e trabalho. Três questões fundamentais na longa jornada humana por sobre a Terra. Sendo a última, em especial, destacada no decorrer das narrativas como o cerne das questões problematizadas em O diabo na mesa dos fundos (Selo Povo, 2015).

Violência, criminalidade, prostituição, ocultismo, fé e símbolos das religiões afro-brasileiras, entre outros temas caros à Literatura Marginal, recebem o tratamento linguístico diversificado entre a oralidade e a norma culta. Seja na efabulação do olhar desconfiado do Outro, que acusa, julga e condena sem nenhuma prova ou razão de ser; nas humilhações de todas as espécies que impelem à vontade de se fazer ouvir, de tornar-se visível e de existir; ou na disputa pelo amor materno, na necessidade de se afirmar como homem e ser aceito, e o enfrentamento aos temores da puberdade. Ao longo dos 19 contos que compõem a obra em questão, acompanhamos o olhar perspicaz de um cronista, extraindo das suas vivências a matéria necessária para produzir sua arte.

Ora narrados em primeira pessoa, ora conduzidos pela voz de um narrador intruso, os contos de Wesley Barbosa se desenvolvem colocando à prova o seu potencial enquanto escritor. O que resulta numa rica e diversificada coleção de histórias que se mantêm intercaladas, seja por meio dos temas que servem como motivo condutor, ou por meio das personagens que se cruzam entre um conto e outro.

Calar-se e sorrir é a norma no dia a dia daqueles que toleram o serviço “pelo menos mais uns meses”, ou pelo tempo que for necessário para “sustentar seu filhinho recém-nascido”. Trabalhadores que se consumem no “desejo de vencer na vida, com as mãos calejadas”, enquanto sonham com a vinda de alguém para libertá-los daquela penúria. Ou, simplesmente, tentam a sorte num jogo de azar, análogo à própria vida, cujo preço a ser pago pode ser tão caro quanto a própria existência.

Ao problematizar sobre a condição humana (isto é: a essencialidade daquilo que somos), Hannah Arendt leva em consideração: o que estamos fazendo na era moderna, partindo de uma distinção entre os conceitos de Trabalho, Ação e Obra. Em resumo, segundo Arendt, “a condição humana do trabalho é a própria vida”. Nessa perspectiva, a sobrevivência do homem está intimamente ligada àquilo que ele produz. Enquanto a Ação (vita activa) representaria: “uma vida dedicada aos assuntos público-político”, uma vez que “viver”, de acordo com o significado original que tinha para os romanos, era sinônimo de “estar entre os homens”; a Obra e o seu produto seriam, por fim, o que “conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano”.

De certo modo, a Literatura Marginal carrega em sua definição os três conceitos, na medida em que a Obra produzida na periferia se apropria desse mundo artificial de objetos para representar, por meio de uma Ação militante-política, toda a sua pluralidade, revolta e reconhecimento social e racial, transformando aquilo que era elitizado, em um meio de subsistência daqueles que estão à margem da sociedade em diversas questões. Por essas e outras, o gênero é igualmente definido como um ato de resistência contra as opressões pessoais e coletivas. Uma forma de romper com a invisibilidade, de se fazerem ouvir e ser lido. Posto isso, recolocar as perguntas: quem somos e o que somos, requer um entendimento sobre aquilo que consideramos essencial à vida.

Um modo objetivo de compreendermos tais questões, ou iniciarmos uma investigação mais segura, se dá quando compartilhamos “um mundo humano comum com outros que o observam a partir de diferentes perspectivas”, pois, “tudo o que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que se possa falar sobre”.

Por mais antropológico que seja o método empregado, as experiências de vida contidas em O diabo na mesa dos fundos não se restringem a um conglomerado de narrativas sintetizadas a partir do olhar subjetivo. Wesley Barbosa depreende a realidade que o cerca, emprestando a sua voz ao colocar-se na pele do outro, convidando-nos a coparticipar de um processo que ao mesmo tempo é autoconhecimento e testemunho. As questões que surgem nas entrelinhas tecidas por Barbosa, giram em torno da busca dessa pelo conhecimento de si, da alteridade, do processo emancipatório e de luta.

Quando uma vida consumida pelo trabalho impossibilita o conhecimento, e a educação formal alheia-se à realidade daqueles que ela deveria ajudar a trilhar um futuro melhor, não é fácil reverter a lógica de um sistema ceifador de sonhos. Nesses casos, a recusa em se enquadrar em papéis indesejáveis, requer mais ousadia e talento do que sorte, embora o auxílio dessa seja sempre bem-vindo; sobretudo quando o universo parece conspirar contra todo e qualquer resultado positivo. Certamente essa é uma das mensagens que Wesley Barbosa transmite por meio das personagens Beto e o seu tio Lúcio. Fazendo-a valer a partir de si mesmo, ao se lançar na literatura como quem olha para aquilo que causa medo, ciente de que só assim é possível “encarar vida com mais coragem”. O resultado do seu trabalho é uma obra que representa tanto a abertura de porta para uma profícua carreira como escritor, quanto um caminho que se estende para além das periferias.

Wesley Barbosa, nascido em Itapecerica da Serra, divisa com São Paulo, tem 25 anos e começou a publicar seu trabalho em seu blog, wesleyliteratura.blogspot.com.br, que vem alimentando desde 2009 com textos, poemas e contos. Faz parte do encontro de Literatura Marginal, desde maio de 2014, onde começou a divulgar, no microfone, seus primeiros trabalhos. Concluiu apenas o ensino médio, trabalhou em biblioteca de escola e como repositor de supermercado, além de desenvolver diversas outras atividades. O diabo na mesa dos fundos (Selo Povo) é seu livro de estreia.

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