Por Elaine Tavares.
A pequena ilha de São Francisco do Sul, carrega, além das belezas, a marca de ser a cidade mais antiga de Santa Catarina, ocupada em 1553 por espanhóis, tornando-se vila em 1640, já sob o domínio dos portugueses. É quase um pequeno paraíso estendido na margem do mar, com casarios portugueses e praias de absurda beleza. Tem o quinto maior porto do país e conta com grandes armazéns de carga. E foi justamente aí que se deu o acidente que coloca a cidade na triste estatística dos grandes desastres ambientais e humanos. Desde o dia 24 de setembro, alguma coisa ainda não sabida deu início a um incêndio de grandiosas proporções, envolvendo produtos químicos em um dos armazéns da Global Logística, na região do porto. O desastre provocou um gigantesca nuvem de poeira e gás tóxico, cujo destino fatalmente será o coração da terra e o corpo das gentes.
O armazém da Global estava abrigando toneladas de fertilizantes, cujo principal componente é o nitrato de amônio. Atingido pelo fogo ele libera o óxido nitroso, um gás que provoca contrações involuntárias nos músculos da face, por isso conhecido como o gás do riso. Isso, por si só já é um problema, mas ainda não se sabe se outros produtos químicos estão associados ao caso. Já nos primeiros dias de nuvem de poeira ou gás, a população começou a sentir as consequências. A pior delas atinge as vias respiratórias.
O governo tentou acalmar a população dizendo que a nuvem não era tóxica, mas foi uma irresponsabilidade. Com o andar das horas, estudiosos das áreas químicas e biológicas já informavam que o nitrato de amônio, se inalado em grandes quantidades, como era o caso, poderia causar sérios problemas respiratórios, chegando até a levar a morte. Também há informações de que as consequências deverão chegar em médio e longo prazo para todos os que inalaram o gás ou a poeira.
Os moradores que tiveram condições saíram da cidade, mas a tela da televisão mostra as gentes empobrecidas completamente impotentes diante do desastre. Alguns estão em abrigos, outros, sem saída, permanecem nas suas casas, sempre inalando o produto. Os hospitais estão lotados e o medo salta às vistas. Desinformação, terror, impotência, abandono. Esse é o quadro.
Hoje pela manhã (27) a mídia comercial já estava louvando o controle do incêndio, como se tudo pudesse voltar ao normal. Não voltará! As toneladas de produtos químicos que subiram com a fumaça faltamente descerão à terra e penetrarão no solo, causando toda a sorte de problemas ambientais. Segundo Adalgiza Fornaro, do Departamento de Ciências Atmosféricas da IAG/USP, o fato de ser depositada no solo uma quantidade imensa de fertilizante vai gerar tanta vida que ela se afogará nela mesmo, paradoxalmente causando a morte de bichos e plantas. As águas ficarão contaminadas, a terra também, podendo inclusive, levar anos até que tudo possa crescer de forma natural.
O que passará então, com São Francisco do Sul? O que passará com as gentes, aquelas que não têm a opção da fuga? Como será feito o acompanhamento da saúde das pessoas que, segundo os especialistas nessas coisas químicas, deverão ser monitoradas por anos a fio? Haverá o cuidado do estado para com esse povo, ou eles serão abandonados à própria sorte nos postos de saúde sem médico e sem estrutura?
O que passará com o ambiente de São Francisco, com as águas, a terra? Insistirão os governantes em dizer que não há perigo, que tudo está bem? Uma breve pesquisada via google e já se tem a noção dramática dos perigos do excesso de nitrato de amônia na água e no solo. Como o governo vai acompanhar e monitorar todos esses efeitos?
E o que passará com a Global Logística que estocava produtos, talvez sem o devido cuidado, uma vez que o nitrato e amônio, base do fertilizante, é considerado um produto explosivo, portanto necessitando de um manuseio especializado?
Todas as perguntas ainda estão sem resposta. Mas elas não são difíceis de serem adivinhadas. Há pouco tempo, um vazamento de óleo ascarel foi observado na ilha de Santa Catarina – bem na região de cultivo de ostras – igualmente tóxico, igualmente contaminante por longos anos, igualmente causador de graves problemas de saúde para os que foram tocados por ele. Aparentemente tudo está esquecido. E não será nenhuma surpresa saber que o posto de saúde das comunidades próximas seguem suas rotinas, sem que haja um monitoramento sistemático da saúde das gentes. Assim, não é difícil imaginar que as pessoas em São Francisco do Sul, pelo menos aquelas que não têm nem dinheiro nem informação, sejam também abandonadas ao seu destino.
Caberá, como sempre, às entidades ambientais e aos ativistas políticos, a luta pela vida de toda essa gente e do ecossistema. As mesmas entidades e pessoas que são vilipendiadas, chamadas de “contra o progresso”, aquelas que vivem a clamar por responsabilidade no trato com esses produtos que são altamente tóxicos e prejudiciais, que denunciam e que, por isso, têm, colada no corpo, a etiqueta de “eco-chatos”.
Pois já não é de hoje que os ecologistas e ativistas políticos vêm denunciando os danos que causam à terra e à vida todos esses produtos químicos usados indiscriminadamente na agricultura. Agrotóxicos, fertilizantes, sementes transgênicas. Mas, tudo sempre é repudiado como um empecilho ao progresso, uma negação da ciência. A velha sabedoria popular já cunhou o ditado: o remédio pode ser veneno, e o veneno pode ser remédio. O que dá o limite é a quantidade. E, no mundo moderno, que faz o elogio da ciência, aquilo que poderia ser o remédio há muito tempo que virou veneno, sempre em nome do lucro. Não é sem razão o aumento exponencial de casos de câncer, doenças desconhecidas e outras pragas que assomam e atacam as gentes e os bichos.
O acidente em São Francisco pode não ter sido uma acidente qualquer. Ainda está por investigar as causas, se houve mau acondicionamento, se não havia informação suficiente sobre a periculosidade desse produto, se tinha alvará dos bombeiros etc… Mas, isso, de qualquer forma, não redime o fato de que o acidente aconteceu e terá consequências indeléveis para os habitantes. Que sejam punidos os culpados e que as gentes se alertem: o mundo moderno encapsulou e manipulou forças gigantescas que podem escapar a qualquer momento, com terríveis consequências. A sociedade deve, portanto, ter conhecimento sobre elas, e saber como controlar. Não é possível que as gentes sejam mantidas na ignorância dos perigos que as cercam, impotentes diante dos “acidentes” e que, depois, ainda sejam deixadas à própria sorte. O povo organizado precisa assumir o controle disso tudo sob pena de seguir sendo vítima impotente de casos como esses.
Elaine Tavares é jornalista.