Por José Álvaro de Lima Cardoso, Desacato.info.
Aos poucos, e de forma não linear, vai se consolidando um mundo multipolar, liderado por China, Rússia, Índia, Irã, Turquia e outros, que estão à frente do chamado Sul Global. Esses países abrigam populações que somadas representam cerca de 87% dos habitantes da Terra. A atual ofensiva dos norte-americanos contra a Rússia e China, e em geral contra todos os países do Sul, concretizada neste momento pela ardilosa guerra da Ucrânia, está sendo produzida contra 87% da população mundial.
A polarização política que estamos enfrentando no Brasil e em várias outras partes do mundo reflete uma disputa global que tende a se arrastar por vários anos, entre uma proposta de economia mundial dominada pelo dólar e pelo poder bélico norte-americano, e uma alternativa multipolar, possivelmente com o centro na Eurásia (região onde habitam 2/3 da população da Terra).
Com a guerra na Ucrânia, todos os sinais de alerta já foram emitidos em relação à oferta de energia e alimentos no mundo. Os governos dos principais países europeus já anunciaram a nacionalização ou reestatização de empresas de energia (Életricité de France, EDF; nacionalização da Sefe na Alemanha, e outras).
Medidas dessa natureza, que vêm sendo adotadas em vários países, decorrem da necessidade de preservação da segurança no abastecimento de energia internamente. Não são ações ideológicas, mas de caráter político e econômico, que tentam evitar o colapso das economias. Com a guerra da Ucrânia e o aumento do preço da energia esses países sentiram na carne os efeitos de ter que dividir as decisões sobre setores estratégicos com a iniciativa privada. Só mesmo um governo muito entreguista como o de Bolsonaro,
poderia, neste momento conjuntural, praticamente doar para o setor privado uma companhia com a importância da Eletrobrás.
O golpe perpetrado no Brasil em 2016, coordenado pelos EUA, deve ser compreendido no contexto dessa encarniçada disputa internacional. Michel Temer, que encabeçou o golpe, de saída encaminhou a Medida Provisória 795/2017, que reduziu impostos às petrolíferas estrangeiras na exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural. Foi um verdadeiro “pacote de bondades” às multinacionais, que significou para o Brasil a perda de
receitas equivalente a R$ 50 bilhões por ano. Foi um crime de lesa pátria, fácil de ser sintetizado em grandes números: com a “MP da Shell” (como ficou conhecida por razões óbvias): em cinco anos o país perdeu R$ 250 bilhões, somente em tributos.
Do ponto de vista político, a MP da Shell foi útil para dissipar qualquer dúvida de que o Brasil sofreu um golpe de Estado em 2016, coordenado por forças imperialistas: as isenções fiscais para as petroleiras, irão representar, no longo prazo, perda de receita na casa de R$ 1 trilhão. As medidas foram tão generosas que o presidente da Shell no Brasil, André Araújo, na ocasião não conseguiu segurar a alegria: “O pré-sal é onde todo mundo quer estar”. Não se pode subestimar (nem esquecer) o papel no golpe de Michel Temer, que é um autêntico testa de ferro dos interesses imperialistas no Brasil, e que encaminhou questões que atrasaram o país em muitos anos, como a referida medida provisória e a aprovação da Emenda Constitucional 95, uma jabuticaba nacional.
O Brasil ainda é o país mais industrializado da América Latina, mas o setor vem sistematicamente perdendo importância no PIB, em uma política típica de país subdesenvolvido e colonizado. Bastou uma guerra na Europa para o Brasil revelar sua vulnerabilidade no abastecimento de fertilizantes, insumo essencial para o setor agrícola. O processo de reindustrialização do Brasil, como tem sido chamado, terá que interromper, dentre outras medidas, o processo de “entrega em fatias” da Petrobrás e recuperar o papel crucial da companhia no desenvolvimento da indústria em geral, do setor petroquímico,
na geração de tecnologia, na área de fertilizantes e de energia da biomassa.
Há um pesado jogo internacional, agora agravado pela guerra na Europa, para tentar controlar os recursos naturais vitais dos países subdesenvolvidos, por parte das multinacionais e governos imperialistas. Alguns países, que dispõem de projeto nacionais de desenvolvimento, até trataram de “exportar” as indústrias poluentes, ou “menos interessantes”, mas mantêm o núcleo duro industrial, para garantir segurança alimentar, energética, e de defesa nacional. Três áreas que estão muito interrelacionadas, pois não
existe defesa nacional sem segurança alimentar e energética.
Não existe soberania nacional sem desenvolvimento de indústria estratégica, conforme os acontecimentos recentes no mundo, didaticamente nos ensinam. A alavancagem de valor no setor industrial significa a movimentação da cadeia produtiva como um todo: comércio, pesquisa, serviços em gerais, transporte, logística, infraestrutura, e assim por diante. A
cadeia produtiva estruturada pela indústria pode ser facilmente compreendida
pelo ramo petroquímico, área da química encarregada dos derivados de petróleo e sua utilização na indústria. Não há setor da economia que gere uma cadeia produtiva tão densa e rica, como a indústria. É claro que a indústria de hoje não é a do século XIX. Nos países desenvolvidos, e em parte é assim no Brasil, há uma grande integração entre indústria e os setores de serviços.
As cadeias produtivas são o conjunto de etapas através das quais os diversos insumos (matéria-prima) são transformados em um bem. Os insumos são transformados, por meio do trabalho humano e uso de máquinas e equipamentos, até se transformarem em produtos chamados de intermediários.
Elas abrangem os bens de consumo, que chegam ao consumidor final, assim como os bens de produção (matéria-prima) e bens de capital (equipamentos e bens necessários para a produção de outros bens ou serviços), que servem para produzir os bens de consumo. A cadeia produtiva, que comumente desenvolve seu ciclo em mais de um país, movimenta inúmeros setores da economia, gerando emprego e renda.
No processo de produção industrial é fundamental universidades e centros para desenvolvimento da pesquisa básica, assim como dispor de um banco de fomento para financiar pesquisas e a própria indústria. É essencial também estruturar um sistema de serviços e distribuição dos produtos, e assim por diante. Em toda a cadeia de produção e distribuição há agregação de valor, trazido pelo trabalho humano, que gera renda, impostos, e outros serviços. Indústria significa também desenvolvimento da tecnologia. Por exemplo, a economia norte-americana tem grande dependência da indústria de armas.
Das 100 maiores companhias de armas, 41 têm sede no país. Elas venderam 54% do total de 2020, ou US$ 285 bilhões (R$ 1,6 trilhão) –aumento real de 1,9% em comparação com 2019. Desde 2018, os 5 primeiros lugares da lista são ocupados por companhias norte-americanas. A China vem em seguida: vendas de companhias do país representam 13% do total de 2020 (US$ 66,8 bilhões, ou R$ 383 bilhões). O orçamento dos EUA para 2023, no ano fiscal que começou em outubro, é de US$ 5,8 trilhões. Deste valor, US$ 813 bilhões
são destinados à guerra.
As ações do golpe, materializadas nos dois governos anteriores, foram essencialmente o desenvolvimento de um projeto subalterno e colonizado, visceralmente contra o desenvolvimento industrial do país e que significou: destruição do mercado consumidor interno, redução dos direitos trabalhistas e dos salários reais, precarização do trabalho, aumento da pobreza, destruição dos investimentos em educação e saúde, liquidação das instituições públicas de pesquisa. Essas políticas compõem uma estratégia, muito mal disfarçada, para manter o Brasil como nação subdesenvolvida e provedora de matérias
primas para os países ricos.
Está colocada agora a possibilidade de desencadeamento de um projeto nacional e soberano de desenvolvimento, que pressupõe um conjunto enorme e decidido de medidas. A situação é extremamente difícil, começando pelo fato de que a previsão de crescimento da economia brasileira para esse ano é de 1%. O país tem a taxa de juros mais elevadas do mundo e gasta bilhões, todos os anos, com juros da dívida, que possibilitam uma vida doce para os grandes bancos, fenômeno sem paralelo no mundo. A dívida pública é
uma verdadeira “lombriga” gigante que drena o que pode da energia vital da economia brasileira.
A recuperação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é estratégica para a recuperação da economia nacional. O Banco foi simplesmente decisivo no processo de industrialização do país. Não por acaso, há seis anos os governos do golpe vêm tentando liquidar o Banco, enquanto instrumento de desenvolvimento: segundo dados do atual presidente do banco, o BNDES transferiu para o Tesouro Nacional, desde o golpe, R$ 678 bilhões. Ou seja, o banco se tornou um instrumento de retirada de recursos da
economia para financiar o Tesouro, invertendo o papel histórico que o BNDES sempre exerceu, que era criar as possibilidades para a geração de riqueza
nova, gerando empregos, impostos e desenvolvimento.
Se o novo governo federal, que está cercado de predadores por todos os lados, conseguir definir e encaminhar um projeto de desenvolvimento (o tempo é muito escasso), o BNDES terá um papel fundamental no reerguimento da economia nacional. A bola está em jogo.
Obs: A opinião do autor não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.