Neste 7 de setembro, o dia tinha amanhecido cheio de incertezas. Nos últimos dias, tivemos de suportar uma enorme carga de pressões que visavam nos afastar dos atos populares de rua programados para a data.
Por um lado, Bolsonaro havia convocado atos de força para o mesmo dia e havia posto em funcionamento toda sua máquina política miliciano-fascista para ajudá-lo a levar vantagens em sua disputa contra o STF em sua pretensão de aferrar-se ao comando do governo nacional, sem precisar submeter-se à eventualidade quase segura de ser derrotado por Lula nas próximas eleições.
Esta ameaça de um golpe de força por parte de Bolsonaro não era algo carente de importância. Afinal, estavam ativamente engajados como apoiadores e articuladores dessa medida de força os principais representantes do agronegócio e do capital financeiro. Portanto, rios de dinheiro foram disponibilizados para a elaboração e concretização dos planos de ocupação das ruas de Brasília e de São Paulo pelas hostes do nazibolsonarismo.
Com os recursos de que dispõe, o bolsonarismo havia lançado pelas redes sociais da internet uma gigantesca campanha de intimidação para acuar a militância de cunho popular. Sendo assim, nos últimos dias, só se falava na presença de milicianos armados nos atos programados e, além disso, que contariam com a colaboração de muitos elementos ativos das corporações policiais e militares.
Se isso de por si já não fosse suficiente para cumprir o papel de aterrorizar a militância de esquerda, também apareceram em canais e redes progressistas várias personalidades que se dedicaram a desestimular a participação de nossa militância nos eventos programados para o chamado Grito dos Excluídos. Ainda que possa ter sido de modo involuntário, esse apelo desmobilizador vindo de nosso próprio seio teve até maior peso na função de amedrontar nossas forças do que o trabalho deliberado nesse sentido por parte dos bolsonaristas.
Levando-se em conta que a realização das manifestações populares tinha sido democraticamente deliberada pelos responsáveis das entidades populares participantes no fórum de luta que as une, a atuação desmobilizadora de certos comunicadores do campo progressista deve ser entendida como profundamente negativa e contrária aos interesses que todos dizemos representar. Se tivessem se limitado a defender posição contrária tão somente até a tomada de decisão pela coordenadora dos movimentos, poderíamos entender e aceitar a atitude. Mas, depois da deliberação ter sido tomada, não!
Em vista do anteriormente exposto, persistia a incerteza do que poderia advir de nossa participação nos atos de luta. Foi imbuído desse sentimento que desci do ônibus próximo à Praça da Sé, em São Paulo, e me pus a percorrer o curto caminho que a liga ao Vale do Anhangabaú, onde pretendia me congregar.
E foi nesse transcurso que uma profunda tristeza me acometeu. Fazia alguns anos que eu não repisava aquelas ruas pelas quais trilhava constantemente no tempo em que trabalhava como office-boy naquela região da cidade. Nunca havia visto tanta miséria e tanto sofrimento humano acumulado como agora constatei. Não deu para conter a tristeza que tomou conta de meu coração.
Como tinha sido possível deixar que as ruas da principal cidade de nosso país estivessem repletas de seres humanos sobrevivendo em condições piores às de animais abandonados? Gente de todas as idades, de crianças de poucos anos a idosos esgotados, estirada ao léu pelas calçadas, tratando de se acercar rapidamente a qualquer um que por lá se aventurasse em busca de alguma ajuda para saciar a fome. Seria preciso estar desprovido de nenhum sentimento de humanidade para não sofrer um choque de tristeza com aquelas cenas.
E a dor e a indignação se tornaram ainda mais agudas ao recordar que, há pouco mais de 5 anos, tínhamos reduzido significativamente o nível de miséria em nosso país e que cenas como as que eu estava presenciando agora eram então muito raras. E foi sob tamanha tristeza que apertei o passo até alcançar o ponto de concentração dos manifestantes.
No entanto, tão logo ao chegar, como num passe de mágica, a esperança de conquistar um mundo melhor, mais justo e mais solidário, voltou a ganhar força em meu interior.
Ali, pude me deparar com muitos outros que deviam ter passado pelas mesmas incertezas que me haviam atingido no início da jornada. Senti um grande alívio ao comprovar que eu não tinha sido o único a resistir às pressões imobilizadoras.
Mas, o que mais me ajudou a recobrar a confiança foi a singela apresentação rítmica que estava sendo feita pelo grupo de bateria do movimento feminino. Não consegui segurar a emoção ao ver como um grupo de mulheres tão diversificadas pareciam atuar com tanto espírito de solidariedade, entusiasmo, dedicação e empatia, como se cada uma fosse parte integrante de um único corpo, o corpo de nosso povo brasileiro.
Pude ver na linha de frente, segurando com suas mãos a ampla faixa de apresentação da agrupação, uma jovenzinha de ascendência japonesa ladeada por uma negra e por outra branca. Atrás da faixa, várias outras de todas as idades e tipos raciais, tocando com fervor e emoção os instrumentos que marcavam o ritmo do momento.
Pode ser que isto seja nada mais do que uma expressão de pieguice que me acometeu, mas não posso deixar de dizer que a partir daquele momento me senti revigorado para continuar a luta em busca desse sonho de um mundo onde não haja discriminação nem opressão de uns seres humanos contra outros.
Recobrei a confiança, pois senti que com o engajamento sincero de gente como aquela que eu tinha junto a mim naquele momento, seria possível sonhar em pôr fim ao sofrimento tão cruel daqueles tantos outros que eu tinha acabado de presenciar a poucos metros dali.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
—