Por Iara Haasz e Bruno Huberman.
No último dia 19 de outubro, durante uma conferência na Universidade da Flórida, chamou atenção a declaração do líder supremacista branco estadunidense Richard Spencer, no qual afirmava ter Israel como um modelo de Estado “etno-nacional” que aspirava criar nos EUA. “O mais importante e, possivelmente, o mais revolucionário etno-estado, aquele que olho como referência, embora eu nem sempre concorde com a sua política externa, é o Estado judeu de Israel”, afirmou Spencer, enquanto centenas de manifestantes protestavam contra a sua presença na universidade.
A referência causou surpresa uma vez que veio daquele que cunhou o termo “alt-right” para designar o grupo dos nacionalistas branco de extrema direita que tem ganhado proeminência nos EUA e saudou a vitória de Trump a presidência com um “Hail Hitler”. No entanto, não foi a primeira. Após o episódio de Charlotesville, em agosto deste ano, quando houve confronto entre grupos neonazistas e antifascistas, Spencer afirmou em entrevista a um canal de televisão israelense: “como um cidadão de Israel que tem um sentido de identidade, de nacionalidade e de povo, assim como tem uma história e a experiência do povo judeu, você deveria respeitar alguém como eu que tem sentimentos análogos sobre os brancos”. Em outra ocasião, Spencer se chamou de “sionista branco”.
A família Netanyahu, antissemitismo e George Soros
Este foi mais um caso de uma sequência recente de aproximações entre proeminentes antissemitas e judeus sionistas, sejam israelenses ou não. Outro episódio digno de nota foi o do portal neonazista Daily Stormer, que prestou uma homenagem irônica ao filho do primeiro-ministro de Israel, Yair Netanyhu, afirmando ser “fã número um de Yair Netanyhu no mundo”. “Eu estou ao lado de Yair e os seus memes”, explicou o responsável pelo site, o blogueiro estadunidense Andrew Anglin, acusado de organizar uma campanha antissemita contra uma judia estadunidense. “Eu estou feliz em ver que existe um alt-right em Israel que está se posicionando contra a influência corrosiva no Ocidente do povo judeu. Eu estou defendendo Yair porque ele se posicionou contra os judeus.”
O meme a que Anglin refere-se é uma imagem postada por Yair no qual coloca o empresário judeu George Soros por trás de uma conspiração, envolvendo répteis e um ministro do gabinete de seu pai, supostamente responsável pelos diversos problemas legais aos quais a família Netanyahu tem enfrentado recentemente. A postagem também foi elogiada pelo ex-líder da Ku Klux Klan David Duke.
O nosso blog “Quebrando Muros”, inclusive, também já foi alvo de acusações similares de judeus brasileiros na sua página no Facebook. A leitora Diana Charatz Zimbarg nos acusou de receber dinheiro de Soros por defendermos a descolonização da Palestina e criticarmos ações do Estado de Israel (apenas para deixar claro, o blog e os seus autores são completamente independentes e não recebem nenhum dinheiro de ninguém).
Este é, claramente, uma alteração no padrão das acusações de judeus sionistas contra judeus antissionistas, passando do campo psicológico — quando a principal crítica era “self-hating jews”, ou “judeus que se odeiam” —, para o econômico. A hipótese do posicionamento político, incrivelmente, ainda continua sendo descartada.
Voltando ao caso da família Netanyahu. Soros é um bilionário judeu radicado nos EUA que, na juventude, fugiu da ocupação nazista da Hungria. Nos últimos anos, o operador do mercado financeiro tornou-se alvo de diversos grupos e indivíduos de direita pelos investimentos realizados em organizações e campanhas progressistas e liberais em diversos países do mundo por meio da sua fundação Open Society Foundations, no qual apoia, por exemplo, a legalização do abordo e da maconha.
Embora seja um notório defensor de um neoliberalismo progressista e esteja longe de ser socialista, Soros é alvo de ataques que o acusam de conspirar em favor de uma dominação global comunista. Tais acusações, comumente, resvalam para o tradicional antissemitismo europeu, que acusava os judeus europeus, no início do século XX, de secretamente comandarem o mundo. Paralelamente, o bilionário é acusado por líderes israelenses de financiar organizações contrárias a Israel ao redor do mundo, como o JStreet nos EUA, um grupo de judeus liberais estadunidenses que criticam a ocupação dos territórios palestinos, mas não apoiam algumas pautas defendidas por palestinos e judeus antissionistas, como o Direito de Retorno dos refugiados palestinos.
Desta forma, a inimizade com Soros tem sido um dos motivos da aproximação entre líderes sionistas e notórios antissemitas. Este não é o caso apenas de Yair Netanyahu e dos neonazistas estadunidenses, como também da amizade entre o premiê Bibi Netanyahu e o primeiro-ministro húngaro, Victor Orbán. O político húngaro ganhou proeminência mundial por suas declarações xenófobas e antissemitas e por apoiar a sua última campanha política em ataques antissemitas contra Soros, que tem financiado grupos de oposição na Hungria. Não por coincidência, Orbán, é, atualmente, um dos maiores apoiadores de Israel na Europa.
Benjamin Netanyahu e Viktor Orbán durante visita do israelense a Hungria
Uma ampla aproximação
Embora os episódios que cercam Soros demonstrem uma agenda comum entre antissemitas e sionistas, essa relação não se resume a sua figura. Esse caso acontece num contexto em que judeus ao redor do mundo tem relevado casos de antissemitismo em troca do apoio a Israel, ao passo que proeminente racistas tem buscado aproximar-se de Israel, um modelo de nação que afirmam admirar. Não é acaso que a militante antissionista israelense Sahar Vardi afirmou que hoje “é ok ser racista em Israel”.
Este foi o caso da candidata à presidência da França, Marine Le Pen, durante a campanha presidencial deste ano; assim como do Partido da Liberdade de extrema-direita austríaco, do líder Heinz-Christian Strache, que na juventude se envolveu em movimentos neonazistas e que, recentemente, tornou-se um defensor da colonização da Cisjordânia, chegar a visitar Israel a convite do Likud.
Beatrix von Storch, a líder do partido de extrema-direita alemão Alternativa para a Alemanha, que recentemente conquistou a terceira maior bancada no parlamento do país com base numa agenda anti-imigração, afirmou ver Israel como uma inspiração para o seu projeto político e, no passado recente, fundou uma coalização composta por partidos de extrema-direita no Parlamento Europeu chamada “Amigos da Judeia e Samaria” (“Judeia e Samária” é o termo que a direita israelense utiliza para se referir ao território palestino ocupado da Cisjordânia).
O ex-conselheito de Trump Steve Bannon
Um caso ainda mais notável talvez tenha sido o de Steve Bannon, ex-estrategista-chefe do presidente dos EUA, Donald Trump (que também possui declarações antissemitas e um amplo apoio a Israel no seu currículo). Membro do alt-right, Bannon viu suas declarações antissemitas serem minimizadas por proeminentes judeus estadunidenses, caso do articulista do New York Times Alan M. Dershowitz, que trabalhou com Bannon no passado e que o defendeu em artigo no Haaretz — embora tenha chamado atenção para suas posições islamofóbicas. Bannon foi demitido do seu cargo no governo após os conflitos em Charlotesville.
Em suma, para os judeus sionistas, defensores de uma ideologia nacionalista que nasce em resposta à perseguição institucionalizada contra os judeus na Europa no século XIX, o racismo a muçulmanos parece ter se tornado um caso menor desde que o apoio a Israel permaneça. Enquanto isso, a categoria “antissemitismo” fica reservada a figuras de esquerda antissionistas, como é o caso do ex-Pink Floyd Roger Waters, importante defensor do movimento de BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) a Israel. Consequentemente, cada vez mais a acusação de antissemitismo perde valor, tornando-se um instrumento para descreditar acusações a Israel.
O sonho do nacionalismo étnico
Embora alguns possam apontar que o alinhamento de partidos e lideranças de direita com Israel seja motivado pelos posicionamentos do governo liderado por Netanyahu, que congrega uma série de partidos de direita, eu acredito que a leitura mais apropriada dessa questão está nas declarações do líder supremacista branco Richard Spencer na Flórida, que vê Israel como o “mais importante e, possivelmente, o mais revolucionário etno-estado”.
Palestinos durante passagem de checkpoint em Bethlehem, na Palestina
Israel é a realização concreta de todos aqueles que sonham com a constituição de um Estado-Nação com uma ampla maioria etnica e altamente militarizado que consegue defender-se de todos aqueles que são vistos como ameaça ao seu projeto nacionalista. No caso dos israelenses, as ameaças são principalmente os milhões de palestinos que vivem no mesmo território e lutam por liberdade, as vezes por meio do terrorismo, e que, no fim, são submetidos a um regime de apartheid para evitar que tenham plenos direitos políticos e influenciem nos rumos do Estado judeu. Como também são os imigrantes africanos e asiáticos, marginalizados nas grandes cidades israelenses, como Tel Aviv, e alvo de manifestações sociais e políticas governamentais xenófobas — o governo israelense já chegou a deportar filhos de trabalhadores estrangeiros que não desejavam deixar o país.
Na visão de líderes de direita como Trump, Le Pen, Bannon, Orbán, von Storch, Spencer e Strache, essa ameaça pode ser traduzido no grande número de africanos e asiáticos que nos últimos anos tem tentado migrar para na Europa e os Estado Unidos em busca de melhores oportunidades. Esses imigrantes, muitas vezes, são acusados de roubar o trabalho dos nativos, cometer atentados terroristas, espalhar a criminalidade e, em última instância, corromper a pureza da tradição cultural nacional. A líder do partido de extrema-direita alemão, von Storch, disse admirar Israel pelos seus “esforços em preservar a sua cultura e tradições únicas”.
As campanhas políticas dessas figuras, as declarações racistas, as fronteiras cada mais militarizadas, o veto a entrada de imigrantes de certos países, os muros e cercas erguidos nas fronteiras nacionais e a importação de tecnologias e conhecimentos em segurança de Israel são importantes demonstrações de compartilhamento dos meios para alcançar os mesmos objetivos: um Estado-Nação etnico, no qual as minorias estejam sob completo controle social.
Cerca erguida para evitar a entrada de imigrantes na Hungria
Como não deseja ver muitos sionistas de esquerda, a origem desse alinhamento não está no governo Netanyahu, tampouco nas recentes manifestações fascistas nas ruas de Israel, mas na formação original do sionismo. Inspirados no nacionalismo cultural romântico alemão, que entende um povo como aquele que divide a mesma etnia e raiz histórica, que fala a mesma língua e divide costumes e tradições, o sionismo se consolidou como um movimento colonizador puramente étnico na Palestina, que buscou construir uma comunidade apartado dos palestina e exclusivamente para os judeus.
Essa ideologia nacionalista acabou por reinventar o hebraico, por historicizar a bíblia, por inventar a figura do “novo homem judeu” e por extinguir a variedade cultural judaica em nome da hegemonia da nova identidade sionista, matando, por exemplo, a língua ídiche, falada por judeus do Leste Europeu, mas que por ser vista como a identidade do antigo judeu “fraco” europeu, tornou-se um idioma proibido tanto nos congressos sionistas como nas escolas israelenses.
Em tempos de falência do multiculturalismo e de recrudescimento dos nacionalismos e da xenofobia globalmente, não é de espantar que o Estado judeu tenha se tornado um exemplo para aqueles que sonham com o purismo étnico no interior de um Estado-Nação, até mesmo para aqueles que no passado viam os judeus como uma ameaça a sua própria identidade nacional.
Fonte: Opera Mundi.