Por Rosangela Bion de Assis.
Quando terminou a primeira série primária, com sete anos, Dilza Celestino, foi retirada da escola. Ela ficaria responsável por ajudar a mãe com as tarefas da casa e os cuidados com os sete irmãos. Na década de 50, em Criciúma, a menina que queria saber o porquê de tudo, manteve os irmãos na escola para que não precisassem, como o pai, procurar o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) depois de adultos.
Com 23 anos, ela voltou para a sala de aula, completou o ensino fundamental e o ensino médio. No primeiro emprego, como passadeira, assim que foi selecionada, Dilza já solicitou um horário que não prejudicasse seus estudos. Depois, trabalhando na cerâmica Cesaca, ela economizou para cursar o Auxiliar de Enfermagem em período integral, em Criciúma. Durante o curso, ela falava para as amigas do seu desejo de ser Servidora Pública Federal, e não deu outra: passou no concurso para o Hospital Universitário, em 1981, e para o Hospital Florianópolis, em 1984.
Assim ela realizou o sonho do pai, Waldemar Alcino Celestino, mineiro da Carbonífera Próspera. Com quase 17 anos ele casou-se com Santa Martins Celestino, que tinha entre 11 e 12 anos, mas queria algo bem melhor para os filhos. “Meu pai era um negro charmoso, de 1,86m, que vivia da pesca até começar a trabalhar na mina, com 14 anos. Ele já dizia que a gente devia estudar e ter uma profissão. Foi uma felicidade fora do comum, quando ele pode ler um jornal.”
“Enquanto houver pessoas que pensam como você, vamos viver na opressão, a força da mudança está nas nossas mãos e nas tuas também”
Em 1982, Dilza participou da primeira greve da sua vida: foram 84 dias de luta. “Já no fim da greve, alguns queriam desistir e o administrador do Hospital Universitário, seu Aldir, fez a proposta de pagar o salário de quem voltasse ao trabalho. Nesse dia, na Assembleia de Greve, denunciei o administrador e reivindiquei que nós usássemos uniforme branco, como os médicos e enfermeiros de nível superior. A nossa roupa era um amarelão horrível, parecia que não éramos cuidadores, mas do setor de manutenção. Também cobrei que fosse unificada a forma de registro de ponto, pois éramos todos servidores. Naquele dia, fomos até o Reitor da UFSC pressionar e o pagamento foi liberado.”
“Eu vi que tinha nascido para aquilo, fui pra rua bater panelas e gritar ‘fora Figueiredo, corrupto, ladrão’. E ainda estávamos na ditadura militar. Meu pai achava que o trabalhador não poderia se revoltar, mas quando eu comecei estudar, entendi que meu pai reproduzia o discurso do patrão.” Dilza alertou o pai; “Enquanto houver pessoas que pensam como você, vamos viver na opressão, a força da mudança está nas nossas mãos e nas tuas também”. Ele passou a estudar e ler mais. E quando quiseram cortar as aposentadorias dos mineiros, ele foi pra Brasília. Os mineiros invadiram o Congresso para não perder direitos. “A minha coragem contaminou ele.”
Os militares a fizeram lembrar a tia loira de olhos verdes, nascida após a passagem do capitão que havia violentado sua tia-avó.
Dilza tinha 14 anos, quando os militares chegaram a Criciúma, em 1964. Ela ia levar o almoço para o pai na Linha 11 e uma grande quantidade de milicos fechava as ruas que davam acesso ao sul do país e a Carbonífera Próspera, uma estatal forte, naquela época. Ela foi tomada pelo pânico. Os militares a fizeram lembrar a tia loira de olhos verdes, nascida após a passagem do capitão que havia violentado sua tia-avó, durante a Guerra dos Farrapos. “Não se usava a palavra estupro na nossa casa e a minha tia foi criada com os outros irmãos, sem qualquer distinção, mas quando eu vi os milicos eu me apavorei. Aquela região, em que hoje passa a Avenida Centenário, naquela época era uma mata fechada e eu temi que eles pudessem fazer comigo o que tinham feita com ela.”
Ela também lembrou da época dos primeiros bailes, na Próspera. “A gente já sabia, se o pai autorizasse a compra de tecidos pra fazer os vestidos e ir na Lurdeti, para comprar os sapatos, em seguida eles receberiam dinheiro para o ingresso, para as bebidas e para voltar para casa. Se ele não falasse nada é porque não tinha condições”.
Nos anos 60, ela lembra que ficava olhando pela janela o trem passar, perto das 11horas. Sempre que vinha algum parente de Laguna, passava abanando um lenço e assim a família ficava sabendo se viria mais alguém para o almoço. Hoje tudo fica tão pertinho. Dilza queria ter vivido aquela época com a tecnologia atual. “Essa tecnologia permite conhecer toda a história do país, acessar tanto conhecimento, mas infelizmente a maioria só usa para bobagens. Um povo que não conhece a sua história não pode julgar ninguém, não pode mudá-la. Hoje existem ferramentas maravilhosas que não são usadas. O povo usa pra mostrar o cachorro, o pratinho que está comendo, essas coisas…”
Hoje falta diálogo nas casas, os pais perderam o interesse pela educação dos filhos. Eu e minha filha somos muito amigas, daquelas que caminham abraçadas e conversam de mãos dadas.
“Eu tive um casamento que não deu certo; durou quatro anos. Eu rezei muito para receber uma orientação do que fazer naquela época. Eu tenho uma fé muito forte. Lembro que era dia 15 de outubro, chegamos da Igreja e eu estava lavando a louça quando a Maria Cláudia, com três anos de idade, me disse: ‘mãe, vamos separar do pai? Vamos pra casa da avó?’ E me mostrou três dedinhos. Eu não entendi naquele momento o que significavam aqueles dedinhos. Perguntei se ela estava preparada para se afastar do pai? Ela disse que estava e só me pediu pra eu não casar de novo”.
Dilza procurou a mãe e um advogado. Três meses depois saiu o resultado da Justiça devolvendo a casa para ela e para a filha. “Faz 27 anos que eu sou pai e mãe da Maria Cláudia. No jaleco da foto da formatura está escrito: Dra Maria Cláudia Celestino, sem o nome do pai. Hoje, ver a minha filha se formando com todos os sacrifícios que eu passei, com esse salário do Ministério da Saúde, vendendo roupa pra ajudar no orçamento e pegando empréstimo, são 58 anos trabalhando. Tenho muito orgulho dela pela idoneidade, pelo carinho que tem pelos idosos e pelos deficientes.”
Maria Cláudia fez o Trabalho de Conclusão (TCC) do curso de Odontologia voltado para as crianças deficientes. Ela realizou uma reunião com pais de crianças que necessitam de cuidados especiais, e apresentou um modelo de escova adaptada aos dedos, que facilita a higiene bucal. Uma mãe se emocionou durante a apresentação e disse: ‘é tão raro ver uma jovem importando-se com crianças deficientes’.
“Eu ensinei a minha filha que os estudos eram a responsabilidade dela, assim como o trabalho era a minha. Minha filha tem 30 anos, mas a gente combina tudo. Algumas amigas dela comentam que gostariam de ter com a mãe uma relação como a nossa. Hoje falta diálogo nas casas, os pais perderam o interesse pelo dia-a-dia e pela educação dos filhos. Nós somos muito amigas, daquelas que caminham abraçadas e conversam de mãos dadas. Maria Cláudia diz que vai educar o seu filho como ela foi e eu só peço saúde para ver isso.”
“Discutem política como quem fala do time de futebol, não entendem que são eles comandam a vida da gente por quatro anos.”
Dilza fez parte da direção do Sindprevs/SC por três gestões, entre 1999 e 2008, e sempre foi Diretora de Base no seu local de trabalho. Para ela, líderes sindicais, comunitários e partidários perderam o respeito pela democracia e esqueceram a essência da Constituição de 1988. “No dia que a Dilma foi praticamente escorraçada da presidência, nós perdemos tudo. O que vai ser da minha filha, da minha família e de nós que dependemos dessa democracia?”
“No movimento sindical e nas Federações as divergências nos fizeram esquecer o que nos une. Isso me afastou da luta. O PT não poderia ter mudado por causa das coalizões. Eles esqueceram de onde vieram, das suas raízes. A esquerda, ao invés de brigar com a direita, briga entre ela. Na época em que eu estava na direção do Sindicato, nós tínhamos divergências internas mas quando acabava a reunião atuávamos de acordo com a maioria, isso era consenso.”
Em 2015, ela conta que não votou. “Nenhum candidato me representava. Eu acompanho todos os programas e debates políticos, analiso tudo. O Congresso hoje reúne toda a podridão e o povo continua votando nos ladrões. Discutem política como quem fala do time de futebol, não entendem que são eles comandam a vida da gente por quatro anos.”
Para Dilza, “se a Reforma da Previdência passar, vai ter cinco ou seis comendo de um salário, hoje todos temos salários. Eles não vão mexer nos grandes, vão mexer naqueles que ganham o salário mínimo. Eu tenho defendido que a Previdência Social não é deficitária, em todos os lugares que vou.
A crise no país não é econômica, é política e não existe crise para uma minoria que tem uma riqueza incompatível com o que ganha. Só vou crer num país melhor quando o povo estiver na rua gritando, dizendo chega”.
“Se não invadirmos o Congresso, não vamos barrar o que está vindo por aí. Enquanto tiver trabalhador e servidor achando que é insubstituível não vamos mudar a história desse país. Temos que pensar no conjunto e esquecer as divergências nesse momento” concluiu.
Fotos: Arquivo pessoal