O comportamento de risco dos adultos que torna ainda mais desafiadora a reabertura de escola

Foto: OEI Argentina
Por Paula Adamo Idoeta da BBC News Brasil em São Paulo.

À medida que redes estaduais, municipais e privadas de todo o país avançam ou recuam nos projetos de reabertura (mesmo que parcial) de escolas, e enquanto o Brasil vive seu momento mais crítico na pandemia até agora, as atenções naturalmente se voltam aos cuidados de higiene, à infraestrutura física escolar e ao distanciamento social praticados por estudantes.

Embora tudo isso seja indiscutivelmente crucial, é importante também ter em mente que o principal agente de contágio nessa cadeia pode não ser a criança, mas sim o adulto — até mesmo adultos que sequer estejam dentro da escola.

Esse alerta, ainda mais válido em um momento de alta das infecções no país, vem tanto de estudiosos quanto da Organização Mundial da Saúde (OMS) — que explicam que, nos focos de covid-19 identificados em escolas pelo mundo (até agora, relativamente poucos), acredita-se que, na maioria dos casos, o vírus tenha sido levado para lá dentro por conta do comportamento de adultos próximos, e não do das crianças.

“Na maior parte do tempo, as crianças são infectadas pelos adultos — em geral um adulto da própria família”, diz à BBC News Brasil o médico francês François Angoulvant, especialista em emergências pediátricas.

Durante toda a pandemia, Angoulvant e 12 colegas têm estudado o comportamento de doenças infecciosas em crianças e adolescentes em Paris, a partir dos dados de 972 mil atendimentos em seis pronto-socorros infantis da capital francesa e arredores, entre 2017 e 2020.

Durante o primeiro lockdown na França, em junho e julho, quando as escolas ficaram fechadas, as visitas e internações em pronto-socorros pediátricos caíram, respectivamente, 68% e 45% em relação a anos anteriores — ou seja, as crianças ficaram muito menos doentes de modo geral, de males como bronquiolite ou gripe, por exemplo.

Quando o lockdown foi aliviado para todos e as escolas reabriram, esses atendimentos pediátricos voltaram a subir, à medida que os franceses relaxaram nas medidas de distanciamento social.

No entanto, no segundo lockdown francês, as escolas se mantiveram abertas com medidas de controle, mas o governo endureceu o isolamento para a população adulta. Daí, mesmo com as aulas presenciais em curso, as infecções infantis voltaram a cair em Paris.

As “lições inesperadas” desses resultados, diz Angoulvant, são de que o adulto tem um papel fundamental na transmissão de doenças infecciosas para as crianças, e isso é particularmente importante no caso da covid-19 — uma vez que estudos até agora apontam que crianças de até dez anos adquirem e transmitem o vírus com muito menos frequência do que as mais velhas ou os adultos.

Responsabilidade

As conclusões dos pesquisadores franceses são reforçadas por um levantamento de outubro de 2020 da OMS, compilando estudos e informações globais a respeito da volta às aulas.

Volta às aulas em São Paulo
Estados como São Paulo deram início recentemente à volta às aulas presenciais; outros recuaram, diante do aumento de casos e da saturação dos sistemas de saúde

Destacando que os estudos até agora têm alcance limitado, a OMS afirmou que, nos surtos identificados dentro de escolas, “na maioria dos casos de covid-19 em crianças a infecção foi adquirida dentro de casa”.

“Nos surtos escolares, a probabilidade maior era de que o vírus tivesse sido introduzido por adultos”, prossegue o documento.

“A transmissão funcionário-para-funcionário foi a mais comum; (a transmissão) entre funcionários e estudantes foi menos comum; a mais rara foi de estudante para estudante.”

Em última instância, portanto, manter a segurança sanitária das escolas abertas é obrigação primordial de gestores, mas também responsabilidade coletiva de toda a sociedade, explicam os especialistas.

Aglomerações, deslizes no uso de máscara ou outros comportamentos de risco adotados por adultos que têm contato (mesmo que pequeno ou esporádico) com crianças podem acabar, inadvertidamente, levando o coronavírus para dentro do ambiente escolar.

O risco de ‘baixar a guarda’

François Angoulvant diz que esse risco aumenta quando os adultos, às vezes sem querer, baixam a guarda nas medidas básicas de distanciamento social. É o que ele observa na França.

“Temos esse problema até com profissionais de saúde. Nos focos ocorridos entre eles, na maioria das vezes (o coronavírus) não veio dos pacientes, mas (da interação entre) os próprios profissionais – por exemplo, quando almoçam juntas ou tomam café, lado a lado, oito pessoas na mesma sala”, explica.

“Quando estão interagindo com os pacientes, eles (profissionais de saúde) colocam máscaras e tomam todos os cuidados. Mas entre si, eles relaxam. Isso vale para qualquer profissão, quando se adotam comportamentos de risco”, prossegue o médico.

“Quando a variante britânica do coronavírus (considerada mais infecciosa) chegou à França, uma das infectadas era uma francesa que morava no Reino Unido e estava de férias em Marselha. Em uma semana, essa mulher havia feito contato com outras 42 pessoas. Quarenta e duas pessoas! São mais (contatos interpessoais) do que eu faço em três meses. As pessoas precisam ser responsáveis.”

De modo geral, os dados internacionais têm mostrado que o nível de contaminação entre crianças acompanha o dos adultos – ou seja, sobe ou desce, embora em menor quantidade, à medida que a quantidade de infecções sobe ou desce entre adultos.

“Elas (crianças) parecem mais seguir a situação do que impulsioná-la”, disse à revista Nature o epidemiologista Walter Haas, do Instituto Robert Koch, em Berlim.

Desse modo, os estudos apontam que um ambiente escolar com condições sanitárias adequadas, boa ventilação, restrições ao número de pessoas e medidas de distanciamento social não ofereceria um risco excessivo para professores e demais profissionais.

“Todos estamos em risco, mas acho que se você trabalha em um supermercado corre mais risco do que se trabalha em uma escola”, defende o francês Angoulvant.

No entanto, muitos estudos só recomendam a volta às aulas presenciais quando a transmissão comunitária está sob controle na comunidade – o que não é o caso do Brasil no momento, que bateu na quinta-feira a marca de mais de 1,5 mil mortes por covid-19 em 24h. Diante de UTIs lotadas, alguns Estados e municípios decidiram adiar a reabertura de suas escolas.

Além disso, muitos educadores brasileiros rejeitam comparações com outros países, afirmando que esses paralelos não levam em conta as desigualdades sociais daqui ou deficiências do poder público em sua obrigação de garantir as medidas sanitárias básicas nas escolas.

Aulas em escola francesa, em foto de dezembro
Na França, infecções em geral caíram entre crianças enquanto o país esteve em lockdown, mesmo quando as escolas permaneceram abertas

O que traz preocupações adicionais, principalmente no momento em que os níveis de contágio continuam alto pelo país, com números exorbitantes de infecções e mortesAqui no Brasil, de modo geral, não é fácil – nem historicamente nem agora, no caso da covid-19 – averiguar a direção do contágio entre crianças, explica à BBC News Brasil o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP.

“No caso da covid-19, ainda é uma doença muito recente para termos muitas informações, e a volta às aulas tem sido muito heterogênea (entre os diferentes Estados e municípios)”, diz.

“Mas a gente sabe há muito tempo que a volta às aulas do verão, mais do que a do inverno, costuma ocorrer depois de as crianças terem feito viagens – e isso pode trazer consigo um mix de vírus e bactérias.”

No entanto, é indiscutível, diz Lotufo, que as ações dos adultos podem ter efeitos colaterais dentro das escolas. “A responsabilidade do adulto sempre foi crucial (nesta pandemia). Aquele tio que aparece para jantar pode contaminar o sobrinho, que contamina cinco amigos na escola e que levam o vírus para os pais”, diz.

E esse ciclo pode eventualmente tornar a sala de aula um foco do novo coronavírus, principalmente se não for adotado um protocolo rígido pelas escolas e respeitado pelos pais, alunos e equipes.

Isso tem sido cobrado do poder público por entidades representantes de educadores.

“Nós continuamos bastante preocupados com a situação da pandemia em nosso país. Não observamos alteração da condição política nem segurança sanitária para fazer um retorno às aulas presenciais”, disse o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Heleno Manoel Gomes Araújo Filho, em entrevista recente à Agência Brasil.

Do lado dos pais, apenas uma minoria (19%) disse confiar “muito” na capacidade de escolas públicas brasileiras se adequarem aos protocolos de segurança sanitária na reabertura, segundo pesquisa do Datafolha feita com 1.015 pais e responsáveis entre novembro e dezembro, sob encomenda de fundações educacionais.

Ao mesmo tempo, ao menos 65% deles temiam os efeitos das escolas fechadas no desenvolvimento de seus filhos, após quase um ano sem aulas presenciais.

No âmbito das escolas particulares, sindicatos de professores acusam alguns estabelecimentos de ensino de estarem autorizando mais alunos nas aulas presenciais do que o permitido pelas autoridades de saúde.

O impacto das novas variantes do coronavírus

Todo esse cenário pode ser agravado pelas novas variantes do coronavírus em circulação no Brasil e no mundo.

Um ponto importante, diz François Angoulvant, é que dados vindos do Reino Unido – onde as escolas foram temporariamente fechadas na tentativa de conter o avanço da variante britânica – parecem indicar que as crianças continuam sendo transmissoras menos eficientes do que os adultos.

“Crianças com a variante britânica são mais contagiosas, mas muito menos do que adultos”, diz o especialista francês. “No Reino Unido, o número de crianças infectadas aumentou, apesar de a escola estar fechada. O que, de novo, mostra que as crianças a maior parte do tempo são infectadas por adultos.”

No entanto, à medida que mais adultos são vacinados contra o novo coronavírus no mundo, uma preocupação crescente é de que novas variantes se desenvolvam justamente entre crianças – um público que por enquanto não tem previsão de ser vacinado, uma vez que não há testes concluídos sobre a segurança e a eficácia da vacina nele.

É o que tem acontecido em Israel, onde a maioria da população adulta já foi vacinada contra a covid-19.

“As crianças representam uma proporção maior das infecções do que no início da pandemia, possivelmente por causa das novas variantes e pelo fato de que uma proporção significativa dos adultos já foi vacinada”, aponta reportagem de 18 de fevereiro do jornal Times of Israel.

Três dias depois, o Ministério da Educação israelense anunciou que estava colocando 27,6 mil crianças do país em quarentena.

“Isso (contaminação entre jovens) é algo que não tínhamos visto nas ondas prévias do coronavírus”, afirmou o ministro da Saúde, Yuli Edelstein, ao Jerusalem Post.

Síndrome inflamatória multissistêmica

E, se a contaminação cresce na população infantil, um possível desdobramento preocupante é que haja mais casos de síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), uma rara, mas perigosa doença que acomete uma pequena parcela das crianças e adolescentes que entram em contato com o Sars-CoV-2.

Em geral, essas crianças adoecidas passam sem dificuldades pela covid-19 (muitas vezes, assintomáticas ou apenas com sintomas leves), mas algumas semanas depois da infecção desenvolvem sintomas mais graves, como febre persistente (ao menos três dias), mal-estar e, em parte dos casos, problemas gastrointestinais (como diarreia, vômito e dores abdominais), manchas e coceiras no corpo e conjuntivite.

No caso desses sintomas, é preciso procurar urgentemente o atendimento médico, uma vez que a síndrome pode atacar múltiplos órgãos simultaneamente – causando problemas cardíacos, renais, respiratórios, gástricos, entre outros, informam os CDCs, centros americanos de controle de doenças.

Nos EUA, os CDCs identificaram, até 8 de fevereiro, 2.060 casos de SIM-P, com 30 mortes. No Brasil, o Boletim Epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde, de outubro de 2020, identificou 319 casos entre crianças de adolescentes de 0 a 19 anos, com 23 mortes.

O mais importante no caso da SIM-P é buscar atendimento rápido no caso de sintomas persistentes, afirma François Angoulvant, que também é coautor de um estudo recém-publicado no periódico JAMA sobre o tratamento da doença.

Segundo o estudo, um tratamento ágil, incluindo corticosteroides, consegue prevenir o agravamento dos quadros.

“Se identificamos mais cedo, tratamos mais cedo, diminui-se muito a necessidade de UTI e a melhora é mais rápida”, diz Angoulvant. Ele ressalta, porém, que por enquanto a SIM-P continua sendo rara: atinge em torno de uma criança a cada 10 mil.

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