Por Rodrigo Martins.
Último país a abolir o trabalho cativo nas Américas, em 1888, o Brasil tornou-se referência mundial no combate às formas contemporâneas de escravidão nas últimas duas décadas. Desde a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, em 1995, foram resgatados mais de 50 mil brasileiros em condições degradantes de trabalho ou submetidos a um regime de servidão por dívidas, triste resquício do predatório modelo de exploração da mão de obra dos tempos da Colônia e do Império. Os recentes avanços no enfrentamento ao problema estão, porém, ameaçados.
Por insuficiência de recursos humanos e financeiros, as fiscalizações de denúncias contra práticas escravagistas estão em franco declínio desde 2013, quando 313 locais foram inspecionados e 2.808 trabalhadores foram resgatados. No ano passado, o número de estabelecimentos vistoriados caiu para 191, assim como a soma de resgates, 885.
Diante da obsessão da equipe econômica de Michel Temer de cortar gastos para aplacar a crise fiscal, as inspeções podem ser paralisadas a partir de agosto, alerta o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait). “Há tempos sofremos com a falta de reposição de pessoal e com a progressiva redução de recursos para as atividades de fiscalização do trabalho.
Agora corremos o risco de uma ‘pane seca’, consequência dos dois cortes orçamentários promovidos pelo governo federal neste ano”, alerta Carlos Fernando da Silva Filho, presidente da entidade.
No fim de março, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou um corte de 42,1 bilhões de reais nas despesas federais programadas para 2017. Como a arrecadação federal ficou aquém do esperado no primeiro semestre, o governo voltou a operar a navalha. Ao mesmo tempo que elevou os tributos sobre os combustíveis, prometeu enxugar ainda mais os gastos públicos, sacrificando outros 5,9 bilhões do orçamento.
Em duas décadas, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel resgatou mais de 50 mil trabalhadres. Agora está na penúria. Enquanto isso, Temer despeja 266 milhões de reais em emendas para aliados da CCJ (Foto: Beto Barata/PR)
O contingenciamento atingiu em cheio as equipes de fiscalização do trabalho escravo. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, os grupos móveis, que atuam nacionalmente, sob a supervisão de Brasília, precisam de ao menos 3 milhões de reais por ano para manter as atividades.
No entanto, a dotação orçamentária foi reduzida para 1,6 milhão de reais em 2017. Desse montante, 1,4 milhão foi empenhado. Restariam apenas cerca de 200 mil reais, valor suficiente para apenas mais quatro ou cinco operações.
A penúria também atinge as superintendências regionais do Ministério do Trabalho, que lidam com todo tipo de irregularidade trabalhista, mas também atuam no combate ao trabalho escravo e infantil. No Pará, os 800 mil reais previstos para ações de fiscalização minguaram para 240 mil, lamenta Jomar Lima, chefe da Seção de Inspeção do Trabalho.
Em decorrência disso, 12 operações planejadas no sul e no oeste do estado foram suspensas. Detalhe: o Pará lidera o ranking nacional de casos de trabalho escravo. De 2003 a 2017, foram resgatados 9.853 trabalhadores em 373 operações.
“Dos 31 milhões de reais previstos inicialmente para a Secretaria de Inspeção do Trabalho, somente 10 milhões escaparam do contingenciamento”, afirma Silva Filho, do Sinait. “Para agravar o cenário, quase a totalidade desses recursos está comprometida com o pagamento de prestadores de serviços. O Ministério do Trabalho tem negado que as fiscalizações serão suspensas por insuficiência de recursos, mas não informa o valor realmente disponível até o fim do ano.”
Se falta dinheiro para combater o trabalho escravo, sobra para salvar o pescoço de Temer, denunciado por corrupção passiva pela Procuradoria-Geral da República e rejeitado por 70% dos brasileiros, segundo a última rodada da pesquisa CNI/Ibope, divulgada na quinta-feira 27.
Em meio às articulações da base aliada para garantir a rejeição, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, do relatório que recomendava o prosseguimento da denúncia contra o presidente no Supremo Tribunal Federal, o governo liberou 2,11 bilhões de reais em emendas parlamentares nas três primeiras semanas de julho, quase o valor total aprovado (2,12 bilhões) nos seis primeiros meses do ano, segundo a ONG Contas Abertas.
Fonte: Carta Capital.