O combate à fome requer políticas de Estado. Por José Álvaro Cardoso.

Pintura: “Hambre” Paco Cortijo – 1965

Por José Álvaro Cardoso.

O aumento da fome, ao lado dos quase 500 mil mortos pela pandemia (oficialmente), são os grandes problemas do País, neste momento. Além do recrudescimento da pandemia e do impacto das milhares de mortes diárias pela Covid-19, há uma tempestade perfeita que empurra uma parte da população para o flagelo da fome: inflação alta, explosão do desemprego e ausência de políticas públicas eficazes para o combate aos problemas.

O golpe de 2016 está colocando o Brasil de volta ao século 19. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019 14 milhões de famílias usavam lenha ou carvão para cozinhar, um número cerca de 3 milhões a mais do que em 2016. Ou seja, uma a cada cinco famílias brasileiras cozinhava com carvão ou lenha em 2019. Essa situação certamente piorou muito no último ano e meio. Não há nenhum romantismo ou nostalgia nisso, como querem fazer crer algumas análises: é pobreza mesmo, que obriga a população a ter que optar entre comprar comida ou gás.

Em 2019, já durante o governo mais contra o povo que o Brasil conheceu em toda a história, uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética colocou fim à política do subsídio do gás de cozinha praticada pela Petrobrás. Em meio a um rápido processo de empobrecimento dos trabalhadores, o governo tirou a possibilidade de muitas famílias adquirirem um bem tão essencial, como o gás. As famílias mais pobres tiveram que optar entre comprar alimentos ou gás, por isso muitas tiveram que começar a usar lenha ou carvão, para cozinhar, como vimos.

Os dados de pobreza são muito graves em Santa Catarina. O último relatório feito pelo núcleo de pesquisa econômica da UFSC (Necat/UFSC) mostra que em 2019, 500 mil catarinenses viviam com até R$ 450 por mês e 110 mil estariam em condição de pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 155. Com o coronavírus e o agravamento da crise econômica, a situação piorou muito. Segundo os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio), do IBGE, Santa Catarina tem 228 mil pessoas desocupadas, 101 mil subocupadas e 122 mil pessoas na força de trabalho potencial. Somando esses três indicadores tem-se a medida de subutilização da força de trabalho catarinense, que já totaliza 452 mil pessoas. Cada pessoa desempregada ou subempregada, afeta também as condições de vida (incluindo a alimentação) dos dependentes. Além disso, a queda de consumo dessas famílias que ficaram sem rendimentos, o que necessariamente acontecerá, afetará outros setores, o que irá produzir mais desemprego e miséria.

Segundo o IBGE, o estado possui 134 municípios no mapa da insegurança alimentar e nutricional, no qual há famílias que passam fome. Esse número representa 45% do total dos 295 municípios do estado. Conforme o IBGE, 536,4 mil catarinenses estavam abaixo da linha da pobreza em 2019, 7,5% da população. Para o Banco Mundial, as pessoas abaixo da linha pobreza são aquelas que ganham menos de R$ 436 por mês.

O rendimento médio do trabalhador catarinense, conforme dados do IBGE, encerrou 2020 em R$ 2.726,00. Este rendimento médio significa metade do salário mínimo necessário, de R$ 5.330,69 calculado pelo DIEESE, para uma família de quatro pessoas. Catarinenses abaixo da linha da pobreza extrema, isto é, que ganham menos de R$ 151 mensais eram 107,3 mil em 2019, o que equivale a 1,5% da população. Uma cesta básica para um adulto custou em média, no mês de abril, R$ 634,00.

 Estes dados são especialmente preocupantes porque Santa Catarina é o estado com o menor percentual de pessoas pobres no país. É também o estado com a menor desigualdade. No estado, o índice de Palma – razão entre o rendimento acumulado pelos 10% da população com os maiores rendimentos e pelos 40% com os menores rendimentos – foi de 2,07, menor resultado do país. No Brasil como um todo este índice foi quase o dobro em 2019 (4,2). Pois em Santa Catarina, o estado menos desigual da Federação segundo o IBGE, em 2019, 2/3 dos catarinenses (66,1%) receberam entre meio (R$ 499) e dois salários (R$ 1.996) mínimos por mês. Mais de um terço, 36%, ganham até um salário mínimo. Um detalhe importante: esses são dados de 2019. De lá para cá a classe trabalhadora como um todo ficou ainda mais pobre.

O Brasil sempre teve um problema estrutural de fome, uma espécie de “maldição”, que acomete uma parcela da população brasileira, condenada a viver permanentemente sob o açoite da fome. Uma crueldade da burguesia brasileira, que parece servir também como uma advertência velada aos trabalhadores que ousarem se rebelar contra as injustiças do sistema. O Brasil tinha deixado o chamado Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família, grande crescimento do emprego formal, com um conjunto de políticas integradas, como o Pronaf, que garantia financiamento para os pequenos agricultores, merenda escolar, etc.

O fato de que, em 10 anos (entre 2003 e 2013), o Brasil tenha saído do vergonhoso Mapa, revela como o problema é, de fato, político. Bastou um governo mais preocupado com a situação dos mais pobres, e em dez anos vimos uma redução substancial do problema da fome no país. Ou seja, a fome da população em boa parte é um projeto dos ricos e poderosos. Manter uma parte da população sob o cruel açoite da fome, como medida de controle político da maioria parece ser um projeto dos poderosos. É semelhante ao problema do exército industrial de reserva. Os donos do capital, a burguesia, não gostam de pleno emprego. É preciso manter também uma parte da classe trabalhadora castigada pelo desemprego, para manter o controle político sobre a classe.

Um problema como o da fome não se resolve com doações, por parte da sociedade, por mais louváveis, bem-intencionadas e necessárias que essas sejam. O Brasil do período de Fernando Henrique Cardoso é testemunha disso: liderado por Betinho, a sociedade realizou um grande movimento por doações, e no final do segundo governo FHC, se estimava que houvesse 50 milhões de famintos no país. Aquilo que a sociedade fazia de colherinha, as políticas neoliberais de FHC desfaziam de retroescavadeira. Alimentar os famintos era o mesmo que enxugar gelo. O problema da fome, como qualquer grande problema político e social importante, tem que ser resolvido com políticas integradas de Estado.

O agravamento da fome, é decorrência direta das políticas decorrentes do golpe de 2016, coordenado diretamente pelo Imperialismo. O combate aos direitos dos pobres e dos trabalhadores se dá em todas as frentes. Do golpe para cá são centenas (possivelmente mais de mil), ações destruindo direitos e benefícios dos trabalhadores, sempre conquistados com décadas de sangue, suor e lágrimas. Podem observar com lupa: não há uma ação que contrarie o Capital. 100% das ações dos golpistas, desde 2016, são contra a população.

Além das centenas de medidas contra os trabalhadores em geral foram também destruídas políticas específicas que agravaram a fome: Emenda 95, do teto de gastos, que congelou todos os gastos primários do governo; fim dos programas de transferência de renda; fechamento de equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos.  O mercado consumidor interno foi destruído, com a liquidação de empregos e da renda, o que afeta diretamente o poder aquisitivo da população. De 2016 para cá, segundo os vários indicadores, o processo de empobrecimento da população foi o mais rápido da história, o que impacta diretamente as condições de alimentação da população.

Assim que tomou posse, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) não foi extinto, mas tem orçamento ridículo, de R$ 500 milhões. Mas mesmo assim, esse orçamento ainda insuficiente não foi totalmente executado no ano passado. Bolsonaro excluiu os pequenos agricultores do auxílio emergencial de R$ 600, vetou recursos para compras públicas pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), renegociação e adiamento de dívidas e linhas de crédito emergenciais. Tudo o que era considerado essencial pelos agricultores. A política de segurança alimentar que levou anos para ser concluída no Brasil, os golpistas destruíram em pouquíssimo tempo.

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

 

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