A experiência africana: a situação pós-colonial
O cinema africano é fundamentalmente uma atividade e uma experiência póscolonial.
E em nenhum outro lugar isso é mais evidente do que nas duas áreas geográficas contíguas, mas de colonização variada, abordadas neste artigo. A primeira área compreende os países norte-africanos que formam o Magreb: Tunísia e Marrocos, que se tornaram independentes em 1956; e Argélia, cuja independência só foi obtida depois de uma longa e sangrenta guerra de libertação em 1962. A segunda área compreende os países ao sul do Saara formados por duas colônias gigantes da África ocidental francesa e da África equatorial francesa. Divididas no processo de independência em 12 países que hoje são conhecidos como Benin (antigo Daomé), Costa do Marfim, Guiné, Senegal, Mali, Mauritânia, Níger, Burkina Fasso (antigo Alto Volta), Chade, República Centro-Africana, Gabão e Congo. A essa lista podemos acrescentar os dois países africanos ocidentais, ex-colônias alemãs que se tornaram protetorados franceses após a Primeira Guerra Mundial: Togo e Camarões. A independência foi concedida a esses dois países em 1960, juntamente com os outros Estados africanos ocidentais com exceção da Guiné Equatorial, que havia proclamado independência em 1958. Juntas, as duas áreas contíguas ao norte e ao sul do Saara compõem um território de quase 11 milhões de quilômetros quadrados (aproximadamente 16,5 por cento maior que os Estados Unidos). Cerca de um terço dessa área (3,2 milhões de quilômetros quadrados) localiza-se no Magreb e pouco mais de dois terços (7,7 milhões de quilômetros quadrados) encontram-se no sul. O território estende-se do Mediterrâneo às margens do Congo e da costa atlântica do Senegal à fronteira do Sudão. Essa imensa área abriga cerca de 175 milhões de pessoas – 65 milhões no Magreb e 110 milhões ao sul.
Um bom ponto de partida para entender a situação contemporânea desta área é considerar a natureza da independência obtida no período surpreendentemente curto entre 1958 e 1962. Nas palavras de Roland Oliver, a maioria das nações africanas modernas herdou uma estrutura colonial:
Foram mantidas todas as fronteiras coloniais, traçadas conforme acordos nos anos1880 e 1890. Suas capitais permaneceram as mesmas capitais coloniais de onde partiam as infra-estruturas coloniais de estradas e ferrovias, postes e telecomunicações.Todas mantinham, em algum grau, as línguas dos colonizadores como línguas para comunicação mais abrangente. (OLIVER, 1999)
Independência da Argelia
Como resultado, o autor acrescenta, “para 97 por cento da população, a independência em si fez pouca diferença na prática” (OLIVER, 1999). Em 1980, Richard W. Hull apresentou visões similares, argumentando que “o comportamento e o status dos ex-colonizadores foram incorporados pelas elites africanas”, enquanto “a estratificação social aumentou em quase todas as nações africanas desde a independência” (HULL, 1980). Hull também afirma que, independentemente de suas ações, “a maioria dos nacionalistas estava sinceramente interessada em construir um Estado-nação moderno” (idem). Como resultado, apesar do começo um pouco duvidoso, cada novo Estado africano independente tornou-se integralmente uma “nação” nos termos definidos por Benedict Anderson, ou seja, “uma comunidade política imaginada”. É “imaginada” porque, “mesmo na menor das nações, seus membros nunca conhecerão a maioria dos outros membros nem sequer ouvirão falar deles”. É “política” no sentido de ser ao mesmo tempo limitada (todas as nações têm fronteiras) e soberana dentro desses limites. E é “comunidade” porque, quaisquer que sejam as divisões sociais reais, “a nação é concebida sobre a base de um companheirismo profundo e horizontal”.
A segunda idéia, argumenta Anderson, molda um dos aspectos mais surpreendentes de um Estado nacional – é tornar possível que “milhões de pessoas disponham-se a morrer, ainda mais que a matar, por essa imaginação limitada” (ANDERSON apud HALL, 2003). Seria muito simplista atribuir os problemas atuais enfrentados por tantos Estados africanos a fatores externos, como o domínio pós-colonial. A observação de Cruise O’Brien e Rathbone sobre os países africanos ocidentais aplica-se também aos países do Magreb: “Esses Estados […] atingiram a maturidade. Todos eles têm uma geração adulta que cresceu livre da sombra da tricolore ou da Union Jack” (O’BRIEN, 1989). Não obstante, a herança da era colonial é crucial.
Embora as ex-colônias africanas recém-emancipadas tenham certamente se transformado em Estados-nação, no sentido convencional empregado pelo ocidente, a forma particular de Estado que elas herdaram – a estrutura do Estado colonial – falhou profundamente. O Estado colonial é necessariamente caracterizado pelo “centralismo autocrático”, pois nele todo o real poder sobre os programas políticos e decisões concentrava-se na cúpula executiva, representado por um governador nomeado em Londres ou em Paris. Por isso, como observa Basil Davidson, o fenômeno do nacionalismo torna-se muito mais complexo do que parecia à primeira vista, sendo “o fruto ambíguo de uma oposição ou um contraponto entre os temas do passado africano e aqueles das culturas das nações imperialistas que colonizaram o continente” (DAVIDSON, 1994). Davidson expõe o atual dilema com admirável clareza: o Estado-nação africano está comprometido, como na Europa, “com uma história de conflitos, rivalidades e destruição mútua internacionais?” Ou contém as sementes de “um desenvolvimento rumo a sistemas regionais e até subcontinentais de uma união orgânica e, portanto, rumo a novos modos de emancipação cultural?” (idem). Tais ambigüidades não foram previstas no momento da independência, e o celebrado ensaio de Frantz Fanon, On national culture: reciprocal bases of national culture and the fight for freedom (1967), pôde servir, ao mesmo tempo, como uma inspiração para os primeiros cineastas africanos e um meio pelo qual críticos pudessem avaliar seus trabalhos (ARMES, 1987).
Nos anos 1950, os líderes dos países africanos recém-emancipados viam-se como inimigos do colonialismo e suas tiranias e, como observa Roland Oliver, como a maioria dos africanos instruídos, “praticamente todos eram de esquerda, segundo uma concepção européia ou americana”. A maioria buscava, e muitos acreditaram ter encontrado, “uma espécie de socialismo local inerente à tradição africana”. A ferramenta política usada como instrumento do “socialismo africano” foi o “partido”, “mas não visto apenas como o que concorre ao poder em eleições sucessivas, apresentando suas conquistas e programas para conquistar aprovação pública, mas visto representando o ânimo e o propósito da nação inteira, estabelecido e insubstituível” (OLIVER, 1999).
O modelo desse partido não seguia, contudo, o sistema democrático ocidental cujos auspícios as novas constituições nacionais haviam sido elaboradas, e sim “a tradição marxista-leninista da Europa oriental” (idem). O resultado foi o típico Estado africano monopartidário onde, conforme observa Richard W. Hull: Os quadros executivos, administrativos e legislativos são entrelaçados. Os Estados monopartidários tendem a ser monolíticos e a absorver os movimentos juvenis, sindicatos e cooperativas. A oposição é permitida, mas só no contexto dos órgãos partidários e na estrutura geral do ethos nacional, como definido pelo partido (HULL, 1980).
Como na Europa oriental, essa forma de governo autocrático não favoreceu o crescimento econômico nem o desenvolvimento, e a insatisfação social resultante é, ao menos parcialmente, responsável pelos sucessivos golpes militares que se tornaram uma característica dos regimes políticos africanos. Quando o islamismo é a religião dominante, a situação pode ser ainda mais extrema, já que a separação entre Igreja e Estado no ocidente cristão não se repete no Islã. Não existe Estado muçulmano na África ou no mundo árabe que adote algo mais que um esboço de democracia. Por isso, os cineastas – como todos os demais africanos envolvidos com a cultura – precisam encontrar meios de operar, o que equivale a dizer obter liberdade, sob sistemas políticos onde a autocracia é a norma.
Influência francesa
É consensual que a tradicional organização social e desenvolvimento da África resultaram em “grupos de pequenos Estados com língua e cultura comuns” (OLIVER, 1999), alguns dos quais foram mais tarde incorporados a Estados maiores. Desse padrão originou-se a enorme diversidade lingüística, étnica e cultural da África contemporânea que, por sua vez, torna perigosa qualquer generalização sobre a África (ou o cinema africano, no caso). Como observou um relatório de 1993, da Unesco, “quando a etnicidade e a consciência de classe se aproximaram de um confronto e competição, a etnicidade quase invariavelmente triunfou na África”. Práticas religiosas específicas estavam associadas a esses grupos étnicos, pois, “como em todos os lugares do mundo, a arte de governar na África envolvia-se profundamente com religião e magia” (READER, 1998). Embora os primeiros cineastas pós-independência – muitas vezes sob forte influência do pensamento marxista – tenham sido, em geral, hostis à religião (vista como mera superstição), práticas e crenças religiosas africanas tradicionais encontram expressão em um número crescente de filmes bastante notáveis a partir de meados dos anos 1980.
Sobrepunha-se ao padrão tradicional de organização social e religião a reorganização da África em cerca de 40 grandes colônias onde um sistema educacional que favorecia o ensino europeizado era oferecido a um pequeno grupo dos mais talentosos. O sistema francês, na África ocidental como nos outros lugares, formava “africanos instruídos, conhecidos como assimilés, aqueles que poderiam ser “assimilados” pela cultura e administração superiores que a França havia trazido à África” (READER, 1998). Nos anos 1940, esses assimilés já haviam adquirido o direito de votar nas eleições francesas e foi de suas fileiras que surgiram os primeiros líderes dos Estados independentes do fim dos anos 1950 e início dos 60. Como observa Hull, tal sistema significava que “os líderes dos governos recém-emancipados da África francófona tendiam a ter laços emocionais mais profundos com as antigas potências coloniais do que seus colegas anglófonos”.(HULL, 1980).
As políticas culturais francesas – incluindo as dirigidas ao cinema – podem ser vistas, em parte, como resultado desse vínculo emocional. Mas isso não pode mascarar a razão subjacente do contínuo envolvimento da França com suas ex-colônias: interesse próprio. Como Donal B. Cruise observa acertadamente, “a verdadeira justificativa para o investimento da França na África pós-imperial, um investimento muito mais substancial que o oferecido pela Grã-Bretanha a suas antigas colônias africanas, é a manutenção do prestígio nacional francês” (O’BRIEN, 2003).
Nas colônias – tanto para as elites africanas emergentes quanto para os brancos –, as línguas européias tornaram-se as línguas da política, da administração e do comércio, e a prioridade era a comunicação com capitais na Europa, e não com as colônias vizinhas. A questão do idioma é crucial em qualquer situação colonial ou pós-colonial. Como observa Albert Memmi, a maioria dos colonizados “nunca terá nada além de sua língua nativa; ou seja, uma língua que não é escrita nem lida, permitindo apenas um desenvolvimento oral incerto” (MEMMI, 1974). Mas nem mesmo a criança quando tem “a maravilhosa sorte de ser aceita em uma escola será salva” (MEMMI, 1974). O domínio de duas línguas cria, para muitos, uma dolorosa dualidade, pois “a língua materna do colonizado, aquela que expressa seus sentimentos, emoções, sonhos, ternura e espanto, aquela que detém o maior impacto emocional, é justamente a menos valorizada” (MEMMI, 1974).
Para os escritores que usam a língua do colonizador em suas obras, esta dualidade pode impor tensões reais (o que, em termos criativos, pode ser positivo ou simplesmente negativo). Mas a tecnologia do cinema oferece uma solução bem diferente. O diálogo em língua local no cinema pode ser acompanhado facilmente até mesmo por um público africano analfabeto (ainda que limitado), enquanto as legendas podem, ao mesmo tempo, tornar o filme acessível para um público ocidental (com a língua local conferindo aquele toque de alteridade tão apreciado no circuito de cinemas de arte). Este é um motivo pelo qual a maioria dos filmes ao norte e ao sul do Saara utiliza variantes locais do árabe e línguas regionais ou nacionais, mesmo que o roteiro e os diálogos sejam escritos originalmente em francês – a fim de obter o indispensável financiamento externo ou de co-produção.
No entanto, embora as línguas européias tenham sido impostas na África, não houve transferência semelhante de tecnologia ocidental. Jamais podemos esquecer que a tecnologia cinematográfica introduzida depois da independência era emprestada e que o prestígio do ocidente conferido por ela não poderia deixar de impressionar os emergentes cineastas africanos.
As contradições básicas da situação pós-colonial – independência política em uma estrutura social colonial, uma cultura administrativa bilíngüe, a coexistência entre os adornos de um Estado moderno (uma cadeira nas Nações Unidas, bandeira e hino nacionais, companhia aérea nacional etc.) e uma vida que, para a maioria da população, não mudava desde o século XIX, no mínimo – formam o contexto de qualquer aspecto da cultura pós-colonial, incluindo o cinema. Como parte da pequena mas crescente elite de cidadãos relativamente instruídos e com boa mobilidade social, os cineastas africanos que analisamos aqui estão totalmente envolvidos – em sua vida e sua obra – com as ambigüidades desse processo.De fato, com sua cultura bilíngüe, seus títulos universitários (freqüentemente de pós-graduação ou doutorado) e sua formação técnica no exterior, eles estão entre os membros mais brilhantes dessa elite.
As duas áreas ao norte e ao sul do Saara foram colonizadas de maneiras bastante diferentes. A África ocidental francesa e a África equatorial francesa eram agrupamentos territoriais administrados como colônias; Togo e Camarões eram áreas administradas pela Liga das Nações, a Tunísia e Marrocos eram protetorados franceses (o último incluindo Tânger como uma zona internacional), enquanto a Argélia, depois de 1881, foi tecnicamente parte da França metropolitana (com três départements que elegiam representantes para o Parlamento francês). É reflexo dessa situação colonial o fato de os cineastas magrebinos e subsaarianos serem citados freqüentemente como representantes de um cinema africano francófono (em oposição a um cinema anglófono ou lusófono). Em seus filmes, contudo, eles usam quase exclusivamente línguas locais ou nacionais: more para Gaston Kabore e Idrissa Ouadraogo, do Burkina Fasso, bambara para Cheick Oumar Sissoko, do Mali, árabe coloquial para os cineastas magrebinos e até mesmo rifenho (a língua berbere) para os filmes feitos nas montanhas do Alto Atlas por diretores argelinos em meados dos anos 1990, quando o uso dessa língua finalmente foi legalizado na Argélia. Mesmo depois da independência, a influência francesa continuou forte nas áreas ao norte e ao sul do Saara. E, como observa Denise Brahimi, o termo francófono é útil para designar países onde o francês continua a ser usado como língua escrita e cultural e uma extensa literatura em francês – poesia, romance e peças teatrais – continua a prosperar. A definição de Brahimi é a que será usada aqui: “Concretamente, os chamados países francófonos são aqueles cuja orientação cultural, envolvendo vários tipos de intercâmbio, é muito mais voltada à França que aos países anglófonos” (BRAHIMI, 1997).
As razões da persistência do francês na literatura são complexas. Jacqueline Kaye observa, na introdução de uma recente coletânea do norte da África traduzida do francês e do árabe, que o bilingüismo ou o multilingüismo podem ser um terreno fértil para a criatividade de um escritor: “os escritores nesses países estão imersos em um constante fluxo lingüístico […] criando uma consciência diária da historicidade da língua” (KAYE, 1992). Como Kaye também observa, escritores berberes educados em francês, como Driss Chraïbi, do Marrocos e Mouloud Feraoun, da Argélia, “podem ter tido outras razões, além daquelas puramente pragmáticas, para preferir o francês ao árabe”, já que o francês foi “a primeira língua ‘escolhida’ por quem desejava se dissociar das classes dominantes póscoloniais” (KAYE, 1992). O uso da língua sempre acarreta implicações complexas. Como observou Cruise O’Brien, um indivíduo senegalês, “ao optar falar wolof a maior parte do tempo, principalmente na cidade, a longo prazo torna-se uma escolha étnica e até mesmo nacional”, mas isso bem pode ser uma estratégia para evitar o confronto, “esquivando-se em uma terra de ninguém em termos de identidade”, em um Estado dominado por pessoas que falam wolof (O’BRIEN, 2003). Em outros lugares, como, por exemplo, nos Camarões, a multiplicidade das línguas locais tornou o uso do francês inevitável para os romancistas.
Enquanto os cineastas camaroneses foram impelidos, de modo similar, a usar diálogos em francês em suas obras, o uso de línguas locais ou nacionais pela maioria dos cineastas africanos acabou por tornar-se uma conciliação ambígua (KAYE, 1990).
Islão
Além da herança comum da colonização francesa, outro fator unificador é a influência compartilhada do Islão. Roland Oliver afirma que, observada do tradicional ponto de vista da história européia e do Oriente Médio, a parte da África ao norte do Saara central não é realmente africana. O Egito e o Magreb, conquistados nos séculos VII e VIII e totalmente islamizados no século X, quase pertencem ao coração do território islâmico. Eles são o oeste muçulmano (“oeste” é o significado do termo árabe Mahrib ou Magreb). No entanto, sob o ponto de vista do sul islâmico, de países onde “o Islão se estabeleceu há seis, sete ou oito séculos, e onde a principal direção do comércio, das viagens, da migração forçada e da influência cultural tem sido o norte, através do deserto”, a perspectiva é bem diferente: “É o fator islâmico, em toda sua profundidade histórica, que transforma os países norte-africanos em uma parte indissociável da África, sejam quais forem as outras afiliações a eles atribuídas”. O antropólogo Jacques Maquet também argumenta que a divisão da África em duas áreas culturais, uma ao norte e outra ao sul do Saara, é arbitrária:
“O grande deserto, embora em alguns aspectos fosse uma barreira, também foi uma rota de comunicação, como mostra o mapa das trilhas de caravanas ligando a costa mediterrânea ao Níger e ao Chade” (MAQUET, 1972). De modo similar, “o Islã, uma religião com escrituras, não se limita ao norte da África, estendendo-se amplamente pelo sul do Saara, de costa a costa” (MAQUET, 1972). David Robinson observa que 50% de todos os africanos são muçulmanos (representando um quarto do total mundial), e vê dois processos em curso ao longo dos últimos 1.400 anos: a islamização da África e a africanização do Islã (ROBINSON, 2004). Um dos principais caminhos pelos quais o Islã espalhou-se pela África subsaariana foi a costa leste africana – que Robinson chama de “passagem suaíli”. O outro caminho foi por meio das várias rotas comerciais que cruzavam o deserto do Saara, controladas principalmente por membros de tribos berberes que atuavam como comerciantes e guias de caravanas de camelos. Alguns desses berberes eram bem-vindos por governantes não-muçulmanos “para reforçar a riqueza e o poder de seus domínios” (ROBINSON, 2004). Outros, como os almorávidas, adotaram uma postura mais militante e impuseram o Islã por meio da conquista militar (como haviam feito os antigos seguidores beduínos de Maomé). No entanto, ao espalhar-se pelo sul do Saara, o Islã foi apropriado ou articulado em uma diversidade de sociedades que “criaram espaço ‘muçulmano’ ou se apoderaram do Islã” (ROBINSON, 2004). Como David Robinson também destaca, “muçulmanos em diversas partes da África estavam ansiosos para expressar sua fé em termos concretos, o que os acadêmicos chamam com freqüência de cultura visual” (ROBINSON, 2004). Os cineastas de hoje, frutos da educação francesa e da herança islâmica, oferecem uma cultura visual africana ambígua, mas totalmente contemporânea.
Todos os Estados analisados aqui têm maiorias ou minorias muçulmanas significativas e, como observa Richard W. Hull, “o período de independência é caracterizado pelo crescimento cada vez mais rápido do Islã. Estima-se que, para cada conversão ao cristianismo, há nove conversões ao Islã” (HULL, 1980). Cruise O’Brien deixa ainda mais claro que a interação entre o Islã contemporâneo e as estruturas herdadas do domínio colonial francês tem sido extremamente complexas.
Enquanto desenvolvia suas próprias formas institucionais, o Islã “ajudou a dar substância a instituições importadas do ocidente nas instituições do Estado colonial e pós-colonial” (O’BRIEN, 2003). Por isso, devemos ver o resultado “menos como um choque de civilizações, contrapondo o Islã ao ocidente e ao resto, e mais como uma negociação de civilizações, com o Islã tratando de resgatar o legado institucional ocidental na África” (O’BRIEN, 2003).
Também é preciso fazer uma distinção entre aqueles muçulmanos africanos que, embora aceitem o árabe como a língua sagrada do Alcorão, continuam a usar no dia-a-dia uma das numerosas línguas nativas da África subsaariana e aqueles que se arabizaram – como a maior parte da população do Maghreb.
Mas a divisão entre a língua da família e a língua da comunicação externa típica do sul do Saara encontra um paralelo na situação lingüística dos países de língua árabe do Maghreb. Na verdade, a questão é ainda mais complexa, pois o termo “árabe” é usado para descrever três formas diferentes da mesma língua: “o árabe clássico, que é a língua do Alcorão, o livro sagrado do Islã; o árabe coloquial, ou falado, usado no dia-a-dia dos moradores dos países árabes; e o árabe padrão moderno, às vezes chamado também de árabe literário moderno” (AWDE, 1986).
O Alcorão, escrito por volta de 650 d.C., foi o fator unificador fundamental do mundo islâmico. O árabe padrão moderno também serve para unir os árabes, por ser a forma usada pela maioria dos jornais, revistas e livros. Ele também é, em sua versão falada, a língua do rádio e da televisão em todo o mundo árabe, com o resultado de que “todo árabe alfabetizado lê o árabe padrão moderno” e “quase todo árabe, mesmo que não alfabetizado, entende em algum grau a versão falada do árabe padrão moderno” (AWDE, 1986). Mas o árabe coloquial falado, inevitavelmente usado em filmes que retratam a vida cotidiana dos cidadãos comuns, é muito diferente em cada país árabe. Isso cria dificuldades consideráveis de comunicação e intercâmbio entre árabes, particularmente para o Maghreb, “onde a influência das línguas berberes e do francês tornou o coloquial contemporâneo quase incompreensível para os árabes orientais” (SHAFIK, 1998). Como resultado, pouquíssimos filmes do Maghreb têm distribuição ampla no mundo árabe. As dificuldades lingüísticas, assim como políticas, enfrentadas pela Organização da Unidade Africana, fundada em 1963, também atingem a Fédération Panafricaine des Cinéastes (Fepaci), criada em 1970 e alinhada à primeira.
A importância do Islã na literatura africana é explorada em The Marabout and the muse, em que o editor, Kenneth W. Harrow, trata de uma ampla série de questões: os acontecimentos em áreas geográficas importantes, como a Nigéria e o Maghreb, os romances internacionalmente conhecidos de autores como o somali Nuruddin Farah, o marroquino Driss Chraïbi e a argelina Assia Djebar, e as obras de uma multidão de escritores menos conhecidos que criam (de várias formas) em línguas africanas.
Ousmane Sembène
Como Harrow observa, o volume das obras demonstra a “herança pluralista do Islã” de tal modo que “vemos surgir uma visão do Islã que contrapõe o pluralismo e o monoculturalismo e situa esses pólos opostos no coração do próprio Islã” (HARROW, 1996). Atitudes muito distintas em relação ao Islã – e, na verdade, ao cristianismo e às crenças tradicionais – estão presentes nos filmes africanos pós-independência. Os primeiros cineastas subsaarianos, liderados pelo marxista Ousmane Sembène, eram em geral hostis ao que viam como abusos tirânicos do Islã, enquanto no norte, como observou o diretor tunisiano Mahmoud Ben Mahmoud, “praticamente nenhum intelectual rico tem raízes na cultura muçulmana” (AMARGER, 2002). No entanto, graças à preocupação dos cineastas com as realidades da vida cotidiana na cultura muçulmana, o Islã tem estado presente constantemente nos filmes ao norte e ao sul do Saara.
Fonte: http://www.buala.org