O cerne do problema fiscal do Brasil são os juros da dívida pública. Por José Álvaro Cardoso.

Ao contrário do que se poderia esperar em condições normais, parte dos jornalistas econômicos criticaram o governo pelos dados do PIB de 2024.

Por José Álvaro Cardoso.

O governo Lula está sendo tão pressionado, que até um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) é criticado pela mídia comercial e pelos economistas que representam a posição do grande capital no país. Na semana passada foram divulgados os dados do PIB de 2024, um crescimento razoável de 3,4%, acima até do crescimento mundial no ano passado. Esse desempenho superou todas as expectativas do mercado e representou a maior expansão desde a recuperação pós-pandemia. Desempenho impulsionado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por investimentos e pelo consumo das famílias, este favorecido por políticas governamentais que aumentaram a renda disponível.

Ao contrário do que se poderia esperar em condições normais, parte dos jornalistas econômicos criticaram o governo pelo resultado. Alguns “analistas” expressaram preocupações sobre o desempenho do PIB, atribuindo-o a estímulos governamentais “excessivos” que poderiam no futuro levar a desequilíbrios econômicos. Inclusive com o risco de a dívida pública atingir níveis insustentáveis, afetando negativamente a inflação, as taxas de juros e o crescimento econômico. A solução para esses economistas seriam ações fiscais mais rigorosas, o que, traduzido em bom português, significa corte de gastos públicos e sociais, aqueles gastos destinados a atender a população mais pobre.

Esses analistas acusam o governo de – ao manter gastos sociais de caráter “populista” (Bolsa Família, BPC, Previdência Social) – provocar uma crise de confiança no chamado mercado (que, obviamente, é muito delicado). Fator que teria, inclusive, levado a uma baixa taxa de investimentos (taxa de Formação Bruta de Capital Fixo – FBCF) em 2024. A taxa de FBCF é um indicador que reflete os investimentos realizados em ativos fixos, como máquinas, equipamentos e infraestrutura, sendo fundamental para o crescimento econômico de um país. Essa constatação é ridícula, porque a taxa de investimentos no Brasil é baixa já há muito tempo, justamente porque (entre outros motivos) os juros são muito altos. São poucos os que arriscam em investimentos produtivos, com uma taxa de mais de 8% obtida na especulação “limpinha”, ou seja, já descontada a inflação. No ano passado, inclusive, a taxa de investimentos cresceu um pouco em relação ao ano anterior, chegando a 17,0% do PIB, contra 16,4% do ano anterior.

O Brasil tem a maior taxa de juros do mundo, 8,16% real (ou seja, descontada a inflação) e isso não tem nada a ver com crise de confiança. Aliás, um dado que chama a atenção é que o ranking dos 10 países com as maiores taxas reais de juros, é formado exclusivamente por subdesenvolvidos, como pode-se observar: Brasil (8,16); México (5,39); Chile (4,66); Hong Kong (3,12); Colômbia (2,39); Filipinas (2,21); Indonésia (2,09); África do Sul (1,73); Índia (1,13); Israel (0,74). Esse dado, por si só, revela que a taxa de juros funciona também como um mecanismo de dominação e extração de riqueza, dos países subdesenvolvidos, pelos países ricos. Nos EUA a taxa de juros real estimada (subtraindo a inflação de 2% da taxa nominal média de 4,375%) é de aproximadamente 2,37% ao ano. Na União Europeia, subtraindo a inflação projetada de 2,3% da taxa de juros nominal de 2,5%, a taxa de juros está em aproximadamente 0,2%.

Para os “analistas” ligados aos bancos, a maior taxa de juros do planeta, definida por um banco central chamado “independente”, seria culpa do governo e não do Banco Central. A mídia brasileira, que provavelmente é a mais farsante do mundo, na área da economia extrapola todos os limites.  Ela aponta que o déficit nominal do Brasil, mais que dobrou, para 9,5%, desde que Lula assumiu. O déficit nominal é a diferença negativa entre as receitas totais e as despesas totais de um governo, incluindo os gastos com juros nominais sobre as dívidas interna e externa, em um determinado período. Porém toda a construção analítica que fazem é de que o déficit nominal seria culpa dos gastos sociais: bolsa família, previdência, saúde e educação. Os juros altos e a dívida, seriam uma consequência do “descontrole fiscal” e não sua causa. Como o governo, nessa interpretação, gasta demais com “medidas populistas”, o Banco Central é forçado a manter juros nas alturas e cresce a dívida pública em relação ao PIB (hoje em 78,6%).

 Ou seja, por mais que Fernando Haddad tente agradar o mercado, nessa área não tem saída para o governo. Se a economia cresce a imprensa crítica, porque pode levar ao aumento da inflação, em função do crescimento do consumo. Se não cresce, e aumenta o desemprego, a crítica é devastadora. Se os juros estão altos é por culpa do governo que não controla gastos, se a inflação sobe, é culpa também do governo, cuja política causaria insegurança no mercado. Pressionado, o governo Lula, que era crítico dos juros escorchantes do Banco Central, a partir de uma determinada altura, parou de criticar.

De acordo com informações do Banco Central, cada aumento de 1 ponto percentual na taxa Selic resulta em um acréscimo de aproximadamente R$ 55 bilhões nos gastos anuais com juros da dívida pública brasileira. O principal pretexto para o aumento dos juros é a inflação. O Brasil encerrou 2024 com uma inflação de 4,83%, puxada por “Alimentação e Bebidas”, item que apresentou o maior impacto no índice anual, acumulando alta de 7,69% e a gasolina, com o maior impacto individual sobre a inflação do ano, com alta de 9,71% e contribuição de 0,48 pontos percentuais no índice geral.

Segundo o Dieese, em fevereiro último o preço do café em pó subiu em todas as capitais abrangidas pela pesquisa de preços da Cesta Básica Alimentar. As altas deste produto variaram entre 6,66%, em São Paulo, e 23,81%, em Florianópolis. O problema está relacionado com baixos estoques, consequência da menor produção do produto no Brasil e no Vietnã, e a firme demanda internacional, pressionaram os preços do grão. Cabe perguntar que influência poderia ter a taxa de juros sobre esses preços? Quem vai consumir menos café, tomate ou laranja, por conta do aumento da taxa Selic?

A pressão exercida pelo Sistema Financeiro Internacional, e por todos os seus numerosos e influentes tentáculos na sociedade, impede o governo de enfrentar as questões macroeconômicas fundamentais, como é o problema da dívida pública. Em 2024, o Governo Central registrou um déficit primário de aproximadamente R$ 43 bilhões, equivalente a 0,36% do PIB. Excluindo R$ 32 bilhões em despesas relacionadas a enchentes, o déficit se reduz para 0,09% do PIB, alinhando-se com a meta fiscal de déficit primário zero, considerando a margem de tolerância de 0,25%. Apesar do governo ter cumprido essa meta, os chamados “especialistas” do mercado, criticaram o governo, porque acham necessárias medidas fiscais adicionais, em função das incertezas globais. Resumo da ópera: os gastos primários não provocam déficit: 0,09% do PIB é praticamente zero.

O setor público consolidado – formado por União, Estados, municípios e estatais– registrou déficit nominal de R$ 998,0 bilhões em 2024. Esse foi o maior valor nominal anual da série histórica, iniciada em 2002 (segundo o relatório Estatísticas Fiscais do BC, divulgado em 31 de janeiro de 2025). Essa cifra inclui tanto o resultado primário quanto os encargos com a dívida pública. Esse déficit nominal representa aproximadamente 9,2% do PIB nacional. Isso significa que o cerne do problema fiscal no Brasil são os juros da dívida pública. Em 2024, a arrecadação federal totalizou R$ 2,71 trilhões. O resultado representa uma alta real (descontada a inflação) de 9,62% ante 2023, que é recorde na história do Brasil. Desse valor, quase um trilhão foi para o pagamento dos juros da dívida.

A DBGG (Dívida Bruta do Governo Geral) fechou 2024 aos 76,1% do PIB. O levantamento considera o endividamento do governo federal, do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), dos Estados e dos municípios. Em dezembro de 2024, a dívida era de R$ 9 trilhões em valores nominais. A Auditoria Cidadã da Dívida, usando dados oficiais do governo, estima que os gastos com juros e amortizações da dívida pública, em 2024, tenham chegado a R$ 1,99 trilhão de reais (1 trilhão e 996 bilhões, praticamente 2 trilhões). Esses R$ 2 trilhões foram destinados aos “serviços” da dívida, portanto, incluindo pagamento de juros e amortização da dívida. Amortização da dívida deveria ser o pagamento gradual não apenas dos juros incidentes, mas também do pagamento gradual ou imediato, do principal da dívida. A amortização da dívida permitiria, ao fim de determinado período, a quitação da dívida. Mas isso não acontece no Brasil. O estoque da dívida só cresce, apesar do país pagar o maior volume de juros em proporção do PIB, do mundo.

A previsão do setor financeiro e de outros, é que a taxa Selic deverá atingir algo em torno dos 15% até o final de 2025.  A inflação de fevereiro, inclusive, levantou a bola para o Comitê de Política Monetária (Copom) aumentar os juros na reunião da semana que vem, nos dias 18 e 19. Em fevereiro de 2025, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), indicador oficial da inflação no Brasil, registrou uma alta de 1,31%, maior aumento para o mês de fevereiro em 22 anos, desde 2003. O detalhe é que a aceleração da inflação no mês passado, decorreu principalmente pelo aumento de 16,8% nas tarifas de energia elétrica residencial, que teve um impacto de 0,56 ponto percentual no índice geral do IPCA. Mas este é apenas um detalhe, que ao que tudo indica, será desconsiderado pelo Copom na reunião da semana que vem.

A condição do Brasil, de maior taxa de juros do planeta, se refere a taxa básica de juros na economia. No varejo, para as transações do dia a dia, os juros cobrados no país são, de longe, os mais elevados do mundo. Segundo o Banco Central, o juro médio total cobrado pelos bancos no rotativo do cartão de crédito estava, em novembro, em 445,8% ao ano. A taxa do parcelado estava em 183,3% ao ano, no mesmo mês. Não há nada parecido em todo o mundo. A taxa máxima de juros no rotativo, ao ano, em alguns países é: EUA (17,03%); Turquia (24,27%); Rússia (27,9%); Índia (30%). Mesmo na Argentina, cuja economia está sendo arrebentada pela motoserra de “El Loco”, essa taxa é menor que a do Brasil: 53,2% ao ano.

O raciocínio básico da defesa dos juros altos para controle da inflação é o de que juros altos encarecem o custo do dinheiro, o custo do crédito. Isso estimularia empresas e famílias a adiarem o consumo e investimentos, reduzindo a demanda por bens e serviços, esfriando um pouco a economia. Mas a maioria da população brasileira, ou pelo menos uma parte expressiva, estaria consumindo em excesso, a ponto de a elevação dos juros ter o efeito de reduzir substancialmente o consumo? Será que esse diagnóstico é verdadeiro para o Brasil nesse momento? Teria problemas de excesso de demanda um país no qual quase 30% da população tem seu rendimento referenciado no salário-mínimo e cerca de 54 milhões de pessoas (acima de 1/4 da população) dependem do Bolsa Família para não passar fome?

José Álvaro Cardoso é economista do DIEESE e colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a/s autor/a/s não representa necessariamente a opinião de Desacato.info.

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