O caso da menina imigrante de 9 anos detida há mais de 500 dias pelos Estados Unidos

Pela lei, os menores não devem ficar mais de 20 dias sob custódia das autoridades migratórias estadunidenses. Foto: Getty Images

Por Patricia Sulbarán Lovera, BBC News.

Luisa* tem uma voz doce e animada. Às vezes, costuma soltar expressões como se fosse adulta, ainda que tenha apenas 9 anos.

Isso se deve, talvez, ao fato de que, apesar da idade, ela esteja acostumada a escrever cartas a parlamentares que não conhece pedindo que seja liberada, junto da mãe, do centro de detenção para famílias migrantes no qual se encontra há quase um ano e meio.

No dia 5 de fevereiro, fez 534 dias que elas estão sob custódia do governo dos Estados Unidos.

Natural de El Salvador, Luisa é a criança que está por mais tempo sob poder do Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos (Immigration and Customs Enforcement, ou ICE), de acordo com as estimativas feitas por organizações que proveem serviços legais nos três centros que abrigam famílias de migrantes no país — dois no Texas, um na Pensilvânia.

Em quase todo o período, ela esteve no Centro Residencial Familiar do Sul do Texas, conhecido na região como Dilley.

“Todas as minhas amigas foram embora e fiquei sozinha aqui com uma outra amiga”, diz Luisa, do outro lado da linha.

As regras expressas no Acordo Flores, vigente desde 1997, limita o tempo máximo de detenção de menores a 20 dias.

Este não foi, entretanto, o caso de Luisa e de mais outro quatro jovens (assim como suas mães), em idades entre 3 e 16 anos, que acumulam mais de 500 dias no mesmo centro.

Apesar de a menina ter tido a possibilidade de sair para ficar sob os cuidados de algum familiar em território estadunidense, ela e a mãe preferiram não se separar enquanto lutam para evitar a deportação.

Desde que começou seu governo, em 20 de janeiro, o presidente Joe Biden tomou diversas medidas que revertem políticas do antecessor, Donald Trump, que promoviam a separação de famílias de migrantes e deportações.

Ainda assim, ele advertiu que esse processo deve levar algum tempo até que seja concluído.

O caso de Luisa e sua mãe revela uma complicada e, para muitos, disfuncional política migratória que se agravou na era Trump e acabou sendo herdada por Biden.

Esta é sua história.

*Tanto Luisa quanto a mãe, Ariana, têm nomes fictícios nesta reportagem. Elas pediram para ter a identidade preservada porque correm risco de deportação.

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Por que ela está há tanto tempo detida?

“Passei dois Natais aqui. Sinto falta de cozinhar, gostaria de fazer minha própria comida. Aprendi um pouco de inglês, um pouquinho. Quero aprender mais na escola, mas fora daqui.”

A mãe diz que a menina tem evitado comer e que seu comportamento foi se alterando com o passar do tempo. “Ela só come fruta, e às vezes nem isso.”

Aos 31 anos, Ariana diz ter desenvolvido ansiedade, o que fez com que lhe receitassem medicamentos no centro.

Centro Residencial Familiar do Sul do Texas foi aberto em 2014. Getty Images
 

“Há um tempo tive um ataque e não sabia o que era; os paramédicos vieram e me disseram que tive um ataque de ansiedade.”

“Às vezes penso que não sou eu que estou aqui”, diz.

Ambas testemunharam, no último ano, como o centro foi esvaziando, à medida que a pandemia recrudescia e o ICE liberava e deportava as famílias.

Ao mesmo tempo, o governo estadunidense começou a expulsar a maioria dos migrantes que chegava até a fronteira, uma decisão polêmica que foi questionada por organismos de defesa dos direitos humanos.

Em 1º de julho do ano passado havia 138 famílias detidas, com 139 crianças entre os três centros, conforme a agência de notícias AP.

Em Dilley, uma instituição que funciona com fins lucrativos e tem capacidade para 2,4 mil pessoas, atualmente há em torno de 54 famílias, de acordo com as estimativas de Mackenzie Levy, uma das representantes legais de Ariana.

O ICE manteve as famílias detidas mesmo depois da ordem expedida por uma juíza em junho de 2020 que determinava a saída das crianças, como consequência do aumento de casos de covid-19 nas instalações.

Em sua decisão, Dolly Gee recomendou que os pequenos fossem liberados junto com os pais ou entregues a familiares que pudessem ser seus guardiões. Ela está encarregada de observar o cumprimento do Acordo Flores, mas não tem, contudo, autoridade sobre a situação dos adultos.

Uma outra juíza federal, por sua vez, decidiu contra a libertação dos pais e o ICE, que tem o poder de fazê-lo, também negou a possibilidade.

Isso acabou criando uma situação preocupante, dizem os defensores das famílias — filhos separados dos pais, que seguem detidos e sob risco de deportação.

O ICE havia sido duramente criticado em 2018 quando colocou em prática uma política de “tolerância zero” implementada pela gestão Trump e passou a separar milhares de crianças migrantes de seus pais.

O governo e o conselho encarregado de garantir o direito dos menores estão hoje discutindo um processo que facilite a liberação das crianças com a permissão dos pais.

“Não há nada como a mãe. Não posso deixar minha filha com eles (os familiares nos EUA). Minha filha é pequena, precisa do meu cuidado, como vou deixar…”, afirma Ariana.

Uma das cartas que Luisa enviou aos parlamentares estadunidenses, cortesia Projeto Dilley

Asilo negado

Os advogados de Ariana argumentam que não lhe foi dada uma oportunidade justa para que ela pedisse asilo. Por causa de uma série de políticas instituídas por Trump, dizem, mãe e filha foram consideradas ilegais.

“Quase imediatamente depois que chegaram a Dilley, lhes foi negada quase automaticamente a solicitação de asilo”, pontua Levy.

Sem querer expor detalhes, a salvadorenha diz que fugia de uma situação de violência em El Salvador quando decidiu deixar dois de seus filhos em seu país natal e migrar com Luisa.

Em 21 de agosto de 2019, elas cruzaram a fronteira entre o México e os Estados Unidos e, no dia 27, foram levadas às instalações de Dilley. Dois dias depois, foram entrevistadas por um funcionário do governo.

Segundo Levy, a base legal usada para a negação do pedido de asilo foi de que mãe e filha não cumpriram a determinação de fazer a solicitação a partir do México ou da Guatemala antes de fazê-la em território estadunidense.

“Na verdade eu não entendia o que estava acontecento”, afirma.

“A gente chega assustado, por tudo o que passa pelo caminho, e logo dá de cara com pessoas… Supostamente tínhamos de ter pedido asilo no México e não o fizemos, por isso que nos negaram [o pedido]”, detalha.

Seus advogados fizeram uma apelação ante um juiz de imigração em setembro, que ratificou a decisão de lhe negar o asilo e ordenar a deportação.

Ariana chegou apenas uma semana depois do início da vigência do acordo de “terceiro país seguro”, firmado pelos EUA com vários países da América Central e o México.

O governo Trump defendia que o acordo buscava identificar de maneira mais eficiente “quem estivesse usando de forma errada o sistema de asilo como ferramenta para entrar e permanecer no país”.

A medida foi implementada quando milhares de famílias migravam em direção aos EUA fugindo da violência e da pobreza em seus países.

Ainda que um painel de três juízes de uma corte de apelação tenha determinado em julho do ano passado que a mudança no processo de pedido de asilo era ilegal, casos como o de Ariana foram submetidos à nova política.

Os representantes da salvadorenha pedem que seja outorgada a ela uma ordem para apresentar sua solicitação a um juiz de imigração.

Consultado sobre o caso, o ICE respondeu à BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC, que não pode discutir sobre assuntos que estão sob sigilo.

‘Pelo menos cinco vezes’

Ariana diz que tentaram deportar ela e a filha “pelo menos cinco vezes”, e que em diversas ocasiões elas tiveram de passar por um isolamento compulsório de vários dias como medida de prevenção contra a covid-19 antes de voltarem ao centro.

Elas não chegaram a ser de fato enviadas de volta a El Salvador porque seus advogados travaram uma batalha legal em várias frentes e acabaram conseguindo evitar a deportação no último minuto.

“Me dá raiva porque me tiram, depois trazem de volta, tiram e trazem de volta”, diz a menina, quando questionada sobre como se sente em Dilley.

O ICE é acusado há anos de não fornecer tratamento adequado aos bebês e crianças que estão sob sua custódia em Dilley. O centro foi inaugurado em 2014, durante o governo de Barack Obama. Já a agência defende o protocolo de atenção médica e educativa que dispensa aos menores.

Uma das questões que geram maior inquietação em Ariana é o fato de que sua filha está ficando para trás no currículo escolar.

“Aqui não se aprende o suficiente, são anos perdidos”, afirma.

Levy diz que várias de suas clientes falam sobre a deficiência do ensino nas instalações, onde as crianças “passam muito tempo na frente do computador sem aprender muito”.

E acrescenta que, durante a pandemia, os alunos têm recebido pacotes de tarefas “que supostamente deveriam levar uma semana para serem feitas, mas que são finalizadas em um dia”.

O ICE, por sua vez, afirma que a escola do centro retomou as aulas presenciais em setembro e que os pacotes educativos prévios foram entregues de acordo com as diretrizes de combate à pandemia determinadas pelo governo do Texas.

A agência declarou ainda que “respeita a dignidade e a humanidade das famílias”.

‘Caos e mais dor’

Em novembro do ano passado, mais de 60 organizações que defendem os direitos de migrantes denunciaram a existência de 28 menores detidos por períodos de até 15 meses e exigiram sua libertação em uma carta dirigida a Trump e ao presidente recém-eleito, Joe Biden.

No texto, citavam exemplos vindos de Honduras, El Salvador e Guatemala cujos pedidos de asilo foram negados, mesmo diante de um pano de fundo com histórias de violações e torturas infligidas pelo crime organizado e de mortes violentas de familiares contadas pelos migrantes.

No mesmo mês, contudo, o ICE afirmou, por meio de comunicado, que as famílias haviam tido “amplo acesso aos meios legais e que foi determinado que não há base legal para que permaneçam nos Estados Unidos”.

Dos 28 menores mencionados na carta, seis foram deportados e 17, liberados. Cinco, incluindo Luisa, permanecem sob custódia, conforme o Projeto Dilley, organização onde Levy trabalha.

“Esse tipo de política cria mais caos e mais dor. Se você analisar pela perspectiva de quem pede asilo, o que encontra são camadas e mais camadas de burocracia”, destaca Sarah Pierce, consultora do centro de análises Migration Policy Institute.

Luisa, por sua vez, mantém o otimismo — especialmente diante do seu aniversário de 10 anos que se aproxima.

“Quero estar fora, na casa da minha tia, pra comemorar esse dia.”

 

 

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