Muitas pessoas não ficaram sabendo, mas, na semana passada, esteve em Córdoba um dos filósofos anticapitalistas mais críticos e radicais do pensamento político atual. Maurizio Lazzarato é autor de alguns livros fundamentais para entender o arranjo ideológico, histórico, econômico e cultural que está na base da crise mundial que se iniciou em 2008 e que não se sabe muito bem quando e como irá terminar.
A reportagem-entrevista é de Carlos Schilling, publicada por La Voz, 15-05-2017. A tradução é do Cepat.
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Esses livros são A fábrica do homem endividado, Gobernar a través de la deuda (Governar através da dívida), e o último, escrito junto com Eric Alliez: Guerres et Capital (Guerras e Capital). A partir da ideia de que o capitalismo é essencialmente financeiro, postula que a dívida serve para disciplinar as pessoas, pois não se trata só de um problema contábil, mas, sim, possui uma dimensão mais profunda, na qual convergem elementos morais, políticos e estratégicos.
A dimensão mundial das finanças, explica, impõe uma generalização do crédito. Antes, há um século, só as empresas tinham acesso ao financiamento, ao passo que as pessoas viviam de seu salário. Mas, na atualidade, há créditos para tudo: consumo, educação, etc. Essa dívida organiza a subjetividade. O crédito contém o compromisso implícito de pagar. A pessoa fica condicionada pela dívida. Se alguém tem um crédito para 30 anos, sua vida estará organizada por esse crédito.
Desse modo, a relação credor-devedor passa a ser fundamental em um mundo onde o neoliberalismo converteu a clássica luta de classes entre o proletariado e o capital em uma guerra assimétrica, onde as finanças e o poder do crédito governam. Nesse cenário, os trabalhadores ficam completamente marginalizados como força política transformadora. Não é que não existam, não é que careçam de uma existência sociológica e econômica. O problema, destaca Lazzarato, é que com “as finanças e o crédito, o capital sempre está na ofensiva”, ao passo que no eixo capital-trabalho, “o que resta do movimento operário sempre está na defensiva” e é derrotado repetidamente.
Lazzarato veio a Córdoba convidado pelo Seminário de Pensamento Político Crítico da nova Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Nacional de Córdoba. Ofereceu uma palestra aberta, intitulada A condição neoliberal. No dia seguinte, teve um encontro mais reservado com professores e estudantes do seminário que se deu como um diálogo, na sede da Universidade Nacional de Villa María, em Córdoba. Por razões de tempo e de saúde, não foi possível organizar uma entrevista pessoal, mas, sim, marcar presença nas duas conferências e apresentar algumas perguntas, junto aos demais participantes.
É possível pensar a dívida em um sentido positivo?
Talvez em outro sistema. No capitalismo é impossível. A dívida é a guerra. Em outros sistemas, talvez o crédito possa ser pensado positivamente. A arma estratégica do capitalismo é a dívida. Trata-se de uma arma estratégica, não só econômica. Não é possível pensar o capitalismo só em termos econômicos. Não é só produção, também é poder. A dívida é o elemento através do qual são criadas não só as condições da exploração, como também as da subordinação política. Para a ideologia liberal, o crédito permite antecipar custos, o futuro; mas o certo é que a dívida só produziu catástrofes.
Aliança com o Estado
Para Lazzarato, a crise mundial da dívida vem provar a tese de que o capitalismo nunca foi liberal, mas sempre capitalismo de Estado. Afirma que, durante a crise, os neoliberais não procuram governar o menos possível, mas, ao contrário, governam até mínimo detalhe. Nesse sentido, ao invés de articular a liberdade do mercado com o Estado de direito, o que fazem é fragilizar a já débil democracia. Donald Trump e os neofascismos europeus são um claro exemplo dessa tendência. Contudo, também os populismos caem sob suspeita, já que incorrem em diferentes formas de nacionalismo e não levam em conta a dimensão internacional do capitalismo.
Como o capitalismo se articula com a democracia?
Na realidade, a democracia de origem liberal, como é conhecida na Inglaterra e nos Estados Unidos, é uma democracia republicana que é uma democracia dos patrões, da classe proprietária. A democracia dos direitos nasceu no século XVIII e não foi construída pelo capitalismo, mas, ao contrário, pelos movimentos políticos que conseguiram o sufrágio universal, a liberdade de expressão, liberdade de organização associativa, etc. Trata-se de conquistas de movimentos políticos e operários, não de uma concessão do capitalismo. Pelo contrário, o capitalismo procurou restringir esses direitos e demorou a reconhecê-los.
Então, trata-se de uma relação de conveniência, no melhor dos casos?
A tendência do neoliberalismo é que quando o movimento operário se torna mais fraco, a democracia se torna mais frágil. E isso se aplica a todos os movimentos de oposição. Quando se enfraquecem, a democracia desaparece. O capitalismo não necessita da democracia. A China é um exemplo categórico, governa um capitalismo que tem uma taxa de produtividade enorme, sem a necessidade de democracia. A democracia é algo que foi imposto ao capitalismo, não algo que surge dele.
Você destaca que o neofascismo é uma parte integrante do capitalismo, mas do ponto de vista mercantil, as sociedades fechadas não atentam contra a lógica do mercado?
Esse é o ponto de vista economicista. Antes da Primeira Guerra Mundial, dizia-se que a guerra seria impossível porque não havia muito intercâmbio entre os países, de modo que se pensava que não haveria mais guerras. No entanto, vieram duas guerras mundiais. Na Argentina, nos anos 1970, o capital financeiro destruiu a indústria nacional por questões políticas, como também ocorreu na Europa, por certo. Em razão da indústria ser um centro de reconstituição e concentração política, é suscetível a ser destruída, ainda que implique verdadeiros problemas econômicos. A humanidade nunca viveu sob um modo de produção que produz tantos mortos como o capitalismo. São 60 milhões de mortos nas duas guerras. Por outro lado, a guerra também é uma forma de economia, não é desperdiçada, tem uma função econômica precisa. Quando o capitalismo está em risco, recorre à guerra, sem dúvidas.
Depois de Marx
Embora reconheça a grandeza do pensamento do autor de O Capital, Lazzarato não deixa de destacar os limites de Karl Marx e do marxismo em sua análise do capitalismo. Entre os limites mais importantes, aponta o fato de que se concentraram muito na produção e no trabalho e não nas finanças.
Segundo o autor de A fábrica do homem endividado, a leitura marxista do capitalismo entrou em crise nos anos 1950 e 1960, porque apareceram sujeitos políticos que o marxismo não tinha levado em consideração: o movimento feminista e os movimentos anticolonialistas, por exemplo. Por isso, resgata pensadores e ativistas como a feminista italiana Carla Lonzi, autora de Escupamos sobre Hegel, e Frantz Fanon, autor de Os condenados da terra, que sustentam que na relação homem-mulher e colonizador-colonizado, a dialética do amo e do escravo não funciona.
“Há duas coisas que o marxismo não compreendeu: as guerras mundiais e os movimentos rebeldes de 1968”, observa Lazzarato. “São acontecimentos fundamentais do século XX. A Primeira Guerra Mundial é importantíssima, porque pela primeira vez toda a sociedade foi integrada na produção, mas na produção para a destruição. O trabalho, a técnica, a ciência, que deveriam ser as forças produtivas emancipatórias da humanidade, converteram-se em elementos de destruição da humanidade”.
Quais são as opções teóricas e políticas ao marxismo?
Não existe uma teoria forte que substitua o marxismo. Os anos 1960 e 1970 são interessantes em nível teórico: Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guattari. Contudo, estes pensadores traçam uma parábola que vai do compromisso político, inicialmente, a uma forma estética, ao final. Passa-se da política à estética e isso fragiliza muito o pensamento do ponto de vista da resistência ao sistema e de sua possível transformação. Por outro lado, Lênin deu um grande salto em relação a Marx, no que diz respeito à revolução. Lênin leva em consideração a guerra. Todos aqueles que fizeram a revolução, durante o século XX, levaram em conta o problema da guerra. Sem a guerra, não se faz revolução, ao menos até fins dos anos 1950. O marxismo estava muito mais ligado à dimensão econômica do capitalismo, mas o capitalismo não é apenas economia. No capitalismo, sempre é necessário levar em conta o ponto de vista econômico e o ponto de vista estratégico, ao mesmo tempo. Muitas teorias dos anos 1960 e 1970 foram construídas como se a guerra já não existisse, como se as guerras não tivessem existido.
A guerra, justamente, é o tema do último livro de Lazzarato (Guerres et Capital), escrito em parceria com Alliez. Nele, os dois autores se propõem ler a história do capitalismo sob a famosa fórmula invertida de Von Clausewitz (ao invés de “a guerra é a continuação da política por outros meios”, “a política é a continuação da guerra por outros meios”).
No prólogo, afirmam: “O capitalismo e o liberalismo carregam as guerras em seu interior, assim como as nuvens carregam a tempestade. Se as finanças de fins do século XIX e inícios do século XX resultam na guerra total e na Revolução Russa, na crise de 1929 e nas guerras civis europeias, as finanças atuais orientam a guerra civil global regendo todas as suas polarizações”.
Nesse sentido, o diagnóstico sobre o presente é que após a expansão planetária do capitalismo, durante os anos 1980, cujas figuras representativas em nível político foram Margaret Thatcher e Ronald Reagan, sucedeu-lhe, no novo século, um movimento de refluxo caracterizado pelos racismos, o nacionalismo, o sexismo e a xenofobia de personalidades como Donald Trump que, segundo Lazzarato, já estão no espírito de todos os novos fascismos.
http://www.ihu.unisinos.br/567799-o-capitalismo-nao-necessita-da-democracia-afirma-filosofo-maurizio-lazzarato