Foi na televisão que comecei minha vida profissional. Era 1982 e eu era repórter da Tv Caxias, em Caxias do Sul. Antes disso não era muito ligada em TV. Mas, depois que fui descobrindo suas entranhas, me apaixonei. Sou fascinada por tudo o que se produz na telinha. Espectadora voraz. Desde as primeiras matérias que produzi já percebi o poder desse veículo. Produtor da ideologia poderosa da classe dominante, por vezes escapa, e pode até produzir conhecimento. É raro, depende muito das pessoas, mas acontece. Eu mesma, ao longo da vida televisiva, muitas vezes consegui fazer passar a luta dos sem-terra, as greves dos trabalhadores, enfim, outra informação. Gotas, mas, enfim… Há que resistir em qualquer lugar.
Agora, nessa nossa brutal contemporaneidade capitalista, a televisão ainda é poderosa demais. Apesar do avanço da internet, é desde os estúdios dos grandes conglomerados televisivos que se produzem as coisas que as pessoas veem na rede. Mesmo que o meio seja um computador ou o celular, a ideologia televisa segue seu curso, firme e forte.
Um dos exemplos mais contundentes é o Netflix. Por 20 reais as pessoas podem ter acesso às produções televisivas e cinematográficas que o sistema capitalista cria. No geral, são os mesmos conglomerados de sempre que se fundem e se agigantam. E, obnubilados pela ilusão de que estão livremente fazendo suas escolhas, os consumidores só conseguem formar “listas” com o que o sistema oferece. Procure um filme do Win Wenders no Netflix e vê se acha. Não tem. Não tem no Netflix e tampouco tinha na televisão, a não ser em algum horário da madrugada, em algum canal de pouca audiência. O que tem é o lixo ideológico de sempre, o mesmo que povoava nossas sessões corujas, super tela, tela quente e tudo mais. Só muda o meio, a mensagem segue igual.
Eu, como uma espectadora compulsiva, vejo tudo que há. Por vezes, claro, encontro algumas pérolas, mas tem que saber muito bem o que procurar. O bom está sempre escondido.Quem não sabe, não acha. A informação crítica é sempre necessária, para a interação com qualquer meio. Mas, o que me apavora mesmo são os chamados block buster , os filmes e seriados arrasa-quarteirão, os que são sucessos virais.
Outro dia, passeando pelas opções da Netflix, querendo curtir uma daqueles comédias idiotas, para fugir do doloroso cotidiano, me deparei com uma série que está fazendo bastante sucesso nos EUA. Chama-se Santa Clarita Diet. A história é de uma mulher que, do nada, se transforma num zumbi, uma morta-viva e que necessita comer carne humana para seguir vivendo. Mas, não é como os zumbis que conhecemos, troncha e caindo aos pedaços. Não. Ela é normal. O marido a vê matando sua primeira vítima e, pasmem, não se surpreende. Parece a ele uma coisa quase natural. Logo, ele começa a ajudar a esposa a fazer as vítimas. Mais tarde, a filha também descobre e, pasmem, não se apavora. Também passa a ajudar.
A família, que é “gente de bem”, moradora do subúrbio – aquelas casinhas sem cerca bem típicas da famílias de classe média alta – decide então caçar pessoas “do mal”. Ou seja, são bonzinhos e vão limpar o mundo. Então, a partir de seus pressupostos do que seja “gente do mal” eles vão matando. Convertem-se assim em juízes da sociedade. Tudo tratado com muita graça. É uma comédia.
Assisti as duas temporadas, horrorizada com a capacidade que esse sistema tem de banalizar a vida mesma. Posso entender porque os Estados Unidos é o país onde mais acontecem esses casos de massacres aparentemente absurdos e inexplicáveis. Não são inexplicáveis. Essa sociedade investe pesadamente na ideologia do justiçamento, no moralismo de cueca, o qual a pessoa se acha no direito de julgar e praticar ela mesma a sentença. Com base em nada, apensa no seu “gosto pessoal”. Ou seja, se o vizinho é chato, mata ele. Se o chefe cobra demais, mata ele. Se a professora exige muito, mata ela. E sabe o que mais? Não acontece nada. A pessoa ainda pode virar herói ou heroína.
Aqui no Brasil, estamos consumindo de maneira acrítica todo esse lixo desde há tempos. Estamos aí vivendo 15 anos de Big Brother , a Fazenda e outros programas de realidade que ensinam a eliminar o outro, simplesmente por uma malquerença. E se elimina sem dó, pagando pela ligação. Toda essa ideologia de violência, banalização da vida e justiçamentos com base no gosto pessoal segue firme e forte nos novos meios de comunicação. O modelo de geração de medo “a la Datena” e afins adentrou também as redes sociais e estão a formar pessoas capazes de virar zumbi e não se importar. Aceitam tranquilamente o “fardo” e tratam de aproveitar para vingar suas pequenas e grandes maldades. Metralhar os inimigos, furar o olho do outro, comer o fígado, arrancar as vísceras, esmagar o coração. Junte a isso um fundamentalismo religioso também criado pela religião eletrônica e pronto: estamos bem arranjados.
Outro dia um menino de 10 anos atirou numa professora e se matou. Aqui, no Brasil. Isso está bem perto. O brasileiro cordial, que já era um mito, vai se esfumaçando. Estamos sendo doutrinados, dia após dia, a sermos monstros competitivos. E isso vale inclusive para aqueles “bons cristão” que disseminam imagens de Nossa Senhora, falam de amor, mas que arreganham os dentes em explosões de ódio contra o que não gostam ou não entendem.
A parada é dura, companheirada. Há que mudar isso. E não será com “democratização da mídia”. Só uma mudança radical, de todo o sistema. Sem isso, seguiremos zumbis…
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Elaine Tavares é jornalista.