O capital, o vapor e a morte: a ferrovia, a Lumber Company e o movimento sertanejo do Contestado

Por Alexandre Assis Tomporoski.

Transcorridos cem anos desde o início de um dos maiores movimentos sociais deflagrados no Brasil, é notório o impulso que as pesquisas sobre o tema receberam nas últimas décadas. Esse avanço expôs a complexidade do Contestado, com suas especificidades e a heterogeneidade de suas causas.

Uma das causas fundamentais para o início do movimento sertanejo foi a chegada e a presença na região de companhias estrangeiras dos setores ferroviário e madeireiro. Ambas, municiadas com a típica voracidade do capital, avançaram sobre a região, devorando árvores, vidas e a esperança que milhares de pessoas pobres do interior do planalto meridional brasileiro nutriam, de que era possível viver em um mundo com justiça e igualdade.

Esse processo foi marcado pela construção de uma ferrovia que interligaria os estados do sul do Brasil. Para este fim, o governo brasileiro estabeleceu contrato com a Brazil Railway Company, empresa responsável pela construção do caminho de ferro que trespassou o planalto meridional, tendo como pontos de partida e de chegada as cidades de Sorocaba, em São Paulo, e de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, respectivamente. A construção dessa grande linha férrea alterou a vida das populações das regiões por ela cortada, aumentando o valor econômico das terras, agravando problemas sociais e influenciando diretamente na deflagração da Guerra do Contestado, entre os anos de 1912 a 1916.

O contrato para construção da ferrovia determinou que a empresa responsável pela obra – a Brazil Railway Company – teria direito a explorar as terras adjacentes ao leito da linha férrea, em uma extensão de até quinze quilômetros. Em 1910, foi encerrada a construção do trecho que rasgava o território catarinense, num total de trezentos e oitenta quilômetros, entre as cidades de União da Vitória, no Paraná e Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul. Posteriormente, o ramal que ligava União da Vitória e a cidade portuária de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, foi concluído e colocado em funcionamento. A conclusão deste ramal permitiu o escoamento rápido da produção de madeira e erva mate do planalto catarinense.

Aquelas terras eram cobertas por milhões de pinheiros araucária, imbuias, canelas e cedros. Objetivando serrar e exportar esta madeira de alto valor econômico e, mais tarde, vender parte das terras a imigrantes europeus, foi constituída uma subsidiária da Brazil Railway Company, a Southern Brazil Lumber and Colonization Company. Em 1910, a Lumber Company instalou em Três Barras, então território paranaense contestado por Santa Catarina, uma moderna serraria.

A empresa instituiu um processo industrial com alto grau de mecanização e elevada organização técnica. O início do processo consistia no corte das toras no meio da floresta, tarefa realizada por grupos de trabalhadores que se embrenhavam nas matas, selecionavam e serravam as árvores. Em seguida as toras, que jaziam no chão, eram presas por longos cabos de aço, com centenas de metros de extensão e içadas por guinchos movidos a vapor comprimido. Ao serem arrastadas, destruíam toda a vegetação que estivesse em seu caminho, árvores menores, espécies economicamente menos interessantes e também grandes quantidades de árvores de erva mate, cuja extração era um elemento fundamental de sobrevivência para a população pobre que habitava a região. O mesmo guincho erguia as toras e as colocava sobre vagões que eram conduzidos até o engenho da serraria, no centro da vila de Três Barras. Dentro do engenho as toras eram serradas, selecionadas e armazenadas mecanicamente. Subsequentemente, eram carregadas em vagões e levadas até os portos de São Francisco do Sul e Paranaguá e dali enviadas ao exterior.

No mês de novembro de 1911, menos de um ano antes da batalha do Irani, marco inicial da Guerra do Contestado, a Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande publicou um edital que proibia a ‘invasão’ e ‘ocupação’ de terrenos pertencentes à companhia, aqueles posseiros que não aceitavam a determinação e continuavam ocupando as suas terras, agora de propriedade da companhia estrangeira, recebiam a visita de sua milícia armada.

O morador pobre do planalto, o caboclo ou sertanejo, ocupava aquelas terras pelo apossamento já há muito tempo, muitas vezes há gerações. Ali construiu uma relação de exploração racional dos recursos naturais e teceu complexas relações sociais com seus pares. Todo esse universo gestado ao longo de décadas era agora destruído de forma rápida, fria e impessoal, como é a característica da ‘racionalidade’ do capital. O modo de vida do sertanejo pobre da região, marcado por costumes e práticas que valorizavam as relações solidárias e coletivas, foi afetado diretamente pela construção da ferrovia e pela instalação da Lumber Company.

Os pobres resistiram. A desestruturação de sua forma de viver, resultante das novas relações advindas do capital estrangeiro, contribuiu para o agravamento das tensões sociais no planalto e engrossou as fileiras do movimento sertanejo. Com a chegada das empresas estrangeiras na região, esse modo de vida foi abruptamente afetado e obliterou. A partir de então, aquilo que o planaltino considerava ‘seu’, ‘justo’ ou ‘um direito’ deixou de ser respeitado. Isso determinou sua resistência, sua mobilização e sua luta, através da qual milhares de pessoas arriscaram e sacrificaram suas vidas.

A atuação das empresas estrangeiras em toda a região do Contestado foi um elemento peremptório para a deflagração do conflito, através do qual, a população local reivindicou seus direitos e demonstrou claramente contra quem e contra o que estava lutando: os estrangeiros, o capital e as autoridades constituídas, explicitando assim a profunda racionalidade do movimento, que não representou uma odisseia de “fanáticos” ou “jagunços”, e sim a luta de pessoas pobres por aquilo que consideravam justo e seu por direito.

Foto: http://www.brasilescola.com

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