O candidato do colapso

Foto: Pixabay

Por Marcos Nobre.

eleição foi, em primeiro lugar, sobre a prisão de Lula. Depois, sobre a facada em Bolsonaro. Agora é sobre a exploração da soma de todos os medos de quem vive em um país em frangalhos.

O futuro não deu as caras. Até agora, é uma eleição como se não houvesse amanhã. O que apareceu foi apenas um presente abominável e um passado de horror. Sob a liderança de Jair Bolsonaro, o dia seguinte ficou fora de qualquer conversa, e o primeiro turno da vingança se tornou o segundo turno do medo.

A razão para isso é simples e terrível: as pessoas já perderam muito, mas têm medo de que lhes seja tirado mais ainda. Elas temem especialmente que lhes seja tirado o mais básico e fundamental, aquilo que é sua razão de existir. Para muita gente, esta eleição não é sobre a esperança de que a vida vá melhorar, mas sobre como estancar um sofrimento tão prolongado.

Pouca gente acha que a dureza das crises que enfrentamos há tanto tempo está perto do fim. Muita gente acreditou nessa promessa quando veio a parlamentada de 2016, que derrubou Dilma Rousseff. O governo Temer, ao contrário, trouxe junto com ele todas as pragas do Egito, só que em número indeterminado. Falar em política e em instituições políticas trouxe o ódio e a repulsa manifestados no primeiro turno. Agora, neste segundo turno, traz também o medo de que ameaça ainda maior esteja por vir. E alguém precisa impedir que o sistema político continue a fazer maldades.

Bolsonaro canalizou a desesperança e o medo em prol de sua candidatura. Depois da facada que sofreu, passou a dar as cartas. Passou a pautar sozinho a eleição, começou a moldá-la como o não-debate em que se transformou. Bolsonaro não promete coisa alguma a não ser: as maldades vão parar. Para quem já não acredita em nada que soe “político”, prometer mais do que isso soa falso, mentiroso. Mesmo debater soa falso, mentiroso, soa “político”. Por isso, de pouco vai adiantar a candidatura de Fernando Haddad insistir em debater enquanto não tocar no que está na base do sucesso do capitão-candidato.

Bolsonaro se colocou como defensor das últimas trincheiras de qualquer pessoa, daquilo que é a sua identidade mais básica. Disse mais ou menos o seguinte: “Tiraram tudo de vocês e agora querem tirar até o mais fundamental, que é a sua vida, que é acreditar em Deus, em si próprio e nas pessoas mais próximas.” Muita gente acredita que as coisas mais preciosas estão em risco. Bolsonaro prometeu protegê-las acima de tudo e de todos. Não por acaso, conseguiu fazer um amálgama das únicas três instituições que ainda encontram apoio, respaldo e aprovação na terra arrasada atual e que não são consideradas “políticas”: família, igrejas e Forças Armadas.

É como se Bolsonaro estivesse dizendo ao eleitorado: “Você tem toda a razão de não confiar em nenhuma instituição a não ser na sua família, na sua igreja e nas Forças Armadas de seu país. E eu sou o único que pertence a essas três instituições, sou o único que pode lhe defender, sou o único em condições de prometer que vou lhe defender. Ninguém tirará de você a sua vida, a sua família, a sua crença e o seu direito de acreditar em si mesmo.”

O estranho é ter gente que ache isso pouco. É da sobrevivência física, mental e social de muitas pessoas que se está falando. Toda a discussão sobre a divisão do eleitorado entre PT e antiPT, que é real, obscurece muitas vezes o fato de que uma parcela do eleitorado está se sentindo existencialmente ameaçada e que vê no sistema político a fonte dessa ameaça.

Negar que parte muito relevante do eleitorado esteja se sentindo dessa maneira é se recusar a entender o voto em Bolsonaro. É se recusar a entender por que discutir o dia seguinte se tornou secundário. É se recusar a entender por que debater se tornou secundário, tornou-se “político”.

Acontece que Bolsonaro não apenas depende dessa devastação social para vencer a eleição. Ele também vai depender dela para se manter no poder. Bolsonaro surfa a onda do colapso das instituições. Precisa do colapso para se eleger. Mas precisará ainda mais do colapso para se manter no poder.

Porque a parte relevante do eleitorado que se sente existencialmente ameaçada não permanecerá para sempre na posição defensiva extrema em que se encontra hoje. Em um momento não muito distante vai precisar sentir que a ameaça extrema passou e será então a hora de buscar algo positivo, construtivo. E, nesse momento, Bolsonaro nada terá a mostrar.

Porque mostrar algo positivo e esperançoso depende de reconstruir as instituições políticas. Depende de fazer voltar a funcionar um sistema político que entrou em parafuso. E, mesmo que se visse obrigado a isso, Bolsonaro não dispõe de condições políticas e pessoais de realizar uma tarefa dessa magnitude. Não se elegeu com base nisso, não tem base social e política para isso. Ao contrário, ele é o candidato do colapso.

Se eleito, a única opção para Bolsonaro permanecer no poder será manter ativamente em estado de colapso as instituições políticas do país. Porque o sistema político fará certamente esforços para se reorganizar, tanto do lado da centro-esquerda como da centro-direita. Mas qualquer reorganização como essa, se bem-sucedida, acontecerá contra um eventual governo Bolsonaro – e não a seu favor. Bolsonaro só poderá governar minando permanentemente toda forma positiva de reorganização das instituições.

Bolsonaro apareceu em uma pequena janela no tempo, naquele exato minuto do colapso institucional em que se tornou possível lançar a bomba capaz de tornar esse colapso duradouro. A opção neste segundo turno é entre a ameaça existencial que surfa no colapso das instituições e a proposta de uma reconstrução institucional. Coube à campanha de Fernando Haddad o papel de mostrar que a janela de onde acena o capitão-candidato representa, na verdade, a continuidade da sensação da ameaça existencial. Porque é disso que se alimenta a candidatura de Bolsonaro.

 

Marcos Nobre é professor de filosofia da Unicamp e autor de Imobilismo em Movimento, pela Companhia das Letras, e Como nasce o novo, pela Todavia

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